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Bis in idem entre penal e improbidade administrativa à luz da convenção americana sobre direitos humanos

Revela-se um importante respeito de eventual bis in idem no que concerne a judicialização concomitante de procedimentos que visam apurar a responsabilidade penal e outras espécies de sanção quando as premissas são absolutamente semelhantes nas esferas que buscam o sancionamento concomitante.

23/4/2021

Muito se discute a respeito da vedação do bis in idem, ou seja, da dupla imputação pelos mesmos fatos, enquanto uma garantia judicial essencial no processo penal. Por certo que “seu conceito, mesmo multifacetado, nasce de uma noção simples, a de que ninguém deve responder mais de uma vez por um mesmo fato ilícito”1.

O princípio da vedação à dupla imputação não possui previsão constitucional expressa derivando, contudo, de princípios outros, a exemplo do devido processo legal e da presunção de inocência previstos, respectivamente, no artigo 5°, incisos LIV e LVII, da Constituição da República.

O Código de Processo Penal, por sua vez, prevê a denominada exceção de coisa julgada, que somente pode ser invocada regularmente quando há repetição da mesma causa. A fim de impedir a dupla imputação em procedimentos penais incidirá a exceção de coisa julgada na hipótese de repetição do pedido, partes e causa de pedir na Ação Penal, observando-se que os elementos se referem aos fatos narrados (ou seja, o que vale é o fato principal que foi objeto da sentença precedente)2.

A previsão à vedação ao bis in idem, de maneira mais abrangente, está expressa na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário, conforme decreto 678/92. Em seu artigo 8.4, a Convenção Americana estabelece que “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

É de se destacar que de acordo com referido trato internacional, não há nenhum tipo de distinção entre esferas do poder judiciário, de modo que, tal dispositivo abrange com precisão a proibição de que nova imputação por fato que já tenha sido enfrentado pelo judiciário contra alguém seja reprisada. Consagra, assim, em nível interamericano a máxima do ne bis in idem, pela “proibição da submissão repetida à jurisdição penal, que se constitui como regra de segurança jurídica em favor daqueles que foram absolvidos”3.

Com efeito, a integralidade do art. 8 da Convenção Americana contempla relevantes garantias judiciais, destinadas sobretudo a tratar sobre proteção de acusados submetidos a processo com fins penais, daí, portanto, a disposição sobre bis in idem deve partir da premissa de que está a tratar de relacionadas à contenção do poder punitivo Estatal.

Aliás, há igualmente disposição sobre vedação ao bis in idem no Pacto Internacional de Direitos Civis4 e Políticos, o qual o Brasil também é signatário, conforme decreto 592/92. Contudo, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos protege contra a submissão a novo julgamento pelo mesmo “delito”, e não pelos “mesmos fatos” como faz a Convenção Americana. A diferença no termo é substancial “para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, isso significa que a norma interamericana adota um termo mais amplo do que suas congêneres e, consequentemente, é mais protetiva em relação às vítimas de eventuais violações ao artigo.”5

Oportuno recordar que em atenção ao art. 5º, §3º, da Constituição Federal, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992, é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico doméstico com status normativo supralegal.6

O elemento central do conceito da vedação do bis in idem é o fato de que o Estado possui o direito de punir o autor de determinada conduta uma única vez quanto ao mesmo contexto. Assim, quando observada a pretensão de sancionamento com finalidades praticamente idênticas, fazendo-o mais de uma vez, ocorre dupla imputação. É dizer que o Estado deve atuar com moderação, sobretudo no campo punitivo.

Nessa toada, revela-se um importante respeito de eventual bis in idem no que concerne a judicialização concomitante de procedimentos que visam apurar a responsabilidade penal e outras espécies de sanção quando as premissas são absolutamente semelhantes nas esferas que buscam o sancionamento concomitante, tal como a improbidade administrativa, com relação aos mesmos fatos e, ainda, sobre a dependência do resultado material entre ambos.

Nesse sentido Fernando Neisser escreve em obra sobre o tema que “o cerne da discussão radica na ideia de que há um único direito de punir do Estado, alcunhado ius puniendi, sendo irrelevante sob qual rótulo tenha optado o legislador por fazê-lo incidir a determinada situação jurídica. Assim, o princípio da proibição do múltiplo sancionamento, o bis in idem em sua feição material, abarcaria não apenas a dupla imputação dentro do âmbito penal, mas também a tentativa de impor sanções por trilhas que carregam título diversos, como no caso do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador.”7

Em consonância com esta premissa, importa constatar que a limitação ao direito de punir quando o Estado busca a incidência simultânea de regimes de sancionamento diverso, seja pelo Direito Penal, pelo Direito Administrativo Sancionador, como quando se instala punição por meio da Lei de Improbidade Administrativa, está ligada ao fato apreciado e não a este ou aquele ramo do direito.

Repisa-se que embora as esferas do direito possam ser consideras distintas, elas se harmonizam. É o que defende a professora Helena Regina Lobo da Costa; “o reconhecimento da vedação do bis in idem entre as esferas penal e administrativa pelo direito brasileiro não encontra óbice algum na Constituição; pelo contrário: harmoniza-se muito mais aos ditames constitucionais do que a mal fundada e incoerente ideia de que as instâncias seriam independentes”.8

Ainda de acordo com a referida autora “em um ordenamento jurídico que leve a sério a necessidade de limitação do poder do Estado, não se deveria admitir a possibilidade de uma pessoa ser punida diversas vezes pelo mesmo ato, sendo submetida a múltiplos processos”9, e continua ao asseverar que “ainda que essa punição não se caracterize estritamente como pena e esses processos não sejam estritamente processos penais, já que hoje o direito administrativo sancionador tem uma capacidade de ingerência em direitos fundamentais, que deve ser delimitada juridicamente de modo rigoroso”.10

Aqui, vale trazer à baila o disposto pelo § 4°, do artigo 37, da Constituição da República, no sentido de que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Com efeito, todos elementos que o dispositivo constitucional acima transcrito pretende tangenciar são afetados pelos efeitos da condenação criminal, conforme dispõe os artigos 91, 91-A e 92, todos do Código Penal.

Assim sendo, as ações de improbidade administrativa, assim como a ação penal, visam, ao final, de igual forma, a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário. O único, e exclusivo, fator que as diferencia, é que a Ação Penal pode, ainda, submeter o acusado a pena de prisão. Ainda assim, como não afirmar que, essencialmente, a punição não é a mesma? Como afirmar que não há bis in idem?

Ainda de acordo com Fernando Neisser, “a coexistência dos regimes sancionatórios viola princípios dos mais comezinhos, acarretando indevido ônus ao acusado, que se vê forçado a defender-se em múltiplas frentes, sem qualquer garantia de que o êxito de uma delas impedirá a continuidade das persecuções”11, o que, inquestionavelmente, vai em sentido oposto ao que preceitua a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

No ano de 1997, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou frontalmente sobre a vedação à dupla imputação, em respeito à garantia judicial tratada no texto da Convenção Americana. Ao julgar o caso Loayza Tamayo vs. Peru a Corte Internacional afirmou que, dentre o reconhecimento de incontáveis ilegalidades a que a Senhora María Elena Loyaza Tamayo foi submetida, “houve também violação de suas garantias judiciais quando o Estado não lhe reservou o direito ao princípio do non bis in idem, de modo que foi julgada na jurisdição ordinária pelos mesmos fatos que tinha sido absolvida na jurisdição militar”12.

Da sentença do julgamento da Corte Interamericana ressalta-se o esclarecimento feito a respeito da vedação do bis in idem, no sentido de que “este princípio procura proteger os direitos dos indivíduos que foram processados por determinados fatos para que não sejam novamente julgados pelos mesmos fatos. A diferença da fórmula utilizada por outros instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos (por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 14.7, referente ao mesmo “delito”) é que a Convenção Americana utiliza a expressão “os mesmos fatos”, que é um termo mais amplo em benefício da vítima"13.

Em recente julgamento realizado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, nos autos da reclamação de 41.557/SP, quase 25 anos após o julgamento do caso Loayza Tamayo vs. Peru, foi apreciada eventual identidade entre os acervos fático-probatórios de ação penal e ação de improbidade administrativa. No caso a Corte Constitucional reconheceu o julgamento que resultou em negativa de autoria em uma das ações como causa determinante para o trancamento da outra14.

No julgado em referência, o Excelentíssimo relator, Ministro Gilmar Mendes, discorre sobre a legitimidade do confronto do conteúdo fático-probatório entre procedimentos penal e de improbidade administrativa. De acordo com o julgado, em sendo constatada tal identidade decorre a possibilidade de ocorrência de bis in idem, compreendido como a duplicação do mesmo panorama fático-probatório como substrato empírico fundante, mesmo que em esferas sancionadoras distintas.

Para sintetizar o importante precedente sobre a matéria, importa pontuar seus elementos principais: (i) um cidadão respondia a uma ação penal e a uma ação de improbidade administrativa; (ii) no bojo de ação penal, restou reconhecida a ausência de autoria; e (iii) como consequência do reconhecimento da ausência de autoria na ação penal, foi determinado o trancamento da ação de improbidade administrativa ajuizada para apuração dos mesmos fatos.

O que se tem, com isso, é um grande avanço jurisprudencial, sobretudo diante do papel da Corte Constitucional em proporcionar unidade ao Direito, haja vista que a interpretação do já referido §4º do art. 37 da Constituição Federal, que afirma a improbidade administrativa ser objeto de persecução “sem prejuízo da ação penal cabível” precisa ser compatibilizada com a mitigação da noção de independência entre as instâncias nas hipóteses em que o acusado enfrenta sanções sob os mesmos fatos e sob as mesmas finalidades sancionatórias.

Bem assim, o tratamento do ne bis in idem no Brasil aproxima-se, com o julgado na Reclamação 41.557 pelo STF, do necessário respeito à garantia judicial prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. É, portanto, essencial revisitar o tema à luz da Convenção Americana, eis que a proibição de que múltiplas sanções sejam aplicadas a uma mesma pessoa em decorrência dos “mesmos fatos” do tratado internacional este em contraposição à jurisprudência que faz vistas grossas à proximidade entre Direito Penal e Improbidade Administrativa sob o argumento de independência entre as instâncias, um argumento que conforme aduz Helena Lobo da Costa “apresenta diversas inconsistências, não podendo ser abraçada como dogma inquestionável”.15

___________________

1 NEISSER, Fernando Gaspar. Dolo e culpa na corrupção política, improbidade e imputação subjetiva. Editora Fórum. Belo Horizonte, 2019, p. 71

2 GOMES, Luiz Flávio; Cunha Rogério Sanches. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos. São Paulo: RT, 2009, p. 136

3 PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentário à convenção americana sobre direitos humanos. São Paulo: Forense, 2019, p. 153.

4 Segundo o art. 14.7 da Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos: “Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”

5 PIOVESAN, Flávia; et al. Op. Cit., p. 153.

6 Cf. STF, HC 95967, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 11/11/8.

7 NEISSER, Fernando Gaspar. Dolo e culpa na corrupção política, improbidade e imputação subjetiva. Editora Fórum. Belo Horizonte, 2019. Pp. 72/73.

8 LOBO DA COSTA, Helena Regina. ne bis in idem entre direito penal e direito administrativo sancionador. Boletim do Ibccrim, n. 340, 2021.

9 Idem, Ibidem.

10 Idem, Ibidem.

11 NEISSER, Op. Cit., p. 75.

12 Disponível  clicando aqui. (acesso em 6/4/21)

13 Íntegra da sentença: clique aqui (sentença em português: clique aqui)

14 O acórdão foi assim ementado: Reclamação constitucional. 2. Direito Administrativo Sancionador. Ação civil pública por ato de improbidade administrativa. 3. Possibilidade de se realizar, em sede de reclamação, um cotejo analítico entre acervos probatórios de procedimentos distintos. Caracterizada a relação de aderência temática entre a decisão reclamada e a decisão precedente. 4. Identidade entre os acervos fático-probatórios da ação de improbidade e da ação penal trancada pelo STF nos autos do HC 158.319/SP. 5. Negativa de autoria como razão determinante do trancamento do processo penal. Obstáculo ao reconhecimento da autoria na ação civil de improbidade. Independência mitigada entre diferentes esferas sancionadoras. Vedação ao bis in idem. 6. Liminar confirmada. Reclamação procedente. Determinado o trancamento da ação civil pública de improbidade em relação ao reclamante, com sua exclusão do polo passivo. Desconstituição definitiva da ordem de indisponibilidade de bens. (STF, Reclamação 41.577, Rel. Min. Gilmar Mendes, Dje. 11.3.21)

15 LOBO DA COSTA, Helena. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docência em Direito Penal) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 119 e 222.

Otávio Espires Bazaglia
Advogado Criminalista, especialista Processo Penal e pós-graduando em Direito Penal e Criminologia.

Guilherme Lobo Marchioni
Advogado criminalista. Mestrando em direito pela PUC-SP.

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