I – Introdução. Contexto fático da lei 14.020/20
A pandemia do novo coronavírus (covid-19), que há pouco completou um ano no Brasil, está causando efeitos severos na economia brasileira. De acordo com o levantamento pelo IBGE, em trabalho de estatística experimental, divulgada em seu sítio interno1, constatou-se que a pandemia foi a responsável pelo fechamento de 4 em cada 10 empresas com atividades encerradas.
Nesse cenário instável, no qual há um aumento de quebras das empresas, causando um grande impacto social, foi aprovada a lei 14.112/20, que procedeu uma ampla reforma da lei 11.101/05 (Lei de Falências e de Recuperação de Empresas). A Lei em questão também alterou a lei 10.522/02, que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais, e a lei 8.929/94, que institui a Cédula de Produto Rural e dá outras providências.
Cabe observar que um dos principais objetivos da lei 14.112/20, senão o principal, foi o de atualizar a antiga legislação à luz da jurisprudência existente sobre a matéria, além de tornar os procedimentos previstos na lei 11.101/05 mais céleres, os quais visam possibilitar um retorno ao empreendedorismo e o soerguimento das empresas, sendo que tal objetivo ganha enorme relevo no cenário da pandemia decorrente da covid-19.
Somente para se ter a exata noção da necessidade de conferir celeridade a tais processos, o Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ao ler o relatório do projeto de lei 4.458/2020, do qual se originou a lei 14.112/20, mencionou que2:
“- Quanto ao mérito, o projeto de lei está em consonância com o desenvolvimento jurisprudencial em 15 anos, sendo certo que a lei que se visa alterar, a Lei 11.101, de 2005, merece ser reformada e atualizada, mesmo que não estivéssemos enfrentando uma grave pandemia. E com mais razão, nesse caso. As possibilidades que serão abertas com a aprovação da proposta virão, sem dúvida, a ordenar e facilitar o cumprimento das obrigações do empresário ou da sociedade empresária que pleitear ou tiver deferido o processamento de recuperação judicial. Os benefícios tributários previstos no projeto favorecem, pois, a recuperação judicial, contribuindo para evitar a falência de empresas e o consequente custo social.”
Como não poderia deixar de se imaginar, a lei 14.112/20, ao alterar a lei 11.101/05 - que possui caráter multidisciplinar - também trouxe inovações na seara do direito do trabalho, uma das quais será objeto do presente artigo.
Desta forma, o presente artigo visa comentar a alteração relacionada com a recuperação extrajudicial, ao permitir a inclusão dos créditos trabalhistas e decorrentes de acidente de trabalho caso ocorra mediante negociação com a entidade sindical representante da categoria profissional.
A alteração legislativa, ante a sua novidade, traz algumas questões que serão abordadas neste artigo, especialmente no que se refere ao papel reservado para as entidades sindicais. Sem qual não tem a menor pretensão de esgotar o assunto, mas sim o de contribuir com o debate jurídico a respeito deste tema.
II - A mudança na recuperação extrajudicial
A recuperação extrajudicial, tratada entre os artigos 161 a 167 da Lei de Falências, pode ser conceituada como um procedimento especial, de jurisdição voluntária. Nesse sentido, leciona RESTIFFE (2008, p.375):
“A recuperação extrajudicial é procedimento especial de jurisdição voluntária, estabelecido em legislação extravagante, eis que se dá a administração pública de interesses particulares, ante a intervenção do Poder Judiciário em negócios jurídicos envolvendo direitos privados, destinado a constituir estado jurídico novo, desde que presentes os requisitos expressamente estabelecidos na legislação falimentar.”
Outro importante conceito da recuperação extrajudicial é fornecido pelo professor NEGRÃO (2016, p 241):
“(...) modalidade de ação integrante do sistema legal destinado ao saneamento de empresas regulares, que tem por objetivo constituir título executivo a partir de sentença homologatória de acordo, individual ou por classes de credores, firmado pelo autor com seus credores.”
Diante dos conceitos acima mencionados, por intermédio da recuperação extrajudicial pretende-se viabilizar o diálogo entre os credores e o devedor, permitindo que os primeiros possam ter seus créditos satisfeitos, enquanto o último se consiga recuperar da crise.
O que se busca, então, com a recuperação extrajudicial, é obter a convergência entre os seus interesses e de seus credores, atendendo aos interesses recíprocos, o que, se atingido o objetivo, poderá ser levado à homologação judicial.
Assim, a recuperação extrajudicial se trata de uma ferramenta alternativa e prévia à recuperação judicial, possibilitando a negociação direta entre o devedor e seus credores, o qual, sendo aceito por mais da metade dos créditos de cada espécie que vierem a ser abrangidos pelo referido plano (art. 163 da lei 11.101/05).
O art. 161 da Lei de Falências, em sua redação anterior à reforma pela lei 14.112/20, exigia, para ser proposta a recuperação extrajudicial pelo devedor, que fossem atendidos os requisitos do art. 48 do referido diploma normativo, embora excluísse expressamente aqueles créditos trabalhistas e os derivados de acidentes do trabalho, entre outros.
Contudo, a lei 14.112/20 alterou este paradigma, ampliando o rol de credores que podem figurar na recuperação extrajudicial, o que se deu mediante a inclusão dos créditos trabalhistas e aqueles decorrentes de acidente de trabalho, desde que haja assistência da respectiva entidade sindical.
Nesse sentido, passou a dispor o parágrafo 1º do art. 161, in verbis:
Art. 161. O devedor que preencher os requisitos do art. 48 desta Lei poderá propor e negociar com credores plano de recuperação extrajudicial.
§ 1º Estão sujeitos à recuperação extrajudicial todos os créditos existentes na data do pedido, exceto os créditos de natureza tributária e aqueles previstos no § 3º do art. 49 e no inciso II do caput do art. 86 desta lei, e a sujeição dos créditos de natureza trabalhista e por acidentes de trabalho exige negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional.
Portanto, com o novo diploma normativo, o credor trabalhista, bem como aquele que sofreu acidente de trabalho passam a ser representados pela sua entidade sindical, representando uma alteração significativa em relação à norma anterior e, mais do que isso, expressando o papel de relevo para a representação sindical.
III - Da negociação dos créditos trabalhistas e de acidentes do trabalho.
Os sindicatos, conforme comando inserto no 8º, inciso III da Constituição Federal3 de 88, tem o dever de defender os direitos e interesses individuais e coletivos da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a aplicação do referido dispositivo em sede de repercussão geral no julgamento do Recurso Extraordinário 883.6424, reafirmou o posicionamento da sua jurisprudência no sentido de ser ampla a legitimidade extraordinária dos sindicatos na defesa em juízo dos direitos daqueles que representam.
Nesse viés, a recuperação extrajudicial, como um procedimento de jurisdição voluntária, encontra-se contida na legitimação ampla conferida pela jurisprudência do STF para as entidades sindicais.
A CLT, por sua vez, define sindicato no art. 511, como uma associação que, entre outros objetivos, visa defender os interesses econômicos ou profissionais de todos os que representam5.
Para viabilizar o exercício deste papel de defesa dos interesses econômicos ou profissionais dos seus representados, a ordem jurídica brasileira conferiu três tipos de funções clássicas aos sindicatos. São elas: a representativa, a negocial e a assistencialista.
Estas funções do sindicato estão destacadas no art. 513 da CLT, que as nomeia como prerrogativas. Vale ressaltar que a alínea 'a' do citado dispositivo celetista aborda a função representativa, quando menciona que é uma prerrogativa do sindicato representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias, os interesses gerais da respectiva categoria6.
Portanto, a alteração do art. 161, §1º da Lei de Falências pela lei 14.112/20, ao permitir que o crédito trabalhista e o decorrente de acidente de trabalho participe da recuperação extrajudicial, desde que mediante negociação coletiva, confere uma atribuição para a entidade sindical que encontra amparo tanto na Constituição Federal de 88 como na CLT.
Vale observar que a Constituição Federal de 88 reconhece a negociação coletiva quanto fórmula de composição dos conflitos trabalhistas, ao valorizar, no art. 7º, inciso XXVI da Constituição Federal, os instrumentos coletivos previstos na CLT que possuem o poder de criar normas jurídicas, quais sejam o acordo coletivo de trabalho e a convenção coletiva de trabalho, reconhecendo-os como direitos sociais dos empregados urbanos e rurais.
Este dispositivo consagra o princípio da autonomia privada, que permite as partes convenentes fixarem as normas e condições de trabalho aplicáveis ao seu respectivo âmbito de representação, razão pela qual a manifestação de vontade deve ser respeitada.
O Supremo Tribunal Federal consagrou este entendimento no julgamento do Recurso Extraordinário 590.415/SC7, ao mencionar que “o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida.”
No cenário posterior à Reforma Trabalhista (lei 13.467/17), a negociação coletiva ganhou um maior relevo, ao se trazer expressamente para o ordenamento jurídico o princípio da prevalência do negociado sobre o legislado (o que se dá mediante a aplicação conjunta dos artigos 611-A c/c art. 611-B da CLT), bem como o da interferência mínima na autonomia da vontade coletiva (art. 8º, §3º da CLT).
Contudo, justamente ao se analisar o art. 611-B da CLT, que apresenta um rol taxativo de temas que não podem ser objeto de negociação, observa-se que o inciso XXX aponta que será objeto ilícito de negociação aquela que vir a reduzir ou suprimir crédito de terceiros:
Art. 611-B. Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos: (Incluído pela lei 13.467, de 2017)
XXIX - tributos e outros créditos de terceiros; (Incluído pela lei 13.467, de 2017)
Embora a negociação dos créditos trabalhistas e decorrentes de acidente de trabalho entre o devedor e a respectiva entidade sindical possa ser feita em outro instrumento jurídico, que não necessariamente um acordo coletivo de trabalho, não há como negar o risco de o Judiciário aplicar de forma subsidiária este dispositivo, considerando ilícita qualquer negociação tendente a suprimir ou reduzir tais créditos.
Vale observar a lição do professor DELGADO (2020, p. 1577), quando aborda os limites da negociação conduzida pelos sindicatos:
Há limites objetivos à adequação setorial negociada; limites jurídicos objetivos à criatividade jurídica da negociação coletiva trabalhista. Desse modo, ela não prevalece se concretizada mediante ato estrito de renúncia (e não transação). É que ao processo negocial coletivo falecem poderes de renúncia sobre direitos de terceiros (isto é, despojamento unilateral sem contrapartida do agente adverso). Cabe-lhe, essencialmente, promover transação (ou seja, despojamento bilateral ou multilateral, com reciprocidade entre os agentes envolvidos), hábil a gerar normas jurídicas.
Portanto, a negociação a ser feita pelas entidades sindicais no âmbito da recuperação extrajudicial em relação a tais créditos não deve se prestar a meramente reduzi-los ou mesmo suprimi-los, mas sim realizar uma efetiva transação, na qual tais titulares possam usufruir algum benefício ou vantagem.
IV - Considerações finais
A alteração do art. 161, §1º da lei 11.101/05, feita pela lei 14.112/20, ao passar a permitir a inclusão dos créditos de natureza trabalhistas e os decorrentes de acidente do trabalho, desde que mediante negociação coletiva, conferiu uma nova atribuição perfeitamente compatível com a atuação das entidades sindicais profissionais, conforme comando da Constituição Federal de 88 e a Consolidação das Leis do Trabalho.
Ademais, o novo dispositivo legal apresenta-se adequado com a própria visão jurisprudencial conferida à negociação coletiva, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 590.415/SC, “não se pode tratar como absolutamente incapaz e inimputável para a vida civil toda uma categoria profissional, em detrimento do explícito reconhecimento constitucional de sua autonomia coletiva (art. 7º, XXVI, CF).” Afinal, é através da negociação coletiva, feito pela respectiva entidade sindical profissional, que os trabalhadores terão a sua voz respeitada, compreendendo e aperfeiçoando a sua capacidade de mobilização e conquista.
Preciso observar que, pelo próprio vocábulo do §1º do art. 161 da Lei de Falências, será necessária a existência de uma verdadeira negociação entre a empresa em recuperação extrajudicial e a entidade sindical, havendo uma verdadeira reciprocidade na transação, a fim de conferir validade jurídica e evitar a utilização deste dispositivo como um mero instrumento de renúncia dos créditos trabalhistas e de acidentes de trabalho
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1 Disponível clicando aqui. Acesso em 17 de abril de 21.
2 Disponível clicando aqui. Acesso em 17 de abril de 21.
3 Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;
4 Ementa
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ART. 8º, III, DA LEI MAIOR. SINDICATO. LEGITIMIDADE. SUBSTITUTO PROCESSUAL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. I – Repercussão geral reconhecida e reafirmada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido da ampla legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam, inclusive nas liquidações e execuções de sentença, independentemente de autorização dos substituídos. RE 883642 RG/AL – ALAGOAS(Repercussão Geral no Recurso Extraordinário); Relator(a): Ministro Presidente; Julgamento: 18/6/15; Publicação: 26/6/15; Órgão julgador: Tribunal Pleno
5 "Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas."
6 Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos: (Redação restabelecida pelo Decreto-lei 8.987-A, de 1946)
a) representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias os interesses gerais da respectiva categoria ou profissão liberal ou interesses individuais dos associados relativos á atividade ou profissão exercida; (Redação restabelecida pelo Decreto-lei 8.987-A, de 1946)
7 Recurso Extraordinário 590.415/SC; Relator: Ministro Roberto Barroso; Publicado em 29/5/15.
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DELGADO. Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2019
NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. São Paulo: Saraiva, 2016, p.241
RESTIFFE, Paulo Sérgio. Recuperação de Empresas. São Paulo: Manole, 2008