Ao iniciar os estudos acerca dos parâmetros decisórios e responsabilização dos agentes públicos por seus atos durante a pandemia, em especial os impactos trazidos pela Medida Provisória 966/20, que dispôs sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19, constatou-se que esta perdeu a sua validade em 10/9/20, por não ter sido votada no Congresso Nacional.
Todavia, anteriormente a perda de sua validade, a referida MP fora objeto de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 6421 MC/DF, o qual decidiu pela sua constitucionalidade, realizando uma intepretação conforme a Constituição, fixando as seguintes teses:
1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância:
i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou
ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.
2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente:
i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e
ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
Em suma, no que tange à proteção da saúde e da vida, a jurisprudência do STF se baseou em dois parâmetros: a) as decisões governamentais devem respeitar padrões técnicos e evidências científicas sobre a matéria; b) essas questões se sujeitam ao princípio da prevenção e ao princípio da precaução, ou seja, se existir alguma dúvida quanto aos efeitos de alguma medida, ela não deve ser aplicada. Isso significa que a Administração deve se pautar pela autocontenção.
Nessa esteira, sobreveio o seguinte questionamento: a tese fixada pelo STF continua tendo aplicabilidade, em que pese a medida provisória que a originou tenha perdido a validade, sendo aplicável para fins de aferição de responsabilidade dos agentes públicos durante à pandemia?
Destarte, embora a medida provisória tenha sido extirpada do ordenamento jurídico pátrio, não se vislumbra nada que possa concluir que o mesmo tenha ocorrido com a tese fixada pelo STF, porquanto o controle normativo de constitucionalidade qualifica-se como típico processo de caráter objetivo, vocacionado, exclusivamente, à defesa, em tese, da harmonia do sistema constitucional, tendo por função instrumental viabilizar o julgamento da validade abstrata do ato estatal em face da Constituição da República¹.
Ademais, embora o precedente que será trazido à baila não seja próprio da situação concreta apresentada, acredita-se que esse milita a favor da presunção da aplicabilidade da tese fixada em sede de controle concentrado de constitucionalidade conquanto a medida provisória apreciada tenha perdido a sua validade, tendo em vista que o STF já decidiu anteriormente que não há perda de objeto quando, mesmo sendo a lei impugnada de vigência temporária e já exaurida, a ADI for proposta antes de esgotada a sua vigência.
A esse respeito, colacionamos trechos das ementas confeccionadas do julgamento da ADI 3.146/MG² e 4.356/CE³:
(...) Preliminar de prejudicialidade: dispositivo de norma cuja eficácia foi limitada até 31.12.2005. Inclusão em pauta do processo antes do exaurimento da eficácia da norma temporária impugnada. Julgamento posterior ao exaurimento. Circunstâncias do caso afastam a aplicação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a prejudicialidade da ação, visto que o requerente impugnou a norma em tempo adequado. Conhecimento da ação (...). (ADI 3.146/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 19/12/06)
(...) 1. Singularidades do caso afastam, excepcionalmente, a aplicação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a prejudicialidade da ação, visto que houve impugnação em tempo adequado e a sua inclusão em pauta antes do exaurimento da eficácia da lei temporária impugnada, existindo a possibilidade de haver efeitos em curso (art. 7º da lei 14.506/09) (...). (ADI 4.356/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, DJ 11/5/11)
Logo, conclui-se que, se é possível analisar a constitucionalidade de leis impugnadas ainda que sua vigência já tenha se exaurido, com mais razão deve prevalecer vigente e aplicável o entendimento fixado pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, quando da análise de medida provisória que perdeu a sua validade posteriormente ao julgamento.
Quanto ao caráter vinculante da tese fixada, tem-se que a formação de precedentes busca estabilizar a jurisprudência, privilegiando princípios fundamentais como o da segurança jurídica e razoável duração do processo, com vistas a ofertar uma racionalidade normativa para a construção de um modelo de precedentes embasada na pluralidade de litigiosidade e em conformidade com o processo democrático, dotando-a de certa previsibilidade.
Justifica-se ainda como primordial a formação e respeito aos precedentes judiciais, pois no cenário atual parece haver um fomento do desrespeito da opinião de uma corte, mesmo após a prolação de uma decisão pelo pleno ou corte especial, em prol de um juízo personalista que despreza o passado institucional (integridade) e que acaba alimentando a litigiosidade pela evidente possibilidade de êxito embasada em julgado extraído de nossa jurisprudência lotérica4.
Desse modo, ululante a importância do respeito aos precedentes vinculantes, pois o que evidentemente se quer combater é a anarquia interpretativa típica de nosso sistema e que induziu a adoção do presente modelo normativo de precedentes, ora em comento, para que possamos nos aproximar das virtudes, sem copiar os equívocos, de um legítimo direito jurisprudencial.5
Nesse sentido, o novo CPC de 2015 legitimou os chamados precedentes vinculantes, de aplicação obrigatória pelos Tribunais, os quais abarcam as decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, sendo, inclusive, cabível Reclamação em caso de sua inobservância. Nessa toada, preconiza o CPC:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
Nesse contexto, tendo em vista a situação pandêmica vivenciada, na qual já foram perdidas mais de 370.000,00 (trezentos e setenta mil) vidas em decorrência do covid-19, inegável a contribuição do Supremo quanto ao estabelecimento de parâmetros decisórios claros, trazendo segurança jurídica para que os gestores públicos possam atuar de forma eficaz no combate ao coronavírus.
Do exposto, certo da força vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, infere-se que a tese fixada do julgamento da ADI 6421 MC/DF permanece legítima, conquanto a Medida Provisória 966/20 tenha perdido a sua validade, devendo ser respeitada por todos os agentes públicos com competência decisória, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
Assim, resta claro a força das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade, caracterizando-se como precedentes vinculantes de aplicação obrigatória pelo judiciário, sobretudo para os próprios Ministros do STF ao proferirem decisões monocráticas, pois assim preconiza-se o princípio da colegialidade, sendo, não uma decisão do Ministro, mas sim, da Corte Constitucional.
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1. STF - AG.REG. na ADI 2422 DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 29/10/14.
2. ADI 3.146/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 11/5/06.
3. ADI 4.356/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 9/2/11.
4. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. “Jurisprudência Instável” e seus riscos: a aposta nos precedentes vs. Uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. In: MENDES, Aluisio Gonçalvez de Castro; MARINONI, Luiz Guilherme; WANBIER, Teresa Arruda Alvim (orgs.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2014, v. II, p. 433-471.
5. HUMBERTO, Theodoro Júnior; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3º Ed, Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 375