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Coerência jurisprudencial e o caso da limitação das contribuições do "SISTEMA S"

De acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em dezembro do ano passado havia mais de 7.500 processos envolvendo a matéria, o que faz com que essa seja a segunda discussão com maior potencial de impacto para a União.

19/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Superior Tribunal de Justiça, no fim do conturbado ano de 2020, diante da proliferação de processos sobre a controvérsia da limitação em vinte salários-mínimos das bases de cálculo das contribuições ao denominado “Sistema S” (contribuições de terceiros / parafiscais), e em atenção ao disposto no art. 1.036 do CPC/15, afetou dois processos para serem julgados sob a sistemática dos recursos repetitivos: REsp 1.898.532/CE e REsp 1.905.870/PR.

De acordo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em dezembro do ano passado havia mais de 7.500 processos envolvendo a matéria, o que faz com que essa seja a segunda discussão com maior potencial de impacto para a União, atrás somente da exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS e da COFINS.

A principal dúvida nestes processos é quanto a permanência de vigência do art. 4º, parágrafo único, da lei 6.950/81, após a revogação do caput do mesmo dispositivo pelo art. 3º, do Decreto-lei 2.318/86. Como se percebe pela data da legislação mencionada, o tema é assaz antigo, em que pese parecer ter ganhado força somente em fevereiro de 2020, com um julgamento pela Primeira Turma do STJ (AgInt no REsp 1570980).

Neste pequeno texto, tentar-se-á colaborar para o debate com algumas considerações que parecem extremamente necessárias para quando houver o julgamento definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda sem data para ocorrer.

O denominado “Sistema S” é composto por entidades sociais de direito privado (SEBRAE, SENAI, SESI, SENAC, INCRA, FNDE etc) que visam auxiliar o Estado na persecução de importantes objetivos sociais e das categorias profissionais ou econômicas, a exemplo da capacitação de trabalhadores através da disponibilização de cursos, apoio às empresas, diagnósticos, consultorias, entre outros. Para a realização de tais atividades, por razões evidentes, as entidades necessitam de recursos, o que veio a ensejar a criação de contribuições, antes facultativas e sem natureza tributária, mas que após a sua recepção pela Constituição Federal de 1988, especificamente pelo art. 240, passaram a ser tributos e, em consequência disso, a serem compulsórias.

Após longos debates sobre a natureza jurídica das contribuições em comento, o Supremo Tribunal Federal, no RE 396.266/SC¹, pacificou a discussão ratificando que as contribuições destinadas ao Sistema S, pela própria redação do art. 240 c/c o art. 149, ambos da Carta Magna, são contribuições de interesse das categorias econômicas ou profissionais, à exceção da contribuição ao SEBRAE, que se revela como contribuição de intervenção ao domínio econômico, e do salário-educação, que é contribuição social geral. Inclusive, a fim de dirimir qualquer dúvida talvez ainda existente quanto a diferença entre as contribuições previdenciárias e as contribuições parafiscais, pode ser citado o Projeto de lei do Senado 386/16, o qual pretendia estabelecer que parte dos recursos destinados às entidades pertencentes ao Sistema S fossem alocados para financiar a Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social). Embora o projeto não tenha sido aprovado, da obviedade subjacente é possível extrair que não teria sido proposto um projeto de lei que destinaria os recursos arrecadados com uma contribuição, para o financiamento da Seguridade Social, se contribuição à esta já destinada fosse. Ademais, aqui não se adentrará na questão quanto à centralização da arrecadação destes tributos pela Receita Federal do Brasil.

Toda a matéria que ora se analisa originou-se há mais de trinta anos, mas aqui serão abstraídos todo o histórico legislativo, de todos conhecido, bem como os argumentos usualmente expostos a favor ou contra a limitação das bases de cálculo, notadamente os relacionados à Lei Complementar 95/98. Assim, deixa-se claro que o enfoque deste breve artigo será tão somente a abordagem jurisprudencial do tema, especificamente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a quem caberá a “palavra final”, além dos seus deveres de efetivar uma jurisprudência estável, íntegra e coerente, conforme o preceito do art. 926, do Código de Processo Civil.

Desta forma, há, hodiernamente, uma jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça pela limitação das bases de cálculo das contribuições destinadas ao Sistema S. Antes de tudo, é preciso lembrar que os conceitos de precedente e jurisprudência, naturalmente aqui relacionados e conquanto singelos, são distintos e não devem ser confundidos em nenhuma hipótese. O primeiro é definido pela utilização, em uma decisão judicial, como fundamento, uma outra decisão anteriormente proferida, ao passo que o segundo é definido como um conjunto de decisões judiciais proferidas pelos tribunais em um mesmo sentido e acerca de uma mesma matéria. Quanto à expressão “pacífica”, tem-se que a partir das decisões até o momento proferidas pela Corte Federal, não há expressão que as represente de forma mais simples, pois de fato existe apenas uma linha decisória no âmbito da Corte, conforme se demonstrará abaixo.

Com efeito, de um lado, a Primeira Turma no AgInt no REsp 1.570.980/SP², em fevereiro de 2020, entendeu, por unanimidade, que o art. 3º do DL 2.318/86³ não revogou o parágrafo único do art. 4º da lei 6.950/81.4A propósito, na oportunidade citou-se precedente do ano de 2008, o REsp 953.742/SC5, demonstrando inequivocamente o respeito pela jurisprudência do Tribunal. Tal julgado da Primeira Turma serviu de fundamento para diversas decisões monocráticas posteriores, proferidas não somente por Ministros que compõem esta Turma, mas também por Ministros que integram a Segunda Turma, conforme trechos de ementa a seguir destacadas, exemplificativamente:

1ª Turma

Min. Benedito Gonçalves – REsp nº 1.901.063/CE

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DEVIDA A TERCEIROS. LIMITE DE VINTE SALÁRIOS-MÍNIMOS. ART. 4º DA LEI 6.950/81 NÃO REVOGADO PELO ART. 3º DO DL 2.318/86. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

Min. Regina Helena Costa – AgInt no REsp 1.825.326/SC

(...) RECONSIDERO a decisão de fls. 938/947e, restando, por conseguinte, PREJUDICADO o agravo interno de fls. 952/982e; e, com fundamento nos arts. 932, III e V, do Código de Processo Civil de 2015 e 34, XVIII, a e c, e 255, I e III, do RISTJ, CONHEÇO EM PARTE do Recurso Especial e DOU-LHE PROVIMENTO, para, reformando o acórdão, reconhecer que a base de cálculo da contribuição parafiscal recolhida por conta de terceiro está limitada a 20 (vinte) salários-mínimos e determino o retorno dos autos à origem, nos termos da fundamentação. (grifo nosso)

Min. Sérgio Kukina – REsp 1.908.527/RS

Verifica-se que a conclusão da Corte a quo está dissonante da orientação do STJ a respeito do tema, o qual entende que a base de cálculo das contribuições parafiscais recolhidas por conta de terceiros fica restrita ao limite máximo de 20 salários mínimos, nos termos do parágrafo único do art. 4º da Lei 6.950/1981, que não foi revogado pelo art. 3º do Decreto-Lei 2.318/1986, o qual disciplina as contribuições sociais devidas pelo empregador diretamente à Previdência Social.(...) ANTE O EXPOSTO, dou provimento ao recurso especial. (grifo nosso)

2ª Turma

Min. Herman Benjamin – REsp 1.439.511/SC

(...) A irresignação merece prosperar, pois em caso semelhante esse Tribunal Superior entendeu que o art. 3º do Decreto-Lei 2.318/1986 não alterou o limite de 20 salários-mínimos do art. 4º, parágrafo único, da Lei 6.950/1981 (base de cálculo das contribuições parafiscais arrecadas por conta de terceiros), pois esse artigo apenas dispõe sobre as contribuições sociais devidas pelo empregador diretamente à Previdência Social. (...) Em face do exposto, NEGO provimento ao recurso especial do INSS. (grifo nosso)

Min. Og Fernandes – REsp 1.906.748/PR

(...) Ante o exposto, com fulcro no art. 932, V, do CPC, c/c o art. 255, § 4º, III, do RISTJ, dou provimento ao recurso especial para reconhecer a limitação da base de cálculo das contribuições destinadas às entidades terceiras ao montante que corresponde a 20 (vinte) vezes o maior salário-mínimo vigente no país. (grifo nosso)

Min. Assusete Magalhães – REsp 1.241.362/SC

(...) Com efeito, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 953.742/SC, em caso análogo, firmou o entendimento no sentido de que o art. 3º do Decreto-lei 2.318/86 não alterou o limite de 20 salários-mínimos do art. 4º, parágrafo único, da lei 6.950/81 (base de cálculo das contribuições parafiscais arrecadas por conta de terceiros). (grifo nosso)

De outro lado, os Ministros que ainda não se manifestaram quanto ao mérito da controvérsia, assim procederam justamente pela afetação da matéria para julgamento na Primeira Seção, ou seja, preferiram não expor seus entendimentos por ora. Em síntese, o que se tem atualmente de manifestação do STJ acerca do mérito da questão é o seguinte: em primeiro lugar, o julgamento por uma de suas Turmas que, por unanimidade, estabeleceu que o parágrafo único do art. 4º da lei 6.950/81 permanece vigente, e, em segundo lugar, diversas decisões monocráticas de Ministros de ambas as Turmas que seguiram o entendimento daquele colegiado, priorizando a jurisprudência do Tribunal.

Diante deste cenário, tem-se clara observância a princípios fundamentais para o Estado de Direito, como segurança jurídica e isonomia, bem como do estrito cumprimento ao Código de Processo Civil, este último relacionado ao dever de uniformização da jurisprudência pelos Tribunais e a efetivação da sua estabilidade, integridade e coerência, algo que, diga-se de passagem, sequer seria necessário constar no Código, haja vista serem exigências do próprio Estado de Direito.

Há que se ressaltar, contudo, que não se desconhece a existência de argumentos no sentido de que as decisões até então existentes no âmbito do STJ não são vinculantes. No entanto, diante disso indaga-se: ainda existiria tal necessidade, em situações como a do presente caso, cujos contextos fáticos não podem ser alterados, de observância apenas às decisões vinculantes dos Tribunais Superiores? Será isso que um país que pretende cada vez mais seguir a doutrina do Common Law, e que intenta criar um sistema de plena observância aos precedentes, deseja? Lembra-se aqui que quanto ao assunto tratado não existe apenas uma ou duas decisões daquela Corte, mas inúmeras. Além disso, recorda-se também de precedente marcante do próprio Superior Tribunal de Justiça que, no AgRg nos EREsp 593.309/DF6, esclareceu que o Tribunal fora criado com um objetivo especial, cuja parte da ementa faz-se questão de transcrever abaixo, pedindo desculpas ao leitor pela longa transcrição:

“O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Seção – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo.” (grifo nosso)

Noutro giro, o Enunciado 454 do Fórum Permanente de Processualistas Civis estabelece que a coerência a que se refere o caput do art. 926 do CPC consiste no dever de autorreferência dos Tribunais, ou seja, de observarem seus próprios precedentes, resguardadas, evidentemente, as hipóteses de distinção ou superação, conforme preconiza o Enunciado 455 do mesmo FPPC.

Por fim, em relação ao tão aguardado julgamento a ser realizado sob o rito dos recursos repetitivos, chama-se a atenção para eventuais mudanças que possam surgir no entendimento dos Ministros da Primeira Seção que já se manifestaram quanto ao mérito da matéria. Caso haja a manutenção dos argumentos expostos no colegiado da Primeira Turma e nas decisões monocráticas proferidas, seja pelos integrantes daquela ou da Segunda Turma, hoje o resultado estaria em 7 a 0 a favor da limitação das bases de cálculo em questão, tendo em vista que apenas os Ministros Gurgel de Faria, Mauro Campbell Marques e Francisco Falcão ainda não se manifestaram monocraticamente quanto ao mérito, e considerando que a Primeira Turma ainda está com a vaga originada pela aposentadoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho em aberto, ressaltando, contudo, que o Ministro participou do julgamento supramencionado ocorrido na Turma. Diante disso, surgem dois últimos questionamentos: existiria alguma razão, de fato ou de direito, para que aqueles sete Ministros alterassem seu posicionamento quando do julgamento no colegiado da Primeira Seção – seria uma hipótese de distinguish, do qual decorreria o dever de um maior ônus argumentativo? – Poderiam simplesmente abandonar as decisões proferidas por eles anteriormente, tudo sob a vetusta alegação de que decisões monocráticas e/ou de apenas uma das Turmas não vinculam? Acredita-se veementemente que não, por razões “singelas” de segurança jurídica, estabilidade, integridade, coerência jurisprudencial e, acima de tudo, pelo Estado Democrático de Direito.

__________

1. STF, RE 396.266, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. em 26.11.2003, DJ 27/02/04.

2. STJ, AgInt no REsp 1.570.980/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, j. em 17/2/20, DJe 03/03/20.

3. Art. 3º Para efeito do cálculo da contribuição da empresa para a previdência social, o salário de contribuição não está sujeito ao limite de vinte vezes o salário mínimo, imposto pelo art. 4º da lei 6.950, de 4 de novembro de 1981.

4. Art 4º - O limite máximo do salário-de-contribuição, previsto no art. 5º da lei  6.332, de 18 de maio de 1976, é fixado em valor correspondente a 20 (vinte) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.

Parágrafo único - O limite a que se refere o presente artigo aplica-se às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros.

5. STJ, REsp  953.742/SC, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, j. em 12/02/08, DJe 10/03/08.

6. STJ, AgRg nos EREspº 593.309/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Segunda Seção, j. 26.10.2005, DJe 23/11/05.

Vinicius Cunha
Fundador do Miranda & Cunha Advogados, LL.M em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e Ex-Presidente da Comissão de Direito Tributário da ABA/RJ.

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