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Pandemia, STF, liberdade religiosa e igrejas “fechadas”: A vergonha causada pelo descumprimento do “nem tudo que é lícito me convém”

Cabe a pergunta: era mesmo necessário e conveniente bater à porta do STF e pedir a abertura de igrejas e templos em meio ao caos do sistema de saúde nacional.

26/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Desde a chegada do coronavírus ao Brasil (fevereiro/2020), não tem sido fácil lidar com o intruso desconhecido. Não bastassem todas as mazelas que o Brasil já enfrentava, o invasor forçou-nos todos a realizar grandes mudanças e nos trouxe imensas perplexidades. Fala-se que o coronavírus dividiu a história do mundo em “BC” (before corona) e “AC” (after corona).

Como testar e identificar sua presença? Não havia exames próprios e nem testes. Como tratar os pacientes infectados? Não havia vacina e nem medicamento específico, só os “off-label” questionáveis sob todos os aspectos. Como prevenir o contágio? Foi diante desta última pergunta que o bom senso falou mais alto, pois finalmente havia uma certeza no mar de dúvidas: as medidas sanitárias preventivas, como uso de máscara, higiene e sanitização das mãos com álcool gel, isolamento social e restrições temporárias variadas, inclusive com fechamento de ambientes passíveis de gerar aglomeração.

Avançamos em alguns pontos, mas paramos na falta de planejamento no combate ao vírus, falta vacina, falta de estrutura, falta de responsabilidade dos que não usam máscara e inobservam o isolamento social. Tudo isso potencializou os danos causados pela covid-19 e chegamos ao colapso do sistema de saúde nacional com um longo período de mais de 4 mil óbitos ao dia no Brasil.

E do dia 03 até o dia 08 de abril vimos explodir no Brasil a discussão sobre a possibilidade de estados e municípios editarem normas apelidadas de “fechamento de igrejas”, por autorizarem restrição temporária da realização de atividades religiosas coletivas presenciais, como forma de enfrentamento da emergência sanitária decorrente da pandemia de covid-19. Houve uma ala dos Cristãos que viu no fechamento temporário dos templos e igrejas violação à liberdade religiosa. Diversas ações foram ajuizadas para questionar as restrições.

Mas cabe a pergunta: era mesmo necessário e conveniente bater à porta do STF e pedir a abertura de igrejas e templos em meio ao caos do sistema de saúde nacional, sem leitos de UTI, no limite do estoque de oxigênio hospitalar, sem vacina suficiente, com ineficácia total das medidas de prevenção parcialmente cumpridas e com tão elevado número de mortes diárias causadas pela covid-19 [4 mil óbitos ao dia]?

O exercício de Direitos segundo “Paulo de Tarso” e o critério da conveniência

O incomparável apóstolo Paulo escreveu “todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm” (Coríntios, capítulo 6, verso 12. Versão Almeida Corrigida).

No contexto em que foi escrito, Paulo reprovava os Cristãos da igreja em Corinto porque “um irmão vai ao tribunal contra outro irmão1, o que o Apóstolo duramente repudiou dizendo “o fato de haver litígios entre vocês já significa uma completa derrota2, e, ainda, disse ser preferível sofrer prejuízo a ter que litigar, sobretudo quando os litígioscausam injustiças e prejuízos, e isso contra irmãos3.

Portanto, é a Bíblia que diz: “nem tudo que é lícito me convém” e aí inclui o ato de litigar.

E esse poderoso e didático trecho, de importância capital para os Cristãos, nunca ecoou com tanta adequação como no momento em que vivemos.

Sim, estou a falar da inconveniência para não dizer do absurdo, na minha opinião – do debate que tomou o país desde que em 3/4/21 o culto ministro Kássio Nunes, do STF, concedeu liminar na ADPF 701 e esvaziou as normas e atos de estados e municípios que a seu juízo “proíbam completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da covid-194. A famosa “proibição de culto presencial na igreja”. Ou seja, suspendeu as normas que, visando conter aglomerações difusoras do coronavírus, determinavam restrições aos templos e igrejas, dentre as quais a restrição extrema do fechamento temporário.

Liminar para lá [em 3/4/21, na ADPF 701, o Ministro Kássio Nunes, do STF, suspendeu a restrição de cultos e missas coletivas] e liminar para cá [em 5/4/21, na ADPF 811, o Ministro Gilmar Mendes negou medida cautelar, mantendo as restrições], e a discussão se encerrou em 8/4/21, com a acachapante derrota por 9x2 da tese da ala “contra fechamento”. Deu o óbvio ululante: o Plenário do STF julgou que é constitucional temporariamente restringir a liberdade de culto presencial para assegurar as garantias à vida e à saúde, dado o elevadíssimo número de óbitos diários [mais de quatro mil mortes por dia] e o colapso do sistema de saúde nacional.

Voltando-se à pergunta: era conveniente pedir a abertura? Movimentar o STF?

É óbvio que não era e não é conveniente e nem adequado pedir a abertura de templos e igrejas para reuniões coletivas neste momento tão grave da pandemia. É lícito pedir a abertura das igrejas? Claro que sim! Nossa Constituição trata com muita seriedade o tema da liberdade religiosa e garante a liberdade de crença e de culto sem interferência do Estado [art. 5º, VI e VIII]. Mas sejamos sinceros: é conveniente pedir para abrir nos locais com explosão no número de óbitos?

Não é. Pesa ter que dizer que essa ida ao STF trouxe opróbrio para a grande maioria dos Cristãos que não se viram representados nas ADPF’s. Isso mesmo, vergonha! Caberia até um pedido de desculpas à sociedade e aos Ministros do STF pela veiculação de tema tão inconveniente naquele instante.

E não tem nada a ver com ser leniente com violação à liberdade religiosa. Isso porque a restrição que ensejou a discussão veio para proteger os próprios Cristãos. O fechamento provisório dos templos e igrejas era medida sanitária preventiva adequada. E mais, não há nas normas estaduais ou municipais [tanto as descritas na ADPF 701 quanto na ADPF 811] perseguição religiosa, perseguição de pastores, de líderes, de fiéis.

Por que era inconveniente pedir a abertura de Templos e Igrejas?

Vamos, primeiro, entender o que o STF não fez: o STF não mandou fechar igrejas! Se alguém lhe disser o contrário, tenha cuidado, pode ser um “lobo em pele de cordeiro” tentando te confundir ou só um desatento mesmo e que não leu as normas questionadas, não leu a decisão liminar do Ministro Gilmar Mendes e nem o acórdão da ADPF 811 e pouco sabe sobre liberdade religiosa.

O que então o STF fez? Muito simples: disse que os estados e municípios podem, repito, podem, instituir medidas sanitárias preventivas, dentre as quais o fechamento provisório de templos e igrejas.

Vamos as razões da decisão do STF:

Vivíamos uma sequência de semanas com mais de 4 mil mortes diárias causadas pela covid-19, com falta de leitos de UTI, enfim, o colapso no sistema de saúde.

Há consenso científico de que o isolamento social e a restrição a aglomerações são necessários ao combate à pandemia.

Havia elevado risco de contaminação nas atividades religiosas coletivas presenciais.

A medida buscou proteger não só os fiéis, mas toda a população, porque os religiosos circulam e podem ser vetores de transmissão do coronavírus.

A medida não impediu a realização de cultos não-presenciais.

Não era exclusiva para religiosos. Também restringiam atividades esportivas, políticas, etc, em que haja aglomeração.

Quando dois princípios como direito à vida e liberdade religiosa se contrapõem em um caso concreto, é preciso ponderar se a medida é necessária, adequada e proporcional, ou seja, se o que se ganha com a restrição é maior do que o que se perde.

As restrições previstas no decreto paulista [objeto da ADPF 811] eram adequadas e necessárias para conter a transmissão do vírus e evitar o agravamento do colapso do sistema de saúde.

Portanto, não havia como enxergar (“miopiamente”) violação à liberdade religiosa (de crença e de culto) diante de restrições voltadas à prevenção da covid-19 e destinadas a salvar vidas.

Conclusão

Se o Apóstolo Paulo fosse o autor das ADPF’s ele atravessaria uma petição de desistência (claro que a ação de controle abstrato de constitucionalidade não comporta desistência, mas me permito um ensaio lúdico) e usaria como fundamento o “nem tudo que me é lícito convêm” e nos relembraria de sua frase em que assenta a máxima de que os litígios não podem causar “injustiças e prejuízos, e isso contra irmãos” (I Cor. 6:7-8). Abrir igrejas naquele instante era sinônimo de prejuízos aos irmãos e aos não irmãos. Expor pessoas a risco de contágio é ato irresponsável.

De outro lado, é evidente que a intenção dos autores das ADPF’s era a mais elevada. Os fundamentos jurídicos vertidos nas petições são elogiáveis, coerentes e muito elucidativos, fruto de aprofundado estudo e são mesmo uma fonte atual de consulta sobre o tema da liberdade religiosa.

Contudo, com todas as vênias, as sustentações orais foram por demais primárias e fariam algum sentido se estivéssemos em um culto e não na tribuna de um julgamento. Aliás, houve “amicus curiae” que teve a pachorra de invocar o texto “Pai, perdoa-lhes por que não sabem o que fazem”, atribuindo pejorativamente aos ministros do STF, e isso sob as lentes das câmeras da TV Justiça e aos olhos de milhares de pessoas que assistiam o julgamento. O que foi isso senão uma completa subversão do texto bíblico, tirado por completo de seu contexto. Ali olvidou-se a máxima da hermenêutica bíblica relativa ao contexto, que é bem resumida em Isaías 28:10 e que ilustra que para entender a Bíblia deve-se ler “um pouco aqui e um pouco ali”, ou seja, sua inteireza e dentro de seu contexto. Como Cristão, confesso que me senti envergonhado naquele instante.

Pouquíssimas pessoas abriram as petições e os pareceres jurídicos que deram sustentação aos pedidos das ações (ADPF’s).

Mas milhares e milhares de pessoas assistiram a transmissão do julgamento no STF pela TV Justiça. E o que encontraram foram grande parcela das sustentações com ataques, com afronta e desvirtuando o texto bíblico e descumprindo os ensinamentos do Apóstolo Paulo.

Diante de tantos argumentos favoráveis à restrição provisória de abertura de igrejas e templos, e, de outro lado, diante de sustentações orais tão impróprias, não surpreende que algumas pessoas questionem o verdadeiro motivo subjacente ao pedido de suspensão das normas restritivas, como se ouve por aí de que seria o meramente arrecadatório em face da queda dos dízimos.

A beleza do assistencialismo social de muitas entidades religiosas, o trabalho em hospitais e na recuperação de adictos, a cooperação logística que fazem para aplacar o sofrimento das pessoas em desastres naturais, o relevante ministério que realizam nas prisões e que tanta transformação tem trazido aos reclusos e seus familiares e o papel de formar bons cidadãos na sociedade, essa imagem saudável que as instituições religiosas possuem por pouco não se perdeu ante a inconveniência dos pedidos de reabertura de igrejas naquele momento.

Ao final, restou muito claro que não havia violação à liberdade religiosa e o pedido nas ADPF’s era inconveniente. Cultos on-line já haviam aflorado no Brasil. A crença podia ser exercida de forma remota e o culto mediado por recursos tecnológicos era uma opção razoável para aquele curto período de restrição à abertura das igrejas e templos.

O pedido nas ADPF’s “caiu do cavalo”. Agora falta passar pela experiência da “estrada de Damasco”, qual Paulo. Que a rusga causada às religiões pela inconveniência do pedido das ADPF’s sirva de lição para as futuras tensões e conflitos que a liberdade religiosa há de enfrentar, para que não incorramos no erro de ver violação à liberdade religiosa onde não há; mas que quando realmente existir, tenhamos sabedoria para tematizar conceitos jurídicos com propriedade perante o STF ou outras cortes de justiça, sem pregar sermão descontextualizado que nem mesmo em uma igreja faria sentido.

__________

1 I Cor. 6:6.

2 I Cor. 6:7.

3 I Cor. 6:7-8.

Wilson Knoner Campos
Professor do IBDCNI - Instituto Brasileiro de Direito, Conformidade e Normas Internacionais. Sócio do escritório Bertol Sociedade Advogados.

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