A lei 8.666, desde o início de sua vigência, ocorrida em 21 de junho de 1993, vem sendo alvo das mais diversas críticas, seja pela sua excessiva rigidez, influenciada pela busca de padrões éticos na atuação dos gestores públicos, seja por sua burocracia, marcada pelo detalhamento minucioso de procedimentos nela consignados. Foi, ainda, a referida norma geral taxada de ter sido “feita para empreiteiros”, já que trata, com maiores detalhamentos, de disposições que se relacionam a contratação de serviços e obras no campo da engenharia.
Ao longo dos anos, a lei 8.666/93 passou a se mostrar ineficiente em vários aspectos, de modo que a dar início à busca por modelos mais inovadores, céleres e simplificados para as contratações públicas. Exemplo disso, foi o surgimento, no plano nacional¹, da lei 10.520/02, que introduziu o pregão como uma modalidade possível de ser adotada quando a Administração Pública necessitasse adquirir bens ou contratar serviços comuns, assim como, no ano de 2010, do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), trazido no bojo da lei 12.462, cuja aplicação inicial possuía escopo específico, que foi sendo ampliado ao longo de sua vigência².
Fato é que, no plano legislativo, várias foram as propostas de alteração e de substituição das três principais leis que norteiam as contratações públicas brasileiras, até que, por meio do Projeto de lei 4.253, sancionado em 1º de abril de 2021, nasceu a lei 14.133, denominada “lei de Licitações e Contratos Administrativos”, a qual, após dois anos contados do início de sua vigência, revogará as leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11.
A exemplo da lei 8.666/93, o novo marco das licitações e contratações públicas nem bem havia nascido e já era alvo de severas críticas de parte da doutrina pátria, notadamente pela manutenção do regime burocrático e rígido previsto no regime anterior, o que continuaria engessando a atividade da Administração Pública.
Com efeito, é válido anotar que há poucas inovações trazidas pelo novo marco regulatório, já que a nova lei consolida os diversos diplomas normativos que existiam no plano federal – e que, por óbvio, eram adequados à realidade da Administração Pública federal -, condensa os entendimentos pacificados do Tribunal de Contas da União em torno de algumas temáticas, assim como nacionaliza boas práticas obtidas através das contratações efetivadas pela União.
A dificuldade maior ficará a cargos dos diversos entes da federação, notadamente dos municípios de menor porte, que deverão se adequar ao que já vinha sendo observado e aplicado nas contratações públicas federais.
A nosso ver, a lei, de fato, impõe algumas burocracias e dificuldades, mas, por outro lado, legaliza práticas que podem fazer com que as contratações públicas atinjam não só a finalidade buscada preambularmente pela Administração Pública (o objeto em si), mas também atuar induzindo comportamentos mercadológicos, com o fito de alcançar o desenvolvimento nacional sustentável, em todas as suas dimensões.
Uma das inovações – para não dizer a maior e mais complexa – prevista na lei 14.133/21, é a instituição da modalidade de licitação denominada “diálogo competitivo” que, na forma do art. 6º, inciso XLII, é assim definida:
(...)
XLII - diálogo competitivo: modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos;
A novel modalidade trazida pela lei 14.133/21 é inspirada na Diretiva 2014/24, da União Europeia, a qual, em substituição à Diretiva 2004/18, passou a reger a disciplina jurídica dos contratos públicos.
Vale destacar que tal modalidade é adotada, pelo direito comunitário europeu, desde o ano de 2004, com a Diretiva 2004/18, tendo por função oferecer soluções às contratações mais complexas ao ente público através do estabelecimento de diálogo concorrencial com o setor produtivo privado.
Importa consignar que, no bojo da própria Diretiva 2014/24, são detalhados vários benefícios gerados pela crescente utilização do denominado “diálogo concorrencial”³, senão vejamos:
(42) É muito importante que as autoridades adjudicantes disponham de maior flexibilidade para escolher um procedimento de contratação que preveja a negociação. A maior utilização desses procedimentos deverá também intensificar o comércio transfronteiras, pois a avaliação demonstrou que os contratos adjudicados através de um procedimento por negociação, com publicação prévia de anúncio, apresentam uma taxa de sucesso particularmente elevada das propostas transfronteiras. Os Estados-Membros deverão poder prever o recurso ao procedimento concorrencial com negociação ou ao diálogo concorrencial nas situações em que um concurso aberto ou limitado sem negociação não seja passível de gerar resultados satisfatórios na ótica da contratação pública. Importa recordar que o recurso ao diálogo concorrencial aumentou significativamente, em termos de valores dos contratos, nos últimos anos. Revelou-se útil nos casos em que as autoridades adjudicantes não conseguem definir as formas de satisfazer as suas necessidades ou avaliar o que o mercado pode oferecer em termos de soluções técnicas, financeiras ou jurídicas. Tal pode, nomeadamente, verificar-se quando se trata de projetos inovadores, da execução de projetos de infraestruturas de transportes integrados em larga escala, de grandes redes informáticas ou de projetos que obriguem a financiamentos complexos e estruturados. Sempre que pertinente, as autoridades adjudicantes deverão ser incentivadas a nomear um chefe de projeto para garantir a boa cooperação entre os operadores económicos e a autoridade adjudicante durante o procedimento de adjudicação. (Destaquei)
(UNIÃO EUROPEIA, 2014, p. 71/72)
No art. 30 das Diretivas 2014/24, é disciplinado o diálogo concorrencial, que é marcado, em síntese, pelos seguintes procedimentos: i) qualquer “operador econômico” poderá apresentar pedido de participação, desde que reúna as condições exigidas no “anúncio de concurso”; ii) o prazo para recepção dos pedidos é de 30 dias do envio do “anúncio do concurso”; iii) somente poderão participar os agentes convidados, após a avaliação das informações por ele prestadas, podendo a autoridade limitar o número de convidados, que não será inferior a três, a fim de garantir uma “concorrência real”; e iv) a adjudicação ocorre exclusivamente com base no critério da proposta economicamente mais vantajosa tendo em conta a “melhor relação qualidade/preço”.
No modelo brasileiro, a modalidade do diálogo competitivo foi concebida, em síntese, para as necessidades em que a Administração Pública: i) vise a contratar obra, serviço ou bem que envolva inovação tecnológica ou técnica cuja necessidade não possa ser satisfeita a partir da adaptação de soluções já disponíveis no mercado, bem como as especificações do objeto não possam ser definidas com precisão suficiente (condições cumulativas); e ii) tenha que definir e identificar os meios e alternativas aptas à satisfação de sua necessidade, com destaque aos seguintes aspectos: a) solução técnica mais adequada; b) requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida; ou c) estrutura jurídica ou financeira do contrato.
Diante de uma das situações acima aventadas, poderá o gestor deflagrar o diálogo competitivo, cujo procedimento será exclusivamente definido no edital da licitação, observando-se as disposições previstas no § 1º do art. 32 da lei 14.133/21.
Na primeira fase, a Administração deverá definir suas necessidades e os critérios de pré-seleção dos potenciais concorrentes, que serão divulgadas em sítio eletrônico oficial, por meio de edital – no bojo do qual é vedada a inclusão de qualquer informação discriminatória que possa beneficiar algum licitante -, que estabelecerá o prazo mínimo de 25 (vinte e cinco) dias úteis para a manifestação dos interessados.
Nesta primeira fase, que pode ser denominada de seleção prévia, a Administração deverá acolher a participação de todo e qualquer interessado que preencham os requisitos – que devem ser objetivos – estabelecidos no edital.
Selecionados os potenciais licitantes, conforme os critérios definidos no edital da seleção prévia, iniciar-se-á a segunda fase, no âmbito da qual a Administração Pública estabelecerá o diálogo, que será mantido até que se identifique a solução ou as soluções que atendam às suas necessidades, o que ocorrerá por meio de decisão motivada.
No decorrer desta fase, a Administração Pública não poderá relevar as soluções propostas ou informações sigilosas obtidas no diálogo, salvo na hipótese de haver o consentimento do licitante.
A fim de tornar transparente a realização do diálogo, bem como permitir a atuação dos órgãos de controle (interno ou externo), o legislador impôs a exigência de que as reuniões com os licitantes sejam registradas em ata, bem como gravadas mediante a utilização de recursos tecnológico de áudio e vídeo.
Tal como similarmente previsto no modelo do diálogo europeu, a lei 14.133/21 possibilitou que a Administração Pública determine, no respectivo edital, a realização de fases sucessivas, de modo que, em cada uma delas, poder-se-á restringir as soluções ou as propostas a serem discutidas.
Declarado encerrado o diálogo, a Administração Pública autuará, no bojo do processo licitatório, todos os registros e gravações geradas na respectiva fase, iniciando, na sequência, a terceira fase, denominada competitiva, com a veiculação do edital, que deverá conter as especificações da solução que atenda às suas necessidades e os critérios objetivos a serem utilizados para a seleção da proposta mais vantajosa.
Abrimos um parêntese para pontuar que, diferentemente das modalidades concorrência e pregão, que seguirão o rito procedimental comum disciplinado no art. 17 da lei 14.133/21, o diálogo competitivo seguirá o rito procedimental descrito no edital, observando-se, por óbvio, as fases acima detalhadas.
O edital da fase competitiva do diálogo deverá prever um prazo de, no mínimo, 60 (sessenta) dias para que todos os licitantes pré-selecionados na primeira fase possam apresentar suas propostas comerciais, no bojo da qual deverão conter todos os elementos necessários à realização dos projetos.
Desde que não implique conduta discriminatória nem afetem a concorrência entre os licitantes pré-selecionados, a Administração poderá solicitar esclarecimentos ou ajustes nas propostas apresentadas na fase competitiva do certame.
A seleção da proposta vencedora será feita em consonância com os critérios definidos, pela Administração Pública, no edital da fase competitiva, assegurando, como resultado da licitação, a contratação mais vantajosa.
Todo o procedimento licitatório deflagrado na modalidade do diálogo competitivo deverá ser conduzido por uma comissão de contratação – e não apenas como o agente de contratação, como, por exemplo, pode ocorrer na concorrência -, que será composta por, no mínimo, 03 (três) servidores efetivos ou empregados públicos do quadro permanente da Administração.
Considerando as especificidades do diálogo, o legislador possibilitou que a Administração Pública, se for o caso, proceda à contratação de profissionais para o assessoramento técnico (e não para a condução do procedimento) da comissão de contratação.
Como podemos, em linhas gerais, perceber, a finalidade desta nova modalidade é possibilitar que a Administração Pública, diante da existência de uma necessidade em que se denote a impossibilidade de, de forma prévia e objetiva, identificar a melhor solução tecnológica ou o meio e alternativas capazes de atendê-la, estabeleça diálogos públicos e transparentes com o setor produtivo privado, de modo a selecionar o projeto que seja o mais adequado, eficiente e vantajoso.
Decerto, a criação de uma nova modalidade traz consigo diversos desafios no enfrentamento prático de sua implementação por parte dos gestores públicos, que, muitas vezes, não possuem a expertise e infraestrutura técnica e de pessoal necessária para implementá-la.
Por outro lado, não é incomum que o gestor público se depare, na prática, com problemas para os quais as soluções comuns não seriam capazes de solucioná-los, ou, ainda, sequer possam ser identificadas de pronto, sendo necessária a realização de levantamentos e análises de mercado prévias para que, somente após, sejam realizados os estudos técnicos preliminares e, com ele, o respectivo termo de referência e/ou projeto para a deflagração da licitação.
Os desafios que podem ser destacados vão desde a ausência de quadro técnico especializado, pois, quando muito, a Administração, notadamente no âmbito de entes municipais, possui servidor concursado para a condução de suas licitações, até os de cunho tecnológico, já que, para dar transparência à fase de diálogo, há que ser realizada a gravação, com recursos de áudio e vídeo, das audiências com todos os licitantes, bem como a sua materialização para que seja juntada aos respectivos autos do processo licitatório.
Um outro desafio reside no fato de que, diante das várias possíveis soluções que serão apresentadas à Administração Pública na fase de diálogo, deverá o gestor ter a isenção necessária – e técnica, por assim dizer - para construir um edital que possa tornar competitiva a terceira fase da licitação, notadamente com critérios objetivos de escolha da melhor proposta, na forma do que determina o inciso VIII do § 1º do art. 32 da lei 14.133/21.
Também será desafiador estabelecer, sem que antes seja conhecido previamente o mercado da solução a ser encontrada, os requisitos necessários à pré-seleção dos potenciais interessados, seja para não restringir, indevidamente, a participação (e, futuramente, a competitividade), seja para permitir o estabelecimento do diálogo apenas com aqueles que, de fato, possam apresentar soluções aptas à satisfação da necessidade almejada pela Administração Pública.
Em que pesem os desafios trazidos pela nova modalidade de licitação, acreditamos que a possibilidade de sua utilização poderá trazer enormes benefícios à Administração Pública, a fim de que possa acompanhar, pari passu, as inovações tecnológicas que cada vez mais têm sujeitado as políticas públicas a serem implementadas e o modelo de disponibilização dos serviços públicos aos cidadãos.
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1. Aliás, desde o ano de 1997, por meio da lei 9.472, surgiu, ainda que de modo embrionário, o pregão, como uma das possíveis modalidades próprias para a contratação de serviços e fornecimento de bens comuns no âmbito da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL (vide arts. 54 a 57), tendo tal permissão sido estendida, no ano de 2000, às demais Agências Reguladoras (vide art. 37 da lei 9.986/2000).
2. Inclusive, teve o seu uso autorizado para qualquer contratação que se fizesse necessária no contexto da calamidade pública reconhecida pelo Decreto Legislativo 06/20, que tinha vigência até 31/12/2020 (vide lei 14.065/20).
3. UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014 relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE. Disponível aqui. Acesso em: 20 Abr.2021