Natureza penal da sanção por improbidade administrativa
Vanderlei Aníbal Júnior*
Sérgio Roxo da Fonseca**
1. Noções Introdutórias
Talvez em razão do tamanho do problema, a batalha por uma boa administração pública, a contar de 1988, foi envolvida em forte dose de voluntarismo o que empalideceu as conquistas alcançadas pela reflexão metodológica. Passada a primeira onda, se assim se pode expressar, a segunda onda certamente refletirá o alto padrão da nossa construção jurídica.
É possível afirmar que o trabalho por uma boa administração pública, doravante, dependerá também de uma boa aplicação do sistema jurídico de controle, tanto quanto possível despido de qualquer espécie de voluntarismo.
Elemento imperial ao desenvolvimento desse trabalho é o perfeito entendimento da Lei Federal 8.429, promulgada em 1992 (clique aqui), verdadeira ferramenta para a edificação de uma boa administração pública.
Referida norma dispõe especificamente acerca do previsto no artigo 37, §4º, da Constituição Federal de 1988 (clique aqui), que determina a aplicação de duríssimas penas contra os condenados por atos de improbidade administrativa.
O que seria improbidade administrativa? Qual seria a natureza da sanção incidente sobre os ímprobos? Civil ou penal? Se penal, pune-se por dolo ou culpa ou somente por dolo? É possível pasteurizar a aplicação da sanção despida de qualquer espécie de paixão, inclusive as mais dignas e inevitáveis? Por que é civil a ação civil de improbidade e não penal?
O presente trabalho pretende muito mais destacar questões do que oferecer respostas.
À primeira questão José Antonio Lisboa Neiva1 responde que:
“a improbidade administrativa caracterizar-se-ia por ação ou omissão dolosa do agente público, ou de quem de qualquer forma concorresse para a realização da conduta, com a nota imprescindível da deslealdade, desonestidade ou falta de caráter, que visse a acarretar enriquecimento ilícito, lesão ao patrimônio das pessoas jurídicas mencionadas no art. 1º da LIA, ou ainda, que violasse os princípios da Administração Pública, nos termos previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da citada lei”.
Da atenta leitura da doutrina já se esbarra em conceitos de valor que, obviamente, variam de pessoa a pessoa, como de tempo em tempo, conferindo altíssima insegurança no momento da aplicação da norma. Veja-se que o autor referido afirma que a improbidade administrativa também se caracteriza pela “falta de caráter”. Qual é o significado jurídico da “falta de caráter”? É possível formular uma condenação desonrosa reconhecendo que o réu agiu com “falta de caráter”? Seria, neste passo, obrigação do legislador, seguindo deveras os preceitos do direito penal, aplicar o princípio da taxatividade2 a fim de evitar maiores transtornos e garantir a devida segurança jurídica à comunidade?
Portanto, para a garantia da segurança jurídica entende-se que a imprecisão dos conceitos elencados na legislação em comento acarreta a sua não-aplicação, haja vista que isto acaba por infringir a máxima da legalidade, haja vista que estar-se-ia dando um ‘cheque em branco” ao julgador no momento da aplicação da norma, sendo que o agente estaria sendo punido por algo que, em sua consciência era moral, mas para o aplicador, imoral. Restaria a questão: como agir uma pessoa segundo seus preceitos se estes não são os mesmos daquele que o julgará? É isto “falta de caráter”?
Passando adiante, George Sarmento3 menciona que, em face da existência da Lei de Improbidade Administrativa, o povo, pela lei, fez a opção pela punição daqueles que agem contra os interesses públicos.
Neste passo, não se restringiria a improbidade administrativa a mero desfalque patrimonial contra o erário público, senão também diversos outros atos, todos devidamente tipificados, que atingissem outros bens jurídicos, tal como o bom funcionamento dos serviços públicos, a moral administrativa, a ética funcional, dentre outros.
Assim, colacionando o entendimento de José Armando da Costa4 tem-se que para a caracterização do ato de improbidade administrativa basta a tipificação legal do ato como tal e que o agente incorra na conduta vergastada pela lei, não necessitando que ocorra dano efetivo. Isto é, bastaria o mero deleite administrativo em praticar alguma das condutas legalmente tipificadas, não se exigindo a ocorrência de dano para o exaurimento de sua intenção ímproba. Tal como ocorre nos crimes classificados como formais.
Segundo tal opinião, deve ser punido não apenas o agente intencionalmente ímprobo, mas também aquele que não reúne condições suficientes para gerir a máquina pública, para bem utilizar os recursos e interesses públicos confiados aos administradores públicos; enfim, aquele que exerce gestão temerária. Por dolo e culpa? Ou somente por dolo?
Vê-se, portanto, que a improbidade administrativa, para caracterizar-se como ato contrário ao direito, deve estar plenamente tipificada na lei. E assim razoavelmente está.
Para o efeito da lei, reputa-se agente público todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades de direito público (art. 2º).
Serão aplicáveis as cominações legais a todos aqueles que mesmo não sendo agentes públicos induzam ou concorram para a prática de ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma, direta ou indireta (art. 3º).
A imputação da conduta está na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, parágrafo 4º explicita:
“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Estas penas foram reproduzidas pela norma infraconstitucional, Lei 8.429/92, que em seu artigo 12, previu, além das já mencionadas, revelou uma nova, qual seja, a vedação de contratar com o Poder Público e de receber benefícios ou incentivos fiscais, direta ou indiretamente.
2. Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa ou simplesmente Ação de Improbidade Administrativa
Tem-se por inarredável a necessidade de propositura da competente ação para punir aqueles agentes que, dolosamente, agiram conforme as condutas tipificadas na lei, desrespeitando o seu comando nuclear. Vale lembrar que referida ação deverá estar norteada pelos princípios constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. .
Vozes têm propugnado pela adoção da ação civil pública (Lei 7.347/85 - clique aqui) para a apuração dos atos de improbidade administrativa, reconhecendo a sua natureza civil e não penal.
O motivo para tal entendimento, conforme se averigua, é o fato de que a Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso III, determina que a ação civil pública é o meio processual adequado, a ser manejado pelo Ministério Público e outras entidades, para a defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros direitos difusos e coletivos.
Alega-se que os atos de improbidade administrativa atingem o erário público, a moralidade administrativa e o bom funcionamento dos serviços públicos e, neste sentido, inseririam-se no conceito amplo de “outros direitos difusos e coletivos”, haja vista afetarem, ainda que de forma indireta, toda a sociedade.
É importantíssimo ressaltar que parte da doutrina, enfrentando forte oposição jurisprudencial, sustenta que o fato do constituinte ter-se utilizado do adjetivo “outros”, para dizer “outros interesses difusos e coletivos”, outra coisa não quis dizer que tantos os interesses nomeados – proteção do patrimônio público e social e meio ambiente - , como os não nomeados –“outros interesses difusos e coletivos” – somente poderão ser tutelados pelo Ministério Público se e enquanto forem “ difusos e coletivos”. A contrário senso, o constituinte não teria reconhecido legitimidade para o Ministério Público tutelar interesses senão interesses difusos e coletivos, nomeados ou não nomeados pelo inciso III, do art. 129. Seguramente, a opção do constituinte tem raiz no exercício histórico do órgão. Neste sentido está a percuciente análise do problema elaborada por Pedro da Silva Dinamarco5.
No entanto, a norma infraconstitucional alargou a amplitude desses poderes, autorizando o Ministério Público pugnar por interesses personalizados, como quase todos referidos ao “patrimônio público”, ainda quando já amparados por procuradorias localizadas. Num primeiro contato, a norma infraconstitucional parece brigar também com a regra expressada pela CF, art. 128, §5º, II, letra “d”, que proíbe o exercício “ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública”.
Tal alargamento de normas constitucionais, provocado pela norma infraconstitucional, foi bem acolhido tanto pela doutrina como pela jurisprudência, revelando a necessidade de uma atuação tão efetiva quanto possível do Ministério Público em aras de improbidade administrativa, ainda quando se registre sofrimento metodológico do sistema.
Afirma-se também a ação que tende a apurar a prática dos referidos atos tem natureza jurídica e delineamento próprios. Tratar-se-ia de uma ação híbrida, um “tertius genus”, tal como um animal com juba, dentes e garras de leão, sem ser leão e nem leoa. Tudo isto devido, conforme se destaca, ao fato de a Lei de Improbidade ter regulado plenamente a matéria acerca do processo para a respectiva apuração, não fazendo menção à remessa subsidiária da matéria ao apreço da lei de ação civil pública, senão somente ao Código de Processo Penal (art. 17, §12, Lei de Improbidade Administrativa).
Neste passo, não se falaria <_st13a_personname w:st="on" productid="em Ação Civil Pública">em Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, mas apenas em Ação de Improbidade Administrativa.
Hely Lopes Meirelles6 destaca:
“(...) freqüentemente chamando-a de ação civil pública de improbidade administrativa. Trata-se, a nosso ver, de prática de pouca técnica jurídica, pois a ação de improbidade administrativa tem natureza, contornos e regramento próprios, não se confundindo com aqueles específicos das ações civis públicas em geral”.
Assim, inicia-se fazendo a devida cisão dos dois institutos em comento: de um lado a Ação de Improbidade Administrativa e, de outro, Ação Civil Pública, cada qual com natureza e contornos próprios.
A Ação de Improbidade, que visa a apuração dos atos de improbidade administrativa, de caráter penal, não deve ser confundida, por mera imprecisão técnica ventilada nos tribunais e doutrina, com a Ação Civil Pública, de caráter civil.
Diz-se isto com base nas afirmações já reveladas e nas que se farão presentes nos próximos tópicos, ressaltando-se, de plano, que nas Ações Civis Públicas somente pode-se dar a condenação no cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer, ou condenação em dinheiro.
Já na Ação de Improbidade, devidamente delineada na Lei 8.429/92, tem-se outras condenações, que não as previstas na Lei da Ação Civil Pública, podendo, aqui, citar, dentre outras, a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública.
Passa-se, portanto, a utilizar o termo Ação de Improbidade uma vez que corrobora-se com a tese que segrega referida ação daqueloutra denominada ação civil pública por ato de improbidade administrativa, pois, como ventilado, é ação disciplinada quase que por completo pela legislação própria (Lei 8.492/92), bem como ausente qualquer menção de remessa aos institutos da Ação Civil Pública, fazendo subsidiárias as normas de processo penal.
3. Natureza Jurídica da Ação de Improbidade
Cumpre destacar inicialmente que não é o nome dado a uma entidade ou instituto jurídico que os fará possuir esta ou aquela natureza. É de realce que se indague acerca da natureza jurídica dos institutos e entidades para, assim, se determinar em qual disciplina se encontra e se delineia.
Sobre o tema averba Geraldo Ataliba7:
“A designação das entidades e institutos do direito é muito importante. É condição de trabalho seguro, objetivo e cientifico.
“Os nomes empregados em ciência devem corresponder a conceitos científicos unívocos. Nem sempre, entretanto, o legislador atende essa recomendação, ou por não ser um especialista, ou por malicia – no intuito de subtrair-se a exigências constitucionais – e adota terminologia errada ou equivocada.
“Disso decorre que o interprete não pode guiar-se pelas designações que o legislador dá aos institutos, mas só pelo critério objetivo cientifico aqui exposto. É imperativo que assim proceda, pena de deturpar o funcionamento do sistema jurídico, deformando-o e atingindo-o na sua viga mestra, a sua rigidez”.
Partindo desta premissa, há tendência para reconhecer que a ação de improbidade administrativa tenha natureza civil.
Baseia-se tal proposição, fundamentalmente, em três aspectos:
a) abrir vista para uma condenação do responsável ao pagamento de uma indenização correspondente ao prejuízo por ele causado ao patrimônio público (cunho patrimonialista da ação);
b) o fundamento vislumbrado na própria Carta Suprema, qual seja, a parte final do parágrafo 4º, do artigo 37, que revela as penalidades aos atos de improbidade administrativa e diz em seu final “sem prejuízo da ação penal cabível”.
c) por ser de praxe a utilização do termo ação civil pública de improbidade administrativa.
Todavia, há vozes em sentido contrário.
A ação de improbidade administrativa tem a natureza jurídica de uma ação penal, pois no seu bojo aplica-se penas ao acusado, subtraindo-lhe os atributos da cidadania e da vida honrada, ou seja, são-lhe aplicadas penas conceituadas como as mais graves do sistema jurídico em vigor. É o condenado posto “ad metallum” com a suspensão de direitos políticos e proibição de celebrar contratos com órgãos públicos, numa saudosa recordação das penas medievais do direito filipino.
A circunstância de derivar, da sentença, preceito indenizatório de maneira nenhuma descaracteriza sua natureza penal. Das sentenças penais, disciplinadas pelo Código de Processo Penal, também derivam preceitos condenatórios patrimoniais8.
O deslocamento da Ação Penal de Improbidade Administrativa para o âmbito da jurisdição civil reflete mais uma questão histórica e ideológica motivada pela necessidade de restringir prerrogativas de foro entendidas incompatíveis pelos aplicadores do direito, do que uma correta aplicação do ordenamento constitucional.
A segunda corrente enxerga valores superiores na honra, nos apanágios da cidadania e em outros direitos de cunho não patrimonial do que nas questões meramente reparatórias que, conquanto não sejam principais, ainda assim são relevantes e importantes. O labéu da desonra parece ser muito mais grave do que a condenação patrimonial. No entanto, historicamente o direito brasileiro sempre deu muito mais importância a questões patrimoniais do que aos temas referentes à honra e à vida.
Sendo possível deslocar a questão para o campo da lógica formal, seria de se aplicar a conhecida fórmula segundo a qual o sujeito é o predicado, admitindo-se assim que a predicação define o que é o sujeito, quase sempre substituído por uma palavra vazia.
Ação civil é um direito-poder constitucional de provocar o Judiciário em busca da satisfação de um interesse ligado aos verbos “dar”, “fazer” ou “não fazer”.
Ação penal é um direito-poder constitucional de provocar o Judiciário em busca da apenação de um criminoso e, em seqüência, do possível ressarcimento patrimonial.
É possível encontrar derivações em ambas definições. Mas o eixo diferenciador da jurisdição civil e penal não está na reparação do dano, existente em todas duas, mas, sim, na aplicação de uma pena fixada pelo Estado que existe numa e não na outra.
Dentro de tal perspectiva a Ação de Improbidade Administrativa, que aplica pena estatal e às vezes enseja a condenação num preceito reparatório, está muito mais para ação penal do que para ação civil.
Mas razões histórica empurraram a Ação de Improbidade para o âmbito da jurisdição civil. E neste ponto a exigência histórica não se compadeceu do sistema jurídico.
Duas questões relevantes.
A primeira questão. Os operadores do direito ficaram contrariados com o preceito do inciso X, do art. 29, da CF, que assegurou aos prefeitos municipais privilégio de foro, reconhecendo o seu direito de serem processados somente perante o Tribunal de Justiça de seu Estado. O texto é lacônico, razão pela qual não comportaria qualquer exceção. Todavia não foi o que se deu na prática, quando então o preceito constitucional sofreu grave restrição. Passou a ser lido no dispositivo palavras lá inexistentes para se dizer que o constituinte somente reconhecera o foro privilegiado para as ações penais, não para as civis. Daí reconheceu-se a constitucionalidade da norma infraconstitucional que fixou o foro do local dos fatos – tal como no processo penal – para processar os casos de improbidade. Para assegurar o hipotético funcionamento do sistema, foi necessário dizer que a ação de improbidade tem natureza civil e não penal, contorcendo todo o sistema, num realismo condenado pelo que há de melhor na doutrina9.
A segunda questão está ligada à difícil gestação da ação popular e da ação civil pública. A Lei 4.717, de 29 de junho de 1965 (clique aqui), foi colocada em vigor pelo Marechal Castelo Branco, num momento histórico em que a cidadania se encontrava reduzida à raiz quadrada de pó de nada. Pouquíssimos foram aqueles que se aventuraram a trazer as autoridades públicas à barra dos tribunais. A ação popular, no seu nascedouro, apresentava-se atingida de tal inviabilidade que lhe era diagnosticada morte precoce.
Ainda durante esse período e bem refletindo tais fatos, no Primeiro Congresso do Ministério Público Nacional, ocorrido na capital de São Paulo, foram apresentados dois trabalhos significativos nos quais foi estudado o papel da sua atuação do órgão no frente à ação popular.
Recorda-se que originariamente, a lei que disciplinou a ação popular prescrevia que cabia ao Ministério Público atuar sempre ao lado da pretensão do autor ainda quando desprovida de qualquer consistência ou até quando fosse dirigida contra o sistema normativo.
O primeiro trabalho foi apresentado por Jorge Luiz de Almeida10. Pugnava seu autor contra tal visão, sustentado a sua incompossibilidade, sendo o Ministério Público órgão serviente do princípio da legalidade, não fazia sentido exigir que se alinhasse ao lado de pretensões juridicamente impróprias: “O Ministério Público deve atuar na ação popular como o requer o interesse público, não a versão do autor. Não lhe cabe a automática obrigação de defender interesse de quem o processo demonstre, afinal, não ter direito. É ele órgão da lei por determinação constitucional (José Afonso da Silva, Justitia, vol. 56, pág. 96)”.
O segundo trabalho da lavra de Leão Vidal Sion11 propôs lisa e planamente que deveria ser reconhecida a legitimação do Ministério Público para a propositura da ação popular: “Se este – o Ministério Público – é o representante da sociedade, se o objetivo da ação popular é a defesa de interesses da coletividade, ninguém melhor do que a nossa instituição para ser titular obrigatória do seu ajuizamento. Haveria, é certo, a colaboração de qualquer do povo, que tomando conhecimento de irregularidade, participaria ao representante do Ministério Público”.
A idéia que causou vivo tremor entre os presentes. Se o Ministério Público é órgão do Estado, não pode ser autor da ação popular, disseram os que condenaram aquela visão. Era 1971.
Em 1962, em Portugal, o grande mestre André Gonçalves Pereira12, sustentava tese análoga: “Na verdade só este – ou o Ministério Público, forma moderna de ação popular – poderão recorrer diretamente das posturas, porque ao administrado faltará sempre tal legitimidade. E então de duas uma – ou se tem de esperar pela concretização da ofensa através de um ato administrativo, para legitimar o interessado – isto é, tem que se esperar que a mediatividade se transforme em imediatividade ou então excepcionalmente será logo admissível o recurso – mas só nos casos muito excepcionais em que no mesmo ato se contiverem simultaneamente um regulamento e um ato administrativo”.
Fica proposto, “de lege ferenda”, uma revisão da estrutura dessas ações, para adequá-la às exigências do sistema em vigor, consolidando e, se possível, ampliando os poderes conquistados pelo Ministério Público.
Mas a questão é inesgotável. Se os argumentos empurram a doutrina para a concepção penalista da ação, como compreender a dicção constitucional que reserva à jurisdição criminal o conhecimento de outros crimes?
4. Irretroatividade da Lei
Erigida a garantia fundamental, a irretroatividade da lei é outro importante tema que atua no domínio da sanção por improbidade. A se admitir o caráter penal da sanção, estará imunizada de qualquer espécie de incidência nova.
A jurisprudência é firme neste sentido, seguindo o RMS 6182 – STJ:
“I- o Ministério Público Federal ajuizou, com base em dados da CPMI do Orçamento, ação ordinária de improbidade administrativa (lei n. 8.429/92, arts. 12, I, e 9., VIII) contra o impetrante, apontado como integrante da denominada "máfia do orçamento" na câmara dos deputados. dias depois, aforou ação cautelar incidental, instando no seqüestro ‘in limine’ de bens do impetrante "constantes de sua declaração apresentada a Secretaria da Receita Federal". Pediu, mais, nomeação de depósito. O juiz monocrático foi mais longe: decretou o seqüestro dos bens arrolados, bem como seus "respectivos frutos e rendimentos constantes da declaração de renda (bens), pessoa física, exercício (de) 1993, ano-base (de) 1992, ate julgamento final do processo” . O impetrante, não concordando, interpôs agravo de instrumento contra a decisão inquinada de ilegal e abusiva. A seguir, ajuizou mandado de segurança para imprimir efeito suspensivo ao recurso interposto. O Tribunal Regional Federal denegou o “writ”. O sucumbente, não se dando por derrotado, recorreu ordinariamente. Sustentou que a lei n. 8.429/89 cuida mesmo de "seqüestro" e não de "arresto", como entendeu o acórdão atacado. Por outro lado, a lei em foco tem natureza penal, não podendo, assim, retroagir. Só os bens adquiridos após sua promulgação e que seriam susceptíveis de medida constritiva. Ademais, a decisão monocrática foi ultra petita, pois o Ministério Público pediu a indisponibilidade de todos os bens, bem como de seus frutos e rendimentos”. (destacamos).
E mais, Recurso Especial 196932/SP – STJ, consagra tal orientação, ampliando seus limites para afirmar quer bens adquiridos antes do atos de improbidade não podem ser atingidos:
“Tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública visando ao ressarcimento de dano ao erário. A Lei nº 8.429/92, que tem caráter geral, não pode ser aplicada retroativamente para alcançar bens adquiridos antes de sua vigência, e a indisponibilidade dos bens só pode atingir os bens adquiridos após o ato tido como criminoso”. (destacamos)
Conclui-se, assim, pelo transbordamento dos argumentos acima citados, que a lei não retroagirá para prejudicar o réu, somente lhe sendo lícito atingir os fatos futuros.
5. Condenação por Atos de Improbidade Administrativa
A condenação por improbidade é penal ainda quando mesmo proferida em sede de jurisdição civil.
Ressalte-se que as normas penais são aquelas prescritivas de sanções, sejam estas de quaisquer espécies (privativas de liberdade, restritivas de direitos, prestações pecuniárias ou patrimoniais). Ou seja, descrevem uma conduta, e a esta conduta determina a imposição de uma pena ao agente que a comete.
Nesta esteira é brilhante o voto proferido pelo Ministro César Asfor Rocha, seguido pelos Ministros Barros Monteiro, Francisco Peçanha Martins, Vicente Leal, José Delgado, Fernando Gonçalves e Humberto Gomes de Barros, todos do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do HC 22432:
“A Lei nº 8.429/92 prescreve, no seu art. 12, um largo elenco de sanções de sumíssima gravidade, sendo de destacar a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por um lapso de <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="8 a">8 a 10 anos (art. 12, I); a primeira sanção (perda de função pública) é a mais exacerbada do Direito Administrativo Disciplinar e a outra (suspensão dos direitos políticos) é a mais rude exclusão da cidadania.
“A meu ver, a Lei nº 8.429/92 veicula inegáveis efeitos sancionatórios, alguns deles, como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, somente impingíveis por ato de jurisdição penal, o que faz legítima, ao que entendo, a aplicação da mesma lógica sistêmica que se usa nessa forma jurisdicional especializada (penal), onde não se duvida da plena fruição do foro especial por prerrogativa de função.
“De menor relevo, ao que posso ver, que a Lei nº 8.429/92 denomine de civis as sanções de que cogita, pois a natureza das sanções consistentes na perda da função pública e na suspensão dos direitos políticos, por mais que se diga ao contrário, extrapolam abertamente os domínios do Direito Civil e se situam, também sem dúvida, nos domínios do Direito Penal (sancionatório)”
Em semelhante posicionamento já se manifestaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, Ellen Gracie e Gilmar Ferreira Mendes, em seus respectivos votos, no julgamento da ADI – 2797.
Com efeito, afigura-se certo que referida lei, como amplamente defendido em doutrina e jurisprudência, para ser aplicada deve ter a técnica da subsunção do fato tido como típico à hipótese legalmente prevista de forma abstrata (técnica das normas prescritivas).
Esta é a técnica utilizada no Direito Penal. E açambarcada pela lei de improbidade administrativa.
Sobre tal tópico são estas as lições de Zaffaroni e Pierangeli13:
“a lei penal em sentido estrito é a que associa a uma conduta uma pena: lei penal em sentido amplo é a que abarca todos os preceitos jurídicos que precisam as condições e os limites do funcionamento desta relação”.
Posicionamento que é também defendido nas nossas Cortes, valendo mencionar o Recurso Especial 721190/CE sendo relator o eminente Ministro Luiz Fux:
“é uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da lei de improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais...”.
Por questão de bom direito citemos ainda o Recurso Especial número 513576/MG que teve como relator o Ministro Francisco Falcão:
“reconhecida a ocorrência de fato que tipifica improbidade administrativa, cumpre ao juiz aplicar a correspondente sanção”.
Fica claro que para haver a devida punição de caráter penal, como se denota das lições expostas, ao agente do ilícito é preciso que haja uma conduta (omissiva ou comissiva), um fato típico (disposto taxativamente na lei), o nexo de causalidade ligando aquela e a este e, por fim, que aja (dolosa ou culposamente) de modo a provocar ofensa ao bem jurídico tutelado (seja provocando resultados danosos, seja a mera conduta de ofender tais bens).
Por tudo, característica eminentemente penal da lei, não se vislumbrando sequer a possibilidade de caracterização semelhante em qualquer outro ramo específico de nosso ordenamento jurídico.
Vale ressaltar que impossível se torna, seja no processo judicialiforme, seja no processo administrativo, a utilização dos denominados “conceitos jurídicos indeterminados” ou “cláusulas gerais”, como instrumento definidor de tipos. A imprecisão desses conceitos e a ambigüidade dessas cláusulas impedem que a ação delitiva, no seu núcleo, seja por eles definidas. Insiste-se em dizer, seja no processo judicial, seja no processo administrativo.
Quanto à labilidade de sua aplicação, vale a pena ouvir a lição de Emerson Garcia e de Rogério Pacheco Alves14:
“Os conceitos indeterminados normalmente se apresentam na imprecisão conceitual lingüística, na incerteza derivada da necessidade de avaliação da situação concreta subjacente à norma, na necessidade de realização de uma ponderação valorativa de interesses ou na exigência de realização de um juízo de prognose”.
É bem verdade que o legislador penal, por inúmeras vezes, valeu-se da linguagem imprecisa e ambígua, ensejando juízos valorativos, nos tipos penais, como, por exemplo, “inexperiência”, “futilidade”, “torpeza”, etc.
Induvidosamente, a imprecisão conceitual nunca habita o núcleo da ação delitiva. Ninguém pode ser condenado ou absolvido pela sua “futilidade” ou sua “torpeza”, mas, sim, porque matou por motivo fútil ou torpe. A condenação está fincada no verbo “matar”, que leva o juízo ao plano concreto, deslocando para o plano cultural apenas a valoração da conduta, que por motivo torpe, quer por motivo fútil.
Se as sanções por improbidade administrativa têm a mesma natureza jurídica das sanções penais, torna-se impossível definir a ilicitude, que a antecede por meio de conceitos jurídicos indeterminados ou por cláusulas gerais. Repita-se, quer o tema seja empostado judicialmente, quer administrativamente.
6. Dolo na Conduta
Outro aspecto de relevo é a necessidade de dolo na conduta.
De acordo com a quase pacífica doutrina, apesar do artigo 10 da lei em análise (que prevê uma forma culposa do ilícito de improbidade administrativa), somente pode ser punido o agente quando atua dolosamente, ou seja, com o intuito deliberado de agir no alcance dos resultados previstos em sua consciência.
Exegese idêntica é feita no Direito penal, senão vejamos:
Código Penal
Art. 18...
Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente15.
Ou seja, somente aquele que age deliberadamente para a conclusão da finalidade da conduta e, com isto, pratica fato típico, é que pode ser punido.
Com isto não se admite a punição a título de culpa, em todos os seus desdobramentos, quais sejam: negligência, imperícia e imprudência. Todavia, como dantes ressalvado, se a lei prever expressamente a punição a título de culpa, plausível será sua averiguação no campo fático. E assim ocorre.
Apenas o do artigo 10, Lei 8.429/92 prevê uma forma culposa de atuação do agente, quando referida atuação cause prejuízo ao erário público.
Entretanto, há defensores da inconstitucionalidade da referida excepcionalidade do art.10 da lei. Alegam que ninguém é desonesto ou atua de má-fé culposamente, por falta de cuidado. Só age assim aquele que dirige sua conduta nesta finalidade. Abarcam o entendimento de que deve ser punido o agente ímprobo, jamais o inábil16.
Conforme exposto por Lisboa, conquanto alguns propugnam pela declaração da inconstitucionalidade, outros buscam dar máxima eficiência à lei, relatando que onde se lê culpa, que seja esta interpretada por culpa grave ou gravíssima, equiparável ao dolo, ou seja, de todo razoável a feitura de uma interpretação conforme a Constituição para, equiparando a culpa ao dolo, nesse particular, evitar o reconhecimento da inconstitucionalidade do referido dispositivo legal.
Por todo o abordado, estando em consonância as características da Lei de Improbidade Administrativa com as do próprio Código Penal, vemos razões para equivaler as sanções por improbidade às penais.
7. Penas Restritivas de Direitos
Afora as penas de cunho patrimonial, temos que a maioria das sanções adotadas para o ilícito em voga restringem direitos dos cidadãos. Direitos do mais amplo grau de proteção constitucional.
São elas restrições: a) à cidadania, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, exposto no artigo 1º da Constituição Federal de 1988 (com a suspensão dos direitos políticos); b) direitos sociais (trabalho – com a perda da função pública); c) livre concorrência (proibição de contratar com o poder público) e; d) isonomia (vedado o recebimento de incentivos fiscais ou creditícios).
Como visto, atingem determinados bens que comprometem, inclusive, a própria dignidade da pessoa humana e, ante isso, não podem, tais sanções, ficar ao livre alvedrio do direito civil. Atingem bens maiores dos seres humanos, princípios e valores resguardados constitucional e legalmente aos quais não pode ser dado o mero caráter patrimonialista desejado por muitos.
Seguindo esta esteira, remetemos à nossa doutrina para a conceituação das penas restritivas de direitos. Assim, imprescindíveis são as abordagens de René Ariel Dotti17:
“A natureza jurídica das penas restritivas de direitos, portanto, é a de sanções autônomas, porquanto possível sua aplicação isolada e, ainda, de substitutivas porque nascem da permuta”.
Segue, ainda, especificamente acerca da perda da função pública:
“Trata-se de uma sanção que deve ser imposta em circunstâncias especiais atendendo-se à qualificação jurídica e social da lesão”18.
Nos dizeres de Flávio Augusto Monteiro de Barros19, as penas restritivas de direitos podem ser definidas como “a sanção imposta em substituição à pena privativa de liberdade, consistente na supressão ou diminuição de um ou mais direitos do condenado”.
Averigua-se nítido o caráter das sanções por ato de improbidade administrativa. Quando a Carta Magna menciona que serão tolhidos direitos daqueles que forem condenados revela-nos o seu caráter de pena, da espécie restritiva de direito.
A própria Carta Suprema é expressa ao mencionar, no seu rol, exemplificativo, de direitos e garantias fundamentais, parte tocante ao direito penal, que:
Art. 5º...
XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos.
Forçoso concluir que as penas previstas para a improbidade administrativa, por restringirem direitos (poderíamos até cogitar do caráter penal da imposição de multa, pois há previsão neste sentido) delineiam o contorno sancionatório-penal do sublime instituto ora em análise
8. Princípio da Proporcionalidade
No direito penal o agente que comete ilícito deve ser punido proporcionalmente ao fato. Para tanto a lei outorga ao magistrado parâmetros punitivos, isto é, penas máxima e mínima, bem como a plausibilidade de multa em alguns casos (desde que expressamente previsto).
Para tanto o julgador vale-se, fundamentalmente, da culpabilidade do agente e demais circunstâncias judiciais, além das eventuais existências de causas agravantes/atenuantes e de aumento/diminuição da pena.
Exegese idêntica vem sendo admitida em nossos tribunais, sob o nome de proporcionalidade.
Assim é que, apesar da lei apontar todas as sanções, não necessariamente elas deverão ser aplicadas concomitantemente. Ou seja, poderá o julgador aplicar somente uma, ou algumas delas, pautando, conquanto, na culpabilidade do agente.
Trazemos à colação alguns julgados para ilustramos essa abordagem.
Recurso Especial nº 513576/MG, cujo relator foi o Ministro Francisco Falcão:
“Reconhecida a ocorrência de fato que tipifica improbidade administrativa, cumpre ao juiz aplicar a correspondente sanção. Para tal efeito, não está obrigado a aplicar cumulativamente todas as penas previstas no art. 12 da Lei 8.429/92, podendo, mediante adequada fundamentação, fixá-las e dosá-las segundo a natureza, a gravidade e as conseqüências da infração, individualizando-as, se for o caso, sob os princípios de direito penal. O que não se compatibiliza com o direito é simplesmente dispensar a aplicação da pena em caso de reconhecida ocorrência da infração”.
Ainda, há o Recurso Especial nº 505068, de relato do Ministro Luiz Fux, cuja ementa e acórdão parcial são nos seguintes termos:
“ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR NA APLICAÇÃO DAS PENALIDADES. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA Nº 07/STJ.
As sanções do art. 12, da Lei nº 8.429/92 não são necessariamente cumulativas, cabendo ao magistrado a sua dosimetria; alias, como deixa claro o Parágrafo Único do mesmo dispositivo. No campo sancionatório, a interpretação deve conduzir à dosimetria relacionada à exemplariedade e à correlação da sanção, critérios que compõem a razoabilidade da punição, sempre prestigiada pela jurisprudência do E. STJ”.
No mesmo sentido ainda o Recurso Especial nº 794.155-SP, sendo relator Ministro Castro Meira e Recurso Especial nº 300.184-SP.
Há mesmo quem sustente, inclusive, a atipicidade do fato tendo em vista a pequena potencialidade ofensiva do ato ímprobo. Exemplificando o caso em nossa jurisprudência é de bom tom trazer parte do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial de número 714935/PR, cujo relator foi o Ministro Castro Meira:
“In casu, face a inexistência de lesividade ao erário público, bem como pela natureza de ‘pequeno potencial ofensivo’ do ato impugnado, incabível a incidência de qualquer das penalidades descritas no art. 12, inciso III, da Lei de Improbidade Administrativa”.
Portanto, contornos essencialmente penais foram dados à lei em voga, não restando, a nós, menor dúvida quanto a está característica, mas adentramos ainda em outros aspectos a seguir.
9. Natureza Jurídica da Sentença
Não corrobora-se, novamente, com aqueles que dizem ser tais atos judiciais, em processos apurativos de improbidade administrativa, meramente cíveis. Mas o que seria o direito civil?
Deve-se, assim, de antemão, trazer ao enfoque o que pode ser utilizado para determinar o aspecto civil. Para tanto faz-se uso das palavras do ilustre André Franco Montoro20.
“Direito civil é o Direito Privado Comum
“É Direito Privado Comum porque disciplina as relações jurídicas ou os direitos e deveres de todas as pessoas, enquanto pessoas, e não na condição especial de empregado, empregador, estrangeiro, nacional, etc.
“E essas relações ou direitos, comuns a todos os homens, se resumem a três categorias fundamentais: a) relações puramente pessoais, como são as relativas ao estado e capacidade das pessoas; b) relações de família ou parentesco, decorrentes do vínculo familiar e; c) relações patrimoniais, representadas pelos direitos reais, como a propriedade, pelas obrigações de valor econômico e pela sucessão hereditária”.
Em contrapartida, tem-se que o direito penal caracteriza-se da seguinte forma, nos ditames de Zaffaroni e Pierangeli21:
“A legislação penal se distingue da restante legislação pela especial conseqüência que associa à infração penal (delito): a coerção penal, que consiste quase exclusivamente na pena”.
Portanto, abordado o que seja o direito civil e o direito penal nas exíguas, mas imperiosas palavras acima mencionadas, vê-se que não se pode atribuir mero caráter civil às penas elencadas na Constituição Federal e na Lei de Improbidade Administrativa. Possuem notável característica penal.
Neste passo, as penas deverão ser aplicadas quando, procedente o pedido, verificar-se a prática de ato de improbidade administrativa sendo, para tanto, proferida sentença condenatória. Mas de que natureza?
Alexandre Freitas Câmara22 ensina o que segue acerca da sentença condenatória de âmbito cível:
“Parece-nos que a única forma de conceituar a sentença condenatória levando-se em consideração seu conteúdo, e não seus efeitos, é adotando a posição de Couture e Fazzalari, e afirmar a existência, na sentença condenatória, de um elemento consistente num comando, uma imposição dirigida pelo juiz ao réu a fim de que se cumpra uma prestação de dar, fazer ou não fazer”.(sem grifo no original)
Resta claro, disso tudo, que o objeto da sentença condenatória ¬cível é uma prestação de dar, fazer ou não fazer. E isto não é todo o objeto das Ações de Improbidade Administrativa, ainda que levem o nome de ações cíveis.
É uma sentença que irá apreciar a imputação da existência da materialidade delituosa, a autoria do respectivo fato, valorar acerca da aplicação da pena ao sujeito e, por fim, aplicá-la.
São sanções que restringem direitos constitucionais e legais conferidos às pessoas em caráter geral. São direitos do homem, e não direitos meramente patrimoniais.
Concluindo, em face de estar diante de direito penal, e não civil, as sentenças seguirão o objeto tratado, ou seja, serão sentenças condenatórias de natureza penal.
10. Presunção do Estado de Inocência
Outra garantia constitucional disposta pela lei em comento para corroborar-lhe o caráter penal é a presunção do estado de inocência do réu submetido a julgamento pelas condutas tipificadas.
Na Carta Magna tal é a redação:
Art. 5º...
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Veja-se que é expresso o termo “sentença penal condenatória”. Não se fala em sentença civil ou de qualquer outra sentença de natureza jurídica diversa.
Em sintonia ao mencionado, a Lei de Improbidade Administrativa taxativamente prescreve:
Art. <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="20. A">20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivarão com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Diante disto, e mais todo o já abordado, não resta dúvida acerca da natureza penal de referida lei e sanções, uma vez que a Suprema Carta dispõe que o princípio da presunção do estado de inocência somente se aplica às sanções penais e, em face disto, de forma simétrica, se comporta a legislação.
11. Aplicação Subsidiária das Normas Processuais Penais
É válida ainda a observação de que a lei de improbidade administrativa remete alguns de seus aspectos processuais, de forma subsidiária, ao Código de Processo Penal.
Isto consta do parágrafo 12 do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa que dispõe.
Em contrapartida a isto, a Lei de Ação Civil Pública, a qual possui, de fato, natureza civil remete seus aspectos processuais subsidiários ao Código de Processo Civil, tudo conforme se averigua no artigo 19 da Lei 7.347/85.
Portanto, analisando-se a ratio legis da Improbidade Administrativa sob este ângulo, é visto que sua natureza é penal, ou seja, é determinada a aplicação das regras processuais penais, e não cíveis.
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1NEIVA, José Antonio Lisboa. Improbidade Administrativa. Niterói: Impetus, 2006, 2ª edição, p. 125.
2A lei deve ser clara e precisa, de forma que o destinatário da lei possa compreendê-la, possa determinar-se de acordo com seus postulados, tudo para conferir-lhe maior segurança jurídica no seio social; sendo vedada, portanto, com base em tal princípio, a criação leis que, visando à punição de agentes, contenham conceitos vagos ou imprecisos. Assim, deve-se aplicar a máxima determinação.
3SARMENTO, Geroge. Improbidade Administrativa. Porto Alegre: Síntese, 2002.
4COSTA, José Armando da. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, 3ª edição..
5DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001.
6MEIRELESS, Hely Lopes. Mandado de Segurança. São Paulo: Malheiros, 2005, 28ª edição, p. 211.
7ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 2004, 6ª edição, p. 155.
8O próprio Código Penal Brasileiro, em seu artigo 91 determina, dentre os efeitos da condenação, a certeza da obrigação de reparação do dano sofrido pela vítima. Assim, o caráter patrimonialista se faz presente por disposição legal quando das sentenças penais condenatórias.
9GUIBOURG, Ricardo. Derecho, sistema y realidad. Buenos Aires: Astrea, 1986, p. 74: “Si vemos el derecho como heramienta para el domínio social, de poco valen el concepto de validez, los critérios de admissibilidad formal, las discusiones sobre organización jerárquica, salvo mitos que integran la estructura fáctica de aquel domínio. Solo valen, em definitiva, lãs relaciones de poder entre los indivíduos; y em este \mbiente de Realpolitik no es oro – institucionalmente hablando – todo que reluce”.
10ALMEIDA, Jorge Luiz. Da ação popular e o Ministério Público. São Paulo: Justitia – Anais do I Congresso do Ministério Público do Estado de São Paulo, 1971, p. 279.
11SION, Leão Vidal. Da ação popular e o Ministério Público: o Ministério Público como titular obrigatório do exercício da ação popular: São Paulo: Justitia, Anais do I Congresso do Ministério Público do Estado de São Paulo, 1971, p. 281.
12PEREIRA, André Gonçalves. Erro e ilegalidade no acto administrativo. Lisboa: 1962, p. 83.
13ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manuel de Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, 5ª edição, p. 101.
14GARCIA, Emerson e PACHECO, Alves Rogério. Improbidade administrativa. Rio: Editora Lúmen Juris, 2002, p. 187.
15No caso presente salta-se aos olhos o principio tão propugnado da excepcionalidade do tipo culposo. Ou seja, a regra é a punição de quaisquer agentes pelo fato tido como doloso, sendo de caráter excepcional a punição a título de culpa. E isto somente ocorrerá se previsto expressamente na lei, caso contrário aquele que comete ilícito na forma culposa, sendo esta não prevista em lei, ter-se-á como atípico o fato.
16Cumpre deixar claro que se assim fosse possível, isto é, a punição do agente que é inábil, restringir-se-ia o acesso à plena cidadania. Vigora no nosso Estado a representatividade da vontade do povo, sendo uma de suas expressões o voto. Quaisquer daqueles que se habilitem para a concorrência do certame, se pela vontade soberana do povo forem dados como eleitos, cumprida está a plenitude da cidadania. Portanto, restringir o acesso à representação somente àqueles que se julgarem hábeis a administração pública seria um contra-senso à democracia, uma vez que prevaleceria aspectos técnicos à vontade popular, bem como estaria eivada de constitucionalidade qualquer proposta neste sentido, pois o legislador estaria restringindo um direito constitucionalmente assegurado em sua plenitude, somente admissíveis as limitações impostas pelo mesmo diploma legal
17DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 376.
18Op. Cit., p. 444.
19BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal Parte Geral, Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2003, 3ª edição, p. 457.
20MONTORO, André Franco. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, 25ª edição, p. 420.
21Op. Cit. P. 85.
22CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, Vol. 1, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, 14ª edição, p. 448.
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*Advogado
**Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo, professor das Faculdades de Direito da UNESP e do COC e advogado.
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