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Crime de cartel em licitações: Reflexões a partir da nova Lei de Licitações

Tais considerações a respeito dos tipos legais que subsidiam o combate a cartéis na esfera criminal são especialmente relevantes para a ótica administrativa concorrencial.

16/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 14.133/21 (nova Lei de Licitações) foi publicada no Diário Oficial da União no dia 1º de abril de 2021. Com a promessa de modernizar o ambiente de contratações públicas, ao menos nos âmbitos criminal e concorrencial, a nova Lei de Licitações, por certo, será objeto de significativa discussão. Neste artigo, teceremos breves considerações sobre possíveis efeitos da revogação do art. 90 da lei 8.666/931, que previa o crime de cartel em licitações públicas, e da criação de tipo penal equivalente, o crime de frustração do caráter competitivo de licitação, agora disposto no art. 337-F do Código Penal2, incluído pelo art. 178 da nova Lei de Licitações.

Como é sabido, além dos mencionados tipos penais especificamente relacionados ao processo licitatório público, o crime de cartel é previsto genericamente no art. 4º da lei 8.137/903 - dispositivo introduzido na Lei de Crimes Econômicos e Tributários pela própria lei 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência), que dispõe sobre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a investigação, processo e julgamento, no âmbito administrativo, de infrações à ordem econômica (e.g. cartel).

Tais considerações a respeito dos tipos legais que subsidiam o combate a cartéis na esfera criminal são especialmente relevantes para a ótica administrativa concorrencial. Isto porque o tipo penal terá impactos no prazo prescricional aplicável à esfera administrativa e às hipóteses de acordos e meios de obtenção de prova que podem ter efeitos nas investigações administrativas.

Antes de adentrar nos impactos decorrentes das alterações promovidas pela nova Lei de Licitações, um primeiro aspecto que merece destaque é o fato de não haver previsão de período de vacância. Com efeito, conforme o art. 194, a nova lei entrou em vigor na data de sua publicação.

No entanto, a previsão de vacatio legis é a regra definida pelo legislador, em consonância com o art. 8º da lei complementar 95/984, sendo exceção, portanto, a vigência imediata, aplicável apenas nos casos de leis de pequena repercussão.

Independentemente de quaisquer outros motivos, uma lei criminal mais severa, que estabelece novos tipos penais com penas inclusive maiores que a disciplina até então vigente, não pode ser tratada como de “pequena repercussão”.

Nesse sentido, parece-nos que a nova Lei de Licitações padeceria de vício de inconstitucionalidade formal, dado que, ao contrariar a lei complementar 95/98, contraria a própria Constituição Federal (parágrafo único do art. 595), que é clara ao prever que a lei complementar disporá sobre elaboração e alteração de leis.

Importante pontuar que o legislador optou por revogar os artigos 89 a 108 da lei 8.666/1993 na data da publicação, enquanto outros dispositivos permaneceram em vigor pelo prazo de 2 anos. Ou seja, os artigos que tratam da parte criminal já estão revogados, ao contrário de outros artigos da antiga norma, que coexistirão com a nova Lei de Licitações pelo próximo biênio.

Acordo de Não Persecução Penal

Outro aspecto a se notar foi o relevante aumento da pena prevista para o crime de cartel em licitações públicas. O art. 90 da Lei antiga previa pena de detenção de 2 a 4 anos para esse tipo penal. O novo art. 337-F dobrou a pena prevista para reclusão de 4 a 8 anos – significativamente superior à pena prevista ao próprio crime genérico de cartel do art. 4º da lei 8.137/90 (reclusão de 2 a 5 anos).

Para além do efeito no prazo prescricional, que será abordado a seguir, nota-se que o legislador parece ter se preocupado em excluir o crime de cartel em licitações públicas das hipóteses cabíveis para o acordo de não persecução penal, porque aplicável a infrações com pena mínima inferior a 4 anos.

Na esfera administrativa, permanecem as possibilidades de celebração de acordo de leniência e termo de compromisso de cessação da conduta, nos termos da Lei de Defesa da Concorrência. No entanto, foram reduzidas as possibilidades de solução negocial na esfera criminal, em que pese persistirem as hipóteses de colaboração premiada (lei 12.850/13) e dos benefícios da confissão espontânea (lei 8.137/90).

Diligências de Investigação

A nova Lei de Licitações reforça a ação dos agentes do Estado em suas investigações. Com efeito, diante da alteração de pena de detenção (art. 90 da lei 8.666/93) para reclusão (art. 337-F CP) passa a ser admitida às autoridades policiais a diligência de interceptação telefônica para investigar supostos crimes de cartel em licitações públicas, observados os demais requisitos do art. 2º da lei 9.296/96 – ou seja, quando houver indícios razoáveis de autoria ou participação e os elementos de prova não puderem ser obtidos por outros meios.

Na prática, no entanto, o Ministério Público e as autoridades policiais já vinham comumente utilizando-se desse meio de obtenção de prova, subsidiando os pedidos de diligências em outras acusações com penas mais gravosas, como o art. 4º da lei 8.137/90 e o próprio crime de organização criminosa (art. 2º da lei 12.850/13), para contornar essa limitação legal.

Prazo da Prescrição da Pretensão Punitiva

Como um dos pontos mais relevantes da alteração legislativa, destaca-se que a nova Lei de Licitações corrigiu uma distorção apontada há muito tempo pela doutrina concorrencial: os casos de cartel em licitações públicas tinham prazo prescricional inferior aos casos de cartel envolvendo agentes privados – claramente um equívoco de política criminal que merecia prioridade nos esforços legislativos.

Nesse quesito, Ana Paula Martinez sustentava a necessidade de compatibilização das sanções penais, tanto em relação ao quantum da pena, quanto em relação ao tipo de pena privativa de liberdade, de modo a evitar a desproporção entre os bens jurídicos tutelados e as penas aplicáveis e, também, de forma a garantir um intervalo adequado de pena para fins da análise das circunstâncias judiciais na primeira fase de fixação da pena pelo juiz. In verbis: “(...) nos parece que o mais acertado seria prever, quanto à pena privativa de liberdade para os tipos do artigo 4º da lei 8.137/1990 e o artigo 90 da Lei 8.666/1993, pena de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos6.

Nota-se que esse tema é muito relevante na esfera administrativa concorrencial na medida em que a prescrição relacionada aos procedimentos de apuração de conduta anticompetitiva é regida pela legislação penal quando o fato também constituir crime7.

Justamente para evitar reconhecer que uma quantidade relevante de casos estaria prescrita, a jurisprudência do CADE não tem enquadrado a infração de cartel em licitações públicas no art. 90 da lei 8.666/93, cujo prazo prescricional era de 8 anos (pena máxima 4 anos), e sim no art. 4º da lei 8.137/90, cujo prazo prescricional aumenta para 12 anos (já que a pena máxima é 5 anos).

Os fundamentos utilizados geram um claro risco àqueles casos que foram ou serão judicializados. A Administração Pública movimenta a máquina pública, tempo e recursos para investigar, processar e julgar administrativamente casos que, ao serem judicializados, podem rapidamente ser extintos sem julgamento do mérito, enquanto os esforços poderiam ser direcionados a outros casos para que não atingissem a prescrição.

O art. 337-F, nesse sentido, ao corrigir essa distorção, equipara o prazo prescricional do crime de cartel em licitações públicas àquele do crime genérico de cartel (art. 4º da lei 8.137/90) – ambos, a partir da nova lei, com prazo prescrição de 12 anos, nos termos do art. 109 do Código Penal.

Para além desse fato, e como bem apontado por Tiago Caruso e Rodrigo Pardal em artigo publicado no final de dezembro de 20208, ao revogar todos os tipos penais da Seção III da lei 8.666/93 na data de sua publicação e incluir tipos equivalentes e novos tipos penais no Título VI da Parte Especial do Código Penal, o legislador criou um problema de lei penal no tempo, o que consequentemente gera insegurança jurídica.

Para fins deste artigo, tratamos especificamente do crime de cartel em licitações públicas que, diante do conflito aparente de normas e em observância ao princípio da especialidade, assumimos que se subsumia, até então, ao tipo penal do art. 90 da lei 8.666/939, em consonância com precedentes inclusive dos tribunais superiores10.

Nesse sentido, teria a revogação do art. 90 reverberado nos antigos brocardos latinos: abolitio criminis ou novatio legis in pejus?

Como o novo art. 337-F do Código Penal é mais severo, de certo deve-se imperar o princípio da irretroatividade da lei penal, expresso no art. 5º, XL e XXXIX, da CF11, no art. 1º do CP12 e no art. 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)13. Ou seja, o art. 337-F não pode retroagir a fim de prejudicar o réu, tendo validade apenas para os fatos ocorridos a partir da data de entrada em vigor da nova Lei de Licitações.

Vale notar que a aplicação do princípio da especialidade, para os fatos decorridos a partir da vigência da nova lei, passa a ser mais prejudicial ao réu, uma vez que na previsão anterior a pena do crime de cartel em licitações públicas era menor do que a do cartel ‘genérico’.

Retomando o raciocínio, para os fatos ocorridos até a entrada em vigor da nova lei, parece-nos difícil argumentar que se trata de abolitio criminis porque a nova lei, em que pese revogar o art. 90, e todos os demais artigos que tratam de tipos penais da lei 8.666, não descriminalizou a conduta de cartel em licitações públicas. Ou seja, o legislador não tornou a conduta atípica, apenas alterou, em parte, o texto e aumentou sua pena.

Tampouco parece-nos que poderá ser argumentada a adoção automática do crime genérico de cartel art. 4º da lei 8.137/90, utilizando-se do argumento da revogação do art. 90 da antiga Lei de Licitações, uma vez que é caso padrão de aplicação do princípio da especialidade, inclusive como já reconhecido pelos tribunais superiores.

Nesse sentido, parece-nos que a revogação completa do dispositivo com a criação de um novo dispositivo em outro diploma legal, ainda que com determinadas diferenças, dentre elas o aumento da pena, deve ser tratada como novatio legis in pejus, mantendo-se a aplicação do dispositivo anterior para os fatos ocorridos antes da vigência da nova lei, de forma a manter o prazo prescricional em 8 anos.

Essenciais, portanto, contribuições críticas nesse momento de transição para a nova lei, especialmente considerando a diversidade de temas que ainda passarão pelo atento escrutínio doutrinário e judicial, incluindo as discussões tratadas brevemente acima, bem como aquelas derivadas da não revogação imediata da maior parte da Lei 8.666, ao contrário dos dispositivos penais.

_________

1Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:

Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”

2Frustração do caráter competitivo de licitação

Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.”

3Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:

I - abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas;

II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:

a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;

b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas;

c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.”

4Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão.”

5Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: (...)

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.”

6 MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis: interface entre direito administrativo e direito penal. São Paulo: Singular, 2013. p. 297.

7 Lei nº 12.529/11. Art. 46. “§ 4º Quando o fato objeto da ação punitiva da administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal.”

8 CARUSO, Tiago; PARDAL, Rodrigo. A nova Lei de Licitações e o velho problema da validade da lei penal no tempo. 2020.

9 Para fins deste artigo, não trataremos propositalmente da hipótese do art. 96 da lei 8.666/93.

10 STJ. Resp 1.623.985/SP. 6ª turma. Rel. Min. Nefi Cordeiro. Julgado em 17/5/18. DJe 6/6/18.

11Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; (...)

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

12Anterioridade da Lei

Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”

13Artigo 9º - Princípio da legalidade e da retroatividade

Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.”

Luciano de Souza
Bacharel pela Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Pós-graduado em Negócios Internacionais pela Fundação Dom Cabral (FDC). Sócio do escritório Cescon Barrieu Advogados.

Leonardo Danesi
Associado do escritório Cescon Barrieu Advogados.

Pedro Brasileiro Leal
Associado do escritório Cescon Barrieu Advogados.

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