Migalhas de Peso

O que Sócrates diria sobre o conceito de insumos para crédito de ICMS e a suposta necessidade de seu desgaste imediato e integral?

O tema, sob a sombra da execução iminente, gira em torno de um conceito fundamental no universo socrático – a noção dos contrários, de como eles, pelo exercício filosófico da busca da verdade, podem se completar.

14/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Embora não seja de modo algum ignorado, “Fédon” não é o mais popular dos diálogos socráticos transcritos por Platão. “A República” e “O Banquete” encabeçam a lista.

“Fédon” se desenrola no extremo das circunstâncias – a proximidade da morte. Lá é narrada a última conversa de Sócrates com seus discípulos pouco antes de beber a cicuta, pena à qual foi condenado por corromper a juventude de Atenas. O tema, sob a sombra da execução iminente, gira em torno de um conceito fundamental no universo socrático – a noção dos contrários, de como eles, pelo exercício filosófico da busca da verdade, podem se completar.

Essa narrativa nasce de uma situação prosaica. Retirados os grilhões que lhe apertavam as pernas, Sócrates observa como a dor e o prazer se recusam a ser simultâneos no homem, mas que, cessada a primeira, sobrevém imediatamente o segundo. Seus discípulos não aceitam a condenação de Sócrates e também sua calma e resignação ante a consumação de seu destino: “Mestre, como pode estar tão calmo, está condenado à morte!”. O filósofo responde: “E quem não está?”. Ainda incrédulos, dizem os discípulos: “Mas está condenado à morte e não fez nada de errado!”. Sócrates arremata: “Mas eu deveria me sentir melhor por ter feito algo de errado?”. E então tomou a cicuta.

O destino de Sócrates foi selado em 399 A.C.

Milhares de anos depois, no Brasil de 1967 entrou em vigor a Constituição do regime político que havia sido inaugurado dois anos antes. Em seu artigo 24, inciso II, §5º, se dizia que aos Estados cabia a instituição do ICM, devendo ele ser não cumulativo “abatendo-se, em cada operação, nos termos do disposto em lei, o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou outro Estado”. Essa regra foi mantida na Emenda Constitucional 1/1969.

No contexto dessas mutações constitucionais, em 1982 o Estado de São Paulo editou a Decisão Normativa CAT 2/1982 com o intuito de normatizar regras à tomada de créditos de ICM sobre a entrada de feltros utilizados na fabricação de papel. Embora sobre tema bem específico, a Consultoria Tributária da SEFAZ/SP de então buscou definir conceitos mais abstratos para determinação de quais insumos estavam, ou não, autorizados ser fontes de créditos do imposto, já que tais regras não poderiam ser obtidas à partir do próprio texto constitucional e também não havia norma estadual dispondo sobre os critérios ao crédito por indústrias.

A solução foi encontrar amparo no artigo 32, I, do RIPI/72 – Decreto 70.162/72, cujo texto era no sentido de que era possível a tomada de créditos de IPI sobre “matérias-primas, produtos intermediários e material de embalagem (...), compreendidos, entre as matérias-primas e produtos intermediários, aqueles que, embora não se integrando no novo produto, forem consumidos, imediata e integralmente, no processo de industrialização”.

Há, no aludido texto legal, 02 (dois) elementos fundamentais que a Decisão Normativa CAT 2/82 irá explorar: diferença entre produtos intermediários e produtos secundários; o consumo imediato e integral do insumo no processo de industrialização como dado relevante à definição do direito ao crédito.

Primeiro, a respeito das classificações produtos intermediários e produtos secundários a Decisão Normativa CAT 2/82 diz que o produto intermediário integra a estrutura físico-química do novo produto, sem que haja alteração em sua estrutura intrínseca. Deu como exemplo os pneus que integram o automóvel industrializado e as dobradiças que, na marcenaria, irão compor o móvel fabricado. Em ambos os casos os bens integrantes dos produtos não perderam suas propriedades físicas e/ou químicas. Isto, para a SEFAZ/SP, é produto intermediário.

Já os produtos secundários são aqueles que se consomem no processo de industrialização, mas, não se integram ao novo produto. Para ilustrar seu conceito, a SEFAZ/SP deu como exemplo o calcáreo, que na indústria de cimento é matéria-prima, mas na siderurgia é produto secundário porque é usado somente para extração das impurezas do minério de ferro, com as quais se transforma em escória se consumo no processo industrial sem integrar o novo produto.

Havia, portanto, certa relevância em se diferenciar produtos intermediário e produtos secundário, já que a base legal tomada de empréstimos – o artigo 32, I, do RIPI/72, fazia menção explícita ao vocábulo produtos intermediários. Logo, se o texto legal fez essa referência, passou a ser importante conceituá-lo adequadamente e diferenciá-lo de outros grupos de bens – como os produtos secundários.

Outro elemento explorado pela SEFAZ/SP foi o consumo imediato e integral do bem no processo de industrialização. Ao citar decisão proferida pelo Tribunal Federal de Recursos na Apelação 44.781/SP, que se funda exatamente no artigo 32, I, do RIPI/72, o Fisco Paulista tomou para si o entendimento de que, para fins do então ICM, para que houvesse o crédito era necessário que o bem tenha desgaste imediato e integral no processo produtivo. O Estado de São Paulo nunca teve em seu repertório legal, seja em leis propriamente, seja em Regulamentos de ICMS, qualquer disposição sobre regras acerca do tempo em que os bens devem ser desgastados no processo produtivo. Foi justamente em razão dessa ausência que a Decisão Normativa CAT 2/82 buscou fundamento no Decreto 70.162/72 – RIPI.

Os Regulamentos de IPI posteriores ao de 1972 deixaram de prever o desgaste imediato e integral como requisito à definição de produtos intermediários. Desde o Decreto 83.263/79 até o atual Decreto 7.212/10 não há nada a respeito. Mas, ainda assim, mesmo após a retirada do fundamento normativo que dava esteio ao entendimento firmado na Decisão Normativa CAT 02/82, o Fisco Paulista manteve o seu entendimento sobre a necessidade de haver o tal desgaste integral e imediato ao dizer que “o vigente Regulamento do IPI, aprovado pelo Decreto Federal 82.263-79, em seu artigo 66, não mais utiliza os advérbios "imediata e integralmente". É exato. Entretanto, conforme salientamos na Resposta à Consulta 626-80, aprovada pelo CAT-G, a legislação estadual não foi nesse passo, alterada”.

Sobre esses dizeres, é importante apontar que a escusa apresentada pelo Fisco Paulista, sobre o fato de não haver modificação da legislação estadual, não tem nenhuma justificativa. É que, conforme já dito, as normas paulistas jamais definiram o desgaste imediato ou integral como elemento determinante ao crédito, tanto assim que houve a busca de amparo na legislação do IPI. A eventual ausência de modificação na legislação estadual, mencionada na Decisão Normativa CAT 2/82, dizia respeito às normas gerais do imposto, não à disposição específica sobre os créditos no contexto do processo produtivo.

Pois bem. Tivemos a Constituição de 1988, que no artigo 155, §2º, inciso I, disciplina a não cumulatividade do agora ICMS. No plano constitucional nada mudou, o regime não cumulativo continuou sendo pautado pela regra de que o imposto da operação anterior servirá de crédito para abater o imposto da operação posterior.

Vamos viajar no tempo. Deixemos as décadas de 1980 para chegarmos ao Século XXI.

Em 2001 a SEFAZ/SP editou a Decisão Normativa CAT 1/1. Simplificou o regime ao equiparar material secundário e intermediário e trazer ambos ao campo dos bens creditáveis, abandonando, portanto, a diferenciação estabelecida em 1982. Mas, a novel Decisão Normativa não se pronunciou sobre eventual necessidade de o insumo se desgastar imediata e integralmente no processo produtivo. Ao citar Aliomar Baleeiro, diz apenas que “insumos são os ingredientes da produção, mas há quem limite a palavra aos 'produtos intermediários' que, não sendo matérias-primas, são empregados ou se consomem no processo de produção" (Direito Tributário Brasileiro, Forense Rio de janeiro, 1980, 9ª edição, pág.214). Nessa linha, como tais têm-se a matéria-prima, o material secundário ou intermediário, o material de embalagem, o combustível e a energia elétrica, consumidos no processo industrial ou empregados para integrar o produto objeto da atividade de industrialização, própria do contribuinte ou para terceiros, ou empregados na atividade de prestação de serviços”. Depois, traz alguns exemplos do que poderia ser tido como insumo creditável pelo ICMS. Muitos deles entram em contato diretamente com o bem em produção, tal como o instrumento de corte, mas, outros não, como os bens utilizados nos efluentes e no controle de qualidade e de teste de produtos.

A ausência de definição levou o TIT/SP a decisões variadas, ora determinando que o desgaste do produto intermediário há de ser integral e imediato, tal como se vê do julgamento do AIIM 3.116.522, ora ao contrário, por exemplo na decisão dada no AIIM 4.075.702.

Mas, ao que parece, um outro pronunciamento que não versa sobre os insumos passíveis de creditamento pode ter acabado por defini-los.

Refiro-me à Decisão Normativa CAT 05/05, que interpreta o vocábulo material secundário, citado no artigo 13, §4º, II, da LC 87/96, e artigo 39 do RICMS/SP, para a determinação da base de cálculo do ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa. Ao fazê-lo, o Fisco Paulista diz que, sob a rubrica material secundário, devem estar todos os valores que compõem o custo de produção e expressamente arremata que cabe ao contribuinte “apurá-lo em conformidade com os princípios e a metodologia da contabilidade de custos”.

A definição do custo de produção, por sua vez, não está relacionada ao desgaste imediato e integral do insumo com o bem em fabricação, sim em sua aplicação, direta ou indireta, ao processo produtivo.

De fato, de acordo com a antiga (e já revogada) NPC 02 do Ibracon, “custos de produção” é a soma dos gastos incorridos e necessários para a aquisição, conversão de um bem e compreende todos os gastos incorridos na sua produção. É o somatório dos gastos com matéria-prima e outros gastos fabris. Também o Comitê de Pronunciamentos Contábeis adotou a linha do Ibracon para definir o que é custo. O (atualmente em vigor) Pronunciamento CPC 16 diz que os custos de estoques fabricados são aqueles relacionados com as unidades produzidas ou com as linhas de produção, incluindo também a alocação sistemática de custos indiretos de produção fixos e variáveis que sejam incorridos para transformar os materiais em produtos acabados.

Ou seja, não há nada na conceituação de custo de produção que se refira ao desgaste imediato e integral em razão do contato com o bem em fabricação. Para defini-los, deve ser analisado se são incorridos no processo industrial, podendo ser desgastados em até 01 (um) ano, posto que se a vida útil for superior à esse interregno deverá ser ativo imobilizado da empresa.

Poder-se-ia dizer que a Decisão Normativa CAT 2/82 não foi expressamente revogada e, por isso, ainda estaria em vigor as restrições lá colocadas acerca da necessidade de haver desgaste imediato e integral do insumo. Mais ainda, seria justificável dizer que a Decisão Normativa CAT 5/5 se aplica apenas ao cálculo do ICMS devido nas transferências interestaduais, não para determinar quais bens seriam, ou não, insumos para fins de crédito do imposto.

Mas, essas eventuais afirmações devem ser infirmadas pelo seguinte: fosse de fato assim, haveria dois pesos e duas medidas para uma mesma situação, duas definições para um mesmo grupo de bens (insumos).

Esse duplo significado infringe as três leis lógicas propostas por Aristóteles: (i) a lei da identidade, pela qual todo objeto é idêntico a si mesmo; (ii) a lei da não contradição, segundo a qual algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo; e (iii) a lei do terceiro excluído, pela qual algo só pode ser e não ser, não havendo uma terceira alternativa possível.

Ora, se há definição do conceito de material secundário para uma determinada situação legal, então essa conceituação deve ser idêntica a outras situações, afinal, o conceito de material secundário é idêntico a si mesmo. Por outro lado, pela lei lógica da não contradição, o vocábulo material secundário não pode ser abrangente para uma situação e não ser abrangente para outra. Por fim, segundo a lei lógica do terceiro excluído, ou o conceito de material secundário é abrangente, ou ele é restrito, não podendo ser os dois, concomitantemente, sob pena de se violar a lei lógica da identidade e, assim, iniciar um ciclo vicioso de violações à lógica.

De tudo o quanto fora visto, é possível assentar algumas conclusões.

Conforme vimos, o estabelecimento da distinção entre secundários e intermediários feita pela Decisão Normativa CAT 2/82 veio em razão de omissão da legislação paulista. Tomou como base o RIPI/72 porque lá havia apenas a menção aos intermediários, daí a razão para distingui-los dos secundários. Ainda sobre o pronunciamento de 1982, a SEFAZ/SP entendeu por trazer aos requisitos do crédito o fato de o bem ser, ou não, consumido imediata e integralmente em razão do contato com o bem em fabricação. Mas, em 2001 o Fisco Paulista editou a Decisão Normativa CAT 1/1 e entendeu por equiparar os conceitos de secundários e intermediários, dando ambos como fontes de créditos de ICMS. Sobre a questão do desgaste imediato integral e imediato, ficou silente.

As diretrizes adotadas pelo Fisco Paulista em 1982 estavam previstas apenas no RIPI/72 e nunca mais fizeram parte de quaisquer normas, sejam elas federais ou estaduais.

É possível existir, pela lógica, dois conceitos para um mesmo elemento? Pode existir um conceito de produto secundário, dado pelas Decisões Normativas CAT 2/82 e 1/1, e outro dado pela Decisão Normativa CAT 5/5?

São respostas que nem a mais fina filosofia conseguiria dar.

Contudo, consoante analisado, parece ser natural que prevaleça a definição de material secundário da Decisão Normativa CAT 5/5, que não prevê o desgaste integral e imediato, por ser norma que trata do mesmo tema das Decisões Normativas CAT 2/82 e 1/1 e, mais ainda, é posterior a elas.

Voltemos à Grécia Antiga.

A maiêutica de Sócrates foi promissora. Travou batalhas retóricas contra Trasímaco, sofistas e tantos outros, vencendo-as. Educou seus discípulos e os fez pensar abertamente sobre a sociedade à volta. Seu sucesso o levou à morte.

Se pudéssemos conversar com Sócrates, ele nos diria palavras para nos trazer algum conforto filosófico, dada tantas discrepâncias e falta de diretrizes lógicas para definir o que confere crédito de ICMS. Falaríamos a ele que os contribuintes sofrem com a falta de segurança jurídica, estão à mercê de posturas sem critérios, sem dados objetivos por parte do Fisco e por isso estão sempre angustiados. Ele nos responderia “E quem não está?”. Desesperados, diríamos a ele que os contribuintes querem apenas dar cabo de suas atividades econômicas, gerar riquezas, gerar empregos, crescimento, e que não fazem nada de errado. Sócrates arremataria “Vocês se sentiriam melhor se tivessem feito algo de errado?”

Os contribuintes devem argumentar, impugnar, recorrer e se defender. Do contrário, restará apenas dizer: tragam-nos a cicuta.

Adolpho Bergamini
Advogado e Professor. Indicado pela International Tax Review, para compor o Indirect Tax Leaders Guide for Brazil. Mestrando em Direito Tributário pela FGV/SP. Ex-Conselheiro do CARF. Juiz do TIT/SP

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