As doações aos Fundos de Direitos da Criança e do Adolescente e a possibilidade de sua vinculação por parte dos doadores específicos
Fernando Gomes de Souza Ayres*
Tal possibilidade tem suscitado discussões apaixonadas, posicionamentos favoráveis e contrários, em diferentes graduações de concordância e discordância. O fato é que a questão deve ser enfrentada, isenta de preconceitos e pré-julgamentos, dentro do espírito de convergência de interesses entre iniciativa privada e o poder público, próprio do Terceiro Setor. Sem a pretensão de esgotar o assunto, mas com o objetivo de procurar esclarecer alguns de seus aspectos mais importantes, a seguir, passamos a analisar o tema.
(a) O conceito de doação condicionada
O instituto da doação, tal qual definido no artigo 538 do Código Civil (“CC”) (clique aqui), constitui-se na liberalidade de qualquer pessoa em transferir bens e vantagens integrantes do seu patrimônio para o de outra. Além de constituir uma liberalidade, para a doação se concretizar é preciso que haja a intenção de doar (o chamado “animus donandi”). Tal assertiva mostra-se importante, na medida em que há casos em que encontramos o aspecto da liberalidade, mas não a intenção de doar (no comodato ou no mandato gratuito, por exemplo).
Fruto de uma liberalidade dotada de intenção, a doação pode perfeitamente ser condicionada ou vinculada a determinado fato, ato ou destinação. Aliás, o artigo 553 do CC determina que o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, nas hipóteses de beneficiarem o doador, terceiros ou serem de interesse geral.
A intenção de doar, elemento essencial para caracterizar uma doação, pode ser constituída por elemento condicionante determinado pelo doador, fazendo com que o bem a ser doado tenha obrigatoriamente destinação específica, sob pena de a doação não se concretizar. A transferência de patrimônio que impõe determinada condição é plenamente aceitável, passível, inclusive, de ser recusada pelo donatário que poderá optar por não receber a doação tendo em vista da condição previamente imposta pelo doador.
É o que ocorre com as doações diretas efetuadas por pessoas, físicas ou jurídicas, a determinadas entidades sem fins lucrativos, sejam de assistência social, de defesa do meio ambiente, ligadas a projetos de finalidade social. O doador simplesmente escolhe a quem destinar a doação, por razões que vão desde o interesse de marketing social, passando pelo interesse direto na melhoria da comunidade na qual estão inseridos, até os casos de doações efetuadas pelo simples espírito de solidariedade do ser humano visando auxiliar pessoas necessitadas.
Nesses casos, é simples perceber e aceitar a legitimidade da vinculação da doação; o direito de escolha do doador acerca da destinação do objeto de sua doação é evidente e inquestionável.
Contudo, a possibilidade de vinculação, para alguns, não seria tão clara quando a doação tem como destino os FDCAs, que possibilita, inclusive, o uso de incentivo fiscal previsto no artigo 260 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“ECA”), aprovado pela Lei nº 8.069, de 13.07.1990 (clique aqui). Em razão de tal entendimento, a questão acerca da legalidade e, até, da moralidade da vinculação nessa hipótese merece ser analisada com mais cautela.
(b) As doações aos FDCAs e a possibilidade de vinculação
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227 (clique aqui), determina como dever da “sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
No mesmo sentido, o ECA reitera tal dever e, especificamente, ao tratar da atuação estatal no cumprimento tal incumbência, define como política pública de atendimento aos direitos da criança e do adolescente a implementação de ações governamentais e não governamentais, nas diversas esferas de governo, tendo como uma de suas diretrizes a criação de Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (“CDCAs”).
Pois bem. Instituídos os CDCAs, foram lhes atribuídas certas funções, entre elas a de fixar os critérios de utilização dos recursos doados aos FDCAs. Além disso, cumpre aos CDCAs Municipais efetuar o registro prévio das entidades não governamentais voltadas à proteção da criança e do adolescente e que estejam estabelecidas em seus territórios. É critério essencial para a efetivação de tal registro que as entidades interessadas tenham planos de trabalho compatíveis aos princípios estabelecidos no ECA (artigo 91, parágrafo único, item “b”).
Nesse contexto, o artigo 260 do ECA também possibilitou aos contribuintes a dedução do imposto devido, na declaração do Imposto de Renda (“IR”), do total das doações realizadas aos FDCAs, devidamente comprovadas, em limites estabelecidos em Decreto do Presidente da República. O limite de dedução para as pessoas jurídicas ficou estabelecido em 1% do IR devido, benefício aplicável tão somente às empresas que adotem o regime de apuração do IR pelo lucro real, e para as pessoas físicas, o limite é de 6% do IR devido.
Posto isso, encontramos um ambiente jurídico no qual existe a possibilidade de que pessoas físicas ou jurídicas realizem doações aos FDCAs, cujos recursos serão aplicados sob critérios definidos pelos CDCAs em entidades previamente registradas. De plano, portanto, não existe qualquer restrição legal ao direito de escolha dos doadores quanto ao projeto no qual pretenda direcionar sua doação.
Desde que a entidade não governamental seja previamente registrada no respectivo CDCA e devidamente habilitada para recebimento de recursos do FDCA, mediante convênio ou termo de parceria, não haveria óbice algum aos doadores em pretender destinar todo ou parte de sua doação para determinada entidade ou projeto.
Aliás, é importante mencionar que não há que se falar em violação de princípios de transparência ou de controle administrativo, inerentes à utilização de recursos de natureza pública, como razão para impedir qualquer forma de vinculação entre a doação e determinada entidade.
Inegavelmente, foi criado um ambiente de controle público prévio das entidades sem fins lucrativos ligadas à proteção da criança e do adolescente, dentro do qual é necessário um registro nos CDCAs de sua jurisdição (que só é concedido com o preenchimento de requisitos pré-determinados). Não obstante, existe ainda o controle inerente à própria assinatura de convênios e termos de parceria, que exige uma prestação de contas detalhada, sendo que qualquer irregularidade cometida na utilização de recursos é submetida à fiscalização do Tribunal de Contas e do Ministério Público em cada nível de governo.
Não se trata, dessa forma, de repasse de recursos sem qualquer controle ou critério previamente previsto na legislação, uma doação “casada” com destinação obscura e de utilidade duvidosa à causa da criança e do adolescente. O CDCA registra determinada entidade, um termo de parceria (por exemplo) é firmado e, se necessário, recursos resultantes de doação seriam, atendendo à vontade do doador (o já mencionado animus donandi), destinados à realização do projeto específico.
É fundamental lembrar, uma vez mais, que a doação pressupõe a liberalidade e, mais importante que isso, a vontade ou intenção do doador em concretizar a doação. Assim, sem que essa vontade seja atendida de forma plena mediante a possibilidade de que o doador interfira no destino do objeto de sua doação, é certo que os recursos captados pelos FDCAs originados de doações se tornariam cada vez mais escassos, em completo descompasso com o objetivo fundamental previsto pelo ECA e, em última análise, pela Constituição Federal, qual seja, a defesa dos direitos da criança e do adolescente.
A existência da faculdade do aproveitamento de incentivo fiscal, ou mesmo considerar de natureza pública os recursos doados, também não poderia constituir obstáculo à possibilidade de vinculação da doação a projeto específico. Em primeiro lugar, parece-nos que tanto a fruição do incentivo como o fato de o recurso doado ter sido disponibilizado à administração pública, na figura dos CDCAs, ocorrem em um momento jurídico posterior ao da concretização da doação. A doação é ato jurídico independente e precedente, que apenas se concretiza mediante uma ação de liberalidade imbuída de intenção de doar.
A doação pode até ser motivada pelo incentivo fiscal disponível àqueles que a realize, mas é ato jurídico independente. A dedução do IR devido se dá após a doação, envolvendo partes (contribuinte e Receita Federal) distintas daquelas que figuraram no ato da doação (doador e CDCA).
Além disso, é sempre importante lembrar que o motivo, seja ele de natureza tributária, é irrelevante na constituição do ato de doação. Aliás, a esse respeito, vale recordar o entendimento de Agostinho Alvim, em sua obra “Da Doação” (Ed. RT, 1963, página 11), de que “o motivo, porém, que tiver levado o doador a doar, se é amor, amizade, vaidade, ou temor da censura alheia, isso não importa, porque não constitui elemento da doação (...)”.
A par disso, a natureza do recurso a ser doado não pode ser considerada como pública; os bens do doador, seja pessoa jurídica de direito privado ou pessoa física, tem origem privada. Portanto, a doação a ser realizada tem como objeto bens privados, mesmo que a destinação final dos recursos tenha caráter público. Frise-se, estamos diante de um ato jurídico prévio independente (doação), não obstante a destinação posterior dos recursos ser pública; nunca é demasiado lembrar que sem a doação, ato antecedente, não há recursos a serem destinados a finalidades públicas que se pretende atingir.
Poderia se afirmar, ainda, que os recursos a serem utilizados nos projetos voltados aos direitos da criança e do adolescente teriam natureza pública, adquirida no momento em que os recursos ingressaram nos FDCAs. Mesmo assim, tal fato não suprime a vontade expressada pelo doador, em ato jurídico de direito privado independente e anterior, que deve ser respeitada sob pena de tornar o ato de doação nulo. Além disso, a fixação dos critérios e a utilização dos recursos pelas entidades, como visto, estão sob controle da administração pública, sujeitas a fiscalização inclusive, o que significa afirmar que princípios básicos de administração pública (legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade), quando da utilização dos recursos, mesmo com sua destinação escolhida pelo doador, serão preservados.
(c) Conclusões
Como visto, a doação aos FDCAs não poderia fugir à natureza de qualquer outra doação, dotada do caráter de liberalidade composta pela essencial intenção de doar. Nesse sentido, como fruto de doação que são, os recursos a serem destinados aos FDCAs poderiam ser vinculados a determinados projetos e entidades, de acordo com a escolha do doador.
Por outro lado, é preciso considerar que aos CDCAs, enquanto entidades de atendimento que são, cumpre a tarefa de planejar e executar programas de proteção sócio-educativas destinados a crianças e adolescentes (artigo 90 do ECA). De fato, ninguém melhor que os CDCAs para identificar necessidades em suas áreas de atuação, realizar diagnósticos e formatar políticas públicas ligadas à proteção dos direitos da criança e do adolescente.
Assim, tendo em vista a fundamental importância que os recursos oriundos de doações aos FDCAs têm como instrumento de financiamento de ações de proteção da infância e da adolescência e que a possibilidade de vinculação serviria como elemento para atrair mais doadores, entendemos que a criação de norma que estabeleça critérios para a vinculação de doações seria a forma de pacificar as discussões em torno da questão.
Caberia aos CDCAs diagnosticar as necessidades locais de suas respectivas áreas de atuação, apresentar o rol de projetos e entidades que atendam a tais necessidades, para que fosse possível oferecer ao doador a liberdade de escolher para qual projeto, inserido em determinada política pública selecionada pelo CDCA, quer destinar sua doação. O doador saberia, inclusive, a quais entidades, previamente registradas e habilitadas para atender determinada necessidade, seus recursos seriam destinados.
Nesse cenário, evidentemente, seria fundamental que a sistemática criada para a vinculação de doações também contemplasse a retenção de percentual pré-estabelecido do montante doado (algo em torno de 10% a 15%, para que não desestimule a doação), a ser destinado pelos CDCAs a projetos e necessidades que tenham menor atratividade entre os doadores, mas não menos importantes e essenciais na defesa da infância e da adolescência.
A doação aos FDCAs não pode ser considerada apenas como instrumento de financiamento de ações e políticas públicas de defesa da criança e do adolescente, mas como poderoso instrumento multiplicador de consciência social, de comprometimento da sociedade em favor da causa da infância e da adolescência. Dessa forma, toda e qualquer ação destinada a aumentar o número de doadores, medidas como a aprovação do PL 1.300/99 (que abrirá a possibilidade de doação, com aproveitamento de incentivo fiscal, para um número muito maior de doadores do que existe hoje) ou, ainda, como a possibilidade da vinculação da doação a determinado projeto ou entidade, de acordo com a escolha do doador, são mais do que bem vindas, são vitais.
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1O PL 1.300/99, em trâmite na Câmara dos Deputados tem como inovações, entre outras, possibilitar que empresas tributadas com base no lucro presumido ou arbitrado utilizem o incentivo e permitir que pessoas físicas que apresentem declaração de IR pelo modelo simplificado possam realizar doações aos Fundos de Direito da Criança e do Adolescente e usufruir de incentivo fiscal relativo ao Imposto de Renda.
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*Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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