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Calder e o equilíbrio instável do direito internacional do investimento

A disseminação das nacionalizações de empresas estrangeiras ocorreram principalmente no contexto da defesa da soberania nacional dos recursos naturais, fruto do movimento de descolonização afro-asiática no pós 2ª Guerra Mundial.

15/4/2021

Calder surpreendeu o mundo com as suas esculturas cinéticas movidas simplesmente pelo ar. Diferentes formatos de finas placas metálicas ligadas por frágeis hastes e arames de metal. Em conjunto, esses materiais adquirem uma forma totalmente nova, em que o autor brinca com o equilíbrio em puro movimento.

O paradoxo se encontra na aproximação de dois  conceitos divergentes: equilíbrio e instabilidade. Calder desafiou a arte escultórica estática, jogando-a ao cadenciado movimento do ar. As esculturas movem-se por elas próprias e envolta de si mesmas. Pequenos fios de arame sustentam superfícies de metal. O ar, antes invisível, é parte do conjunto artístico. A instabilidade e a fragilidade tornam-se as características essenciais de suas obras.

O equilíbrio criado a partir da fragilidade. A existência de uma obra artística a partir do instável. Peças de metal suspensas por finos arames metálicos a dobrarem-se ao vento. Dessa forma, cria-se o equilíbrio instável.1

As obras fascinantes de Calder permitem correlacioná-las com o campo de estudo jurídico. O Direito Internacional do Investimento objetiva estudar as relações dos capitais transfronteiriços entre Estados, organizações internacionais e, principalmente, investidores externos (pessoa física e jurídica), comumente conhecidos pelas empresas transnacionais.

A estrutura desse ordenamento jurídico internacional se enquadra na descrição da obra de Calder. A fragilidade da base histórica e de suas fontes jurídicas se arranjam por meio de frágeis composições instáveis, interligadas por decisões arbitrais ad hoc desprovidas de jurisprudência consolidada.

A história de um direito internacional a regular os investimentos externos encontra-se intimamente ligado ao processo de colonização europeu na América, África e Ásia, a partir do momento em que Cristóvão Colombo alcança o continente americano em 1492. Enquanto colônias, os territórios ultramarinos eram considerados como parte integrante dos sistemas jurídicos das metrópoles, sendo implementada uma lógica mercantilista de exploração de suas riquezas (produção latifundiária de exportação) e de redução de custos (implementação do tráfico de escravos a constituir mão de obra a baixo custo).

Inseridos no sistema jurídico das metrópoles, os seus investidores nacionais se valiam do uso das forças militar, econômica e cultural para subjugar outros povos e desconsiderar as suas estruturas sociais pré-existentes, colocando-as como alheias ao direito, por se diferenciarem de um posicionamento europeu. Dessa forma, o processo de colonização e de dominação militar nos territórios americanos, africanos e asiáticos ocorreram em um contexto de permissão de um direito internacional eminentemente hegemônico e eurocêntrico.

Teorias como uti possidetis e extraterritorialidade jurisdicional, as bulas e tratados a dividir territórios além-mar e o uso da força militar eram partes integrantes de um direito europeu que se auto-proclamava universal ou internacional.

O reconhecimento da origem do Direito Internacional como produto da colonização ultramarina diverge do tradicional entendimento de sua criação pela Paz de Vestfália de 1648. Após a Guerra dos 30 anos, reconheceu-se, por meio de tratados entre os principais Estados europeus, a soberania interna (independência de cada Estado em definir a sua estrutura interna) e a externa (igualdade de hierarquia entre os Estados, em que estes reconheciam a anarquia de poder, em que nenhum Estado se encontraria juridicamente superior ao outro).

Apesar desses princípios se encontrarem inscritos na Carta das Nações Unidas de 45, em seu Artigo 1, parágrafo 2, conhecidos comumente como os princípios da igualdade de direitos (soberania externa) e da autodeterminação dos povos (soberania interna), essas garantias basilares do Direito Internacional não foram concedidas aos povos dominados.2

Uma vez adquirida a independência formal, os países da América Latina, África e Ásia depararam-se com uma alteração significativa: desprovidos de uma proteção normativa nacional, as antigas metrópoles e, por extensão, os seus investidores nacionais, valeram-se da construção de um sistema jurídico internacional a proteger os investimentos externos, afastando a aplicação de normas domésticas dos países recém-constituídos, bem como estabelecendo sistemas de solução de controvérsias internacionais por meio da arbitragem internacional.

O formato de solução de controvérsias pela arbitragem paulatinamente substituiu o uso da força ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX. A disseminação das nacionalizações de empresas estrangeiras ocorreram principalmente no contexto da defesa da soberania nacional dos recursos naturais, fruto do movimento de descolonização afro-asiática no pós 2ª Guerra Mundial. Desse período, destaca-se a Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a soberania permanente dos recursos naturais de 1962.3

Apesar da conquista de uma independência formal, os antigos territórios colonizados ainda se submetem a sistemáticas estruturas de colonização e de pressão econômica. O estudo contemporâneo que reconhece a persistência de um modelo historicamente desigual é observado na abordagem terceiro mundista do Direito Internacional (Third World Approach to International Law – TWAIL).

De forma semelhante aos novos braços de arame que são delicadamente acrescentados a um único eixo suspenso, observado em diferentes obras do Calder, o Direito Internacional do Investimento cria instrumentos e interpretações contemporâneos a garantir a manutenção desse sistema jurídico frágil e fragmentário.

A existência de controversas decisões arbitrais ad hoc, a inexistência de uma segunda instância a permitir a revisão de julgados arbitrais, o afastamento dos princípios do Direito Internacional Público pela utilização de institutos jurídicos comerciais em julgamentos que envolvem Estados importadores de capital, a concentração de árbitros internacionais nos principais centros econômicos mundiais e o baixo reconhecimento dos impactos dos investimentos externos em questões de proteção ambiental, social e trabalhista, principalmente nos países em desenvolvimento,  exemplificam o conjunto de críticas a este sistema jurídico.

Com o advento das economias emergentes no século XXI, principalmente daquelas reconhecidas no BRICS e G20 Financeiro, observa-se uma alteração no fluxo internacional dos investimentos. Tais países exercem participação crescente como novos exportadores de capital, por meio da multipolarização dos investimentos externos.

O acrônimo BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – é um conceito criado em 2001 por Jim O’Neill, economista-chefe do Goldman Sachs, tendo afirmado que esses quatro países juntos poderiam superar as seis maiores economias no mundo em 30 anos. Em 2010, o grupo aprovou a entrada da África do Sul, formando o acrônimo BRICS desde então, convergindo agendas coordenadas sobre políticas econômicas internacionais4.

Já o G20 Financeiro foi criado em 1999, em decorrência da crise financeira do México (1994), dos Tigres Asiáticos (1997) e da Rússia (1998). Contudo, a sua proeminência como principal fórum a regular a estabilidade econômica global adveio somente com a crise financeira de 2008, suplantando o G7. No seu conjunto, correspondem a 90% do PIB global, 80% do comércio internacional e a 2/3 da população mundial. Além disso, o G20 Financeiro é integrado pela União Europeia e por 19 Estados, sendo 11 emergentes (África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Brasil, China, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, México, Rússia e Turquia), que incorpora também todos os cinco integrantes do BRICS.5

A partir do reposicionamento das economias emergentes no sistema financeiro internacional, observa-se outras relevantes alterações no tema da promoção do desenvolvimento, por meio da criação de novos bancos multilaterais de desenvolvimento (Multilateral Development Banks - MDBs), que se justificam como alternativas ao modelo tradicional das organizações criadas pelo Acordo de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial), marcadamente criticadas pela baixa representatividade dos emergentes no poder de voto.

Além disso, a recente atuação do governo chinês sobre Hong Kong, pela implantação da controversa lei de segurança nacional, levantou o debate sobre qual seria o centro financeiro na Ásia, cujo continente responde por 50% da economia mundial. Junto com Hong Kong, observa-se a proliferação de importantes centros financeiros na Ásia, tais como Shanghai (China), Tóquio (Japão), Cingapura, Seul (Coreia do Sul), Mumbai (Índia) e Dubai (Emirados Árabes Unidos).6

A partir das interpretações artísticas das obras do Calder, procura-se implementar um posicionamento crítico e contemporâneo do Direito Internacional do Investimento, primando por um debate em que reconheça a existência de suas fragilidades internas, bem como o novo contexto internacional econômico, marcado pelo forte desempenho das economias emergentes.

__________________

1 CALDER FOUNDATION. Le 31 Janvier. Musée National d'Art Moderne, Centre Pompidou, Paris, 1950. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 abr. 21.

2 BRASIL. Decreto Federal 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 abr. 21.

3 UNITED NATIONS. Permanent Sovereignty over Natural Resources. General Assembly Resolution 1803 (XVII). 14 de dezembro de 1962. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 22 mar. 21.

4 O’NEIL, Jim. Building Better Global Economic BRICs. Global Economics Paper nº 66. Goldman Sachs. 30th November 2001. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 12 abr. 21.

5 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. O Brasil no G20. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 18 mar. 21.

6 FINANCIAL TIMES. The battle to be Asias premier financial centre. Conselho Editorial. 25 de junho de 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em 12 abr. 21.

Thiago Ferreira Almeida
Advogado e especialista em Direito Internacional do Investimento e em Parcerias Público-Privadas. Doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Internacional e Graduado em Direito pela UFMG. Graduado em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Professor de MBA de Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas na PUC Minas. Especialista de Políticas Públicas de carreira e assessor de investimentos internacionais da Vice-Governadoria do Estado de Minas Gerais.

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