Conforme destacado na II Jornada de Direito Comercial do CJF, “a internacionalização das companhias brasileiras, que buscam no exterior financiamento, mediante emissão de bonds, impõe a adequação da legislação concursal brasileira a esta nova realidade”1, em especial quando do processamento da recuperação judicial da empresa mutuaria (emitente dos bonds), e a convocação dos credores para a respectiva deliberação em Assembleia Geral de Credores do plano de recuperação Judicial da aludida empresa.
Inicialmente, cabe destacar que os bonds representam títulos, que instrumentalizam uma renda fixa para o seu possuidor, por conta de um empréstimo feito por este investidor (que tem a posse do título) a um tomador do crédito, podendo este tomador ser tanto uma empresa privada, quanto o próprio estado. Por meio da emissão deste título, em especial no âmbito internacional, empresários e governantes visam financiar projetos e operações de grandes vultos, sem se valer das instituições financeiras.
O proprietário dos bonds é o credor do título, emitido pelo tomador do empréstimo, sendo que todos os direitos e obrigações vêm descritos na escritura de emissão do título (indenture), na qual consta o termo final do empréstimo, com o valor que deve ser pago ao proprietário do título, geralmente acrescido do pagamento de juros, fixos ou variáveis, pelo mutuário.2
Nesta relação jurídica, que representa verdadeiro contrato de mútuo, surgem as figuras dos bondholders, que são os investidores econômicos dos projetos e operações do mutuário, e do trustee, representado pelo agente fiduciário que atuará em benefício dos investidores, além da figura do mutuário, tomador do empréstimo.
Frente à omissão da lei 11.101/05, quanto à legitimidade dos trustee para representar os bondholders, doutrina e jurisprudência debatia sobre a possibilidade do primeiro exercer o direito de voto na deliberação sobre o plano de recuperação judicial da empresa mutuaria, em Assembleia Geral de Credores, representando os investidores.
Visando apresentar uma interpretação uniforme à questão, o CJF, na II Jornada de Direito Comercial, editou o enunciado 76, com o seguinte teor: “nos casos de emissão de títulos de dívida pela companhia recuperanda, na qual exista agente fiduciário ou figura similar representando uma coletividade de credores, caberá ao agente fiduciário o exercício do voto em assembleia-geral de credores, nos termos e mediante as autorizações previstas no documento de emissão, ressalvada a faculdade de qualquer investidor final pleitear ao juízo da recuperação o desmembramento do direito de voz e voto em assembleia para exercê-los individualmente, unicamente mediante autorização judicial”.
Desta forma, verifica-se que restou fixado o entendimento de que o bondholder, por ser propriamente o titular do crédito inserido no quadro geral, possui legitimidade ordinária para o exercício do direito de voto na Assembleia Geral de Credores, ao passo que, no silêncio deste, o trustee passa a exercer o direito de voto, na qualidade de legitimado extraordinário, em especial diante das autorizações genéricas existentes na escritura de emissão dos bonds.
Tal conclusão restou aplicada ao processo de recuperação judicial da empresa de telefonia OI S/A, conforme decisão do juiz de primeiro grau, decisão esta confirmada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 8º Câmara de Direito Civil, no AI 0058493-09.2016.8.19.0000, cabendo apresentar trecho do acórdão do Desembargador Augusto Alves Moreira Junior, que apresentou a seguinte conclusão: (...) Saliente-se que o entendimento pacificado na doutrina e na jurisprudência desta Egrégia Corte de Justiça Estadual, é no sentido de que as escrituras de emissão dos títulos, além de estabelecerem os direitos e deveres dos titulares, também preveem a extensão da atuação dos respectivos agentes fiduciários. É cediço que a legitimidade do trustee é extraordinária, o que significa dizer que, em caso do bondhold se habilitar para exercer o direito de voz e voto na Assembleia Geral dos Credores, caberá ao agente fiduciário exercer o direito de voto tão somente com relação aos remanescentes.3
Ocorre que, apesar de atualmente a específica questão apresentar certa uniformidade de entendimento na jurisprudência e na doutrina, carece ainda de regulamentação normativa, mesmo com a recente reforma da lei 11.101/05 (operada pela lei 14.112/20), a questão referente à legitimidade extraordinária ou a representação dos credores na Assembleia Geral.
Apesar da aparente especificidade da problemática acima mencionada, em verdade trata-se, em termos gerais, da verificação da legitimidade extraordinária para o exercício de direito de voto, em sede de Assembleia Geral de Credores, tema que exige um uniforme e melhor tratamento normativo na ordem jurídica, para evitar novas situações de insegurança jurídica.
Não se ignora que a lei 11.101/05 traz previsões acerca da legitimidade para o exercício de direito de voto em AGC, como se verifica do artigo 37, §4º (que trata da representação na AGC por mandatário ou representante legal), do artigo 37, § 5º (que trata da representação dos credores trabalhistas pelos sindicatos dos trabalhadores), ou da inovação normativa trazida pela lei 14.112/20, que trouxe os §§ 6º e 7º, ao artigo 39, da lei 11.101/05 (que tratam, respectivamente, da legitimidade ordinária para voto do credor na AGC, e da legitimidade do cessionário de crédito para votar em AGC).
Ocorre que, diante da globalização, e das inúmeras possibilidades de verificação ou de necessidade do reconhecimento de legitimidade extraordinária a terceiros que representem os credores, pertinente seria a consolidação de normas gerais e específicas, destinadas a disciplinar o tema da legitimidade extraordinária para o exercício de direito de voto.
Em termos práticas, entendemos que um importante ponto de partida para esta regulação já se encontra previsto na lei 11.101/05, mais especificamente no seu artigo 37, §4º, que condiciona o exercício do direito de voto do representante na AGC ao seu requerimento, com 24 horas de antecedência, ao Administrador Judicial, apresentando o respectivo documento com a outorga de poderes para tanto. Sem dúvidas, tal condicionante traz maior segurança jurídica às deliberações da AGC, além de apresentar uma maior garantia de que há efetiva representatividade dos credores na AGC.
Desta forma, verifica-se que a problemática envolvendo o direito de voto do trustee ou dos bondholders na AGC passa pelo tema da legitimidade extraordinária para o exercício de direito de voto, tema que carece de uma regulamentação mais específica na lei 11.101/05, apesar de regulamentado de forma tímida em alguns de seus dispositivos, o que contribui para o estabelecimento da insegurança jurídica em dadas situações jurídicas, revelando a necessidade de um tratamento legislativo adequado e específico sobre o tema.
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1 Consoante justificativa do enunciado 76, da Jornada de Direito Comercial do CJF.
2 Para obter mais informações acerca do tema, vide clique aqui. Acessado em 16/4/21.
3 Acórdão disponível clicando aqui . Acessado em 16/4/21.