É sabido que a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções ajuizadas contra os terceiros garantidores, por força de disposição expressa da lei 11.101/05, no art. 49, § 1º1.
Isso significa que os credores podem cobrar a dívida dos coobrigados (fiadores, avalistas etc.), mesmo que o devedor principal esteja em recuperação judicial.
O tema está há alguns anos pacificado no Superior Tribunal de Justiça, tendo sido objeto do REsp repetitivo 1.333.349/SP e da súmula 581, que tem a seguinte redação:
“A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.”
Como consequência da preservação das garantias pessoais, temos que a novação e a suspensão das ações (stay period) não atingem as obrigações assumidas pelos terceiros garantidores, o que faz todo sentido, uma vez que o patrimônio pessoal desses sujeitos não integra, via de regra, os ativos da recuperação judicial, não sendo revertidos para o cumprimento do plano e pagamento aos credores.
Ocorre que muitas empresas/empresários em recuperação judicial têm incluído em seus planos de soerguimento cláusulas que preveem a supressão das garantias, isto é, o impedimento de os credores cobrarem as dívidas dos devedores solidários – que na maioria das vezes são sócios, controladores, administradores da recuperanda – , sob a justificativa de que a quitação da dívida se daria unicamente por meio do cumprimento do plano, uma vez aprovado pelos credores e homologado pelo juiz.
Não demorou para que a comunidade jurídica questionasse a legalidade dessas cláusulas, diante da clareza da lei em prever a conservação das garantias fidejussórias, no mencionado § 1º do art. 49. Não obstante, as recuperandas defendem que o parágrafo seguinte do mesmo artigo contém uma exceção à regra, na hipótese de o plano de recuperação judicial prever expressamente a supressão das garantias.
Com efeito, o § 2º do art. 49 da LFR dispõe que “As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.”
Assim, segundo pregam os defensores dessa corrente, embora a lei preveja a conservação das garantias pessoais, a lei também excepciona a regra, autorizando que o plano de recuperação judicial disponha de forma diversa acerca das obrigações e condições originariamente contratadas, no que se inserem as garantias. Sustenta-se ainda que a garantia possui natureza absolutamente disponível, ou seja, o titular pode renunciar ao seu direito, de forma que a dita supressão não seria contrária ao ordenamento jurídico. Por esse motivo, tal cláusula não poderia ser objeto de controle de legalidade pelo juiz da causa, tratando-se de assunto estritamente negocial, cuja apreciação e discussão competem exclusivamente aos credores.
Esse entendimento acabou sendo sumulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, vejamos:
Súmula 61: “Na recuperação judicial, a supressão da garantia ou sua substituição somente será admitida mediante aprovação expressa do titular.”
Ao se debruçar recentemente sobre o tema, a 22ª Câmara de Direito Privado do TJSP, acompanhando novos precedentes do STJ que flexibilizaram o entendimento da já citada súmula 5812, decidiu também pela legalidade da cláusula de liberação de garantias, explicando que, tendo o plano de recuperação judicial naquele caso previsto expressamente que as ações e execuções contra os avalistas ou fiadores ficariam suspensas, a aprovação pelos credores acarretou na novação dos créditos não apenas em relação às empresas em recuperação, mas também aos terceiros garantidores, em exata observância às condições previstas. Vejamos a ementa do julgado:
Embargos à execução. Nota promissória. Devedor principal em recuperação judicial. Execução em face do avalista. Expressa previsão no plano de recuperação judicial homologado de suspensão da execução em face do avalista (art. 49, §2º, da 6ei 11.101/05). Ausência de oposição do credor. Peculiaridade fática que distingue o litígio das hipóteses de incidência da Súmula 581 e do Resp 1.333.349/SP (recurso representativo de controvérsia repetitiva), ambos do C. STJ. Precedente nesse sentido do C. STJ (REsp 1.700.487/MT). R. sentença reformada. Recurso de apelação provido. (TJSP; Apelação Cível 1053517-30.2019.8.26.0100; Relator (a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 19ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/2/21; Data de Registro: 23/2/21)
O desembargador relator Roberto Mac Cracken destacou que o credor que tentou prosseguir com a execução em face dos devedores solidários não havia demonstrado explicitamente oposição à cláusula de supressão das garantias quando o plano foi posto em votação na assembleia geral de credores, e que sua postura ao informar nos autos do processo de recuperação judicial os dados bancários para recebimento das parcelas previstas do plano configurou verdadeira concordância às condições propostas.
Como se vê, os credores e seus procuradores precisam estar atentos no acompanhamento do processo de recuperação judicial, visando à defesa de seus interesses e evitando surpresas que podem alterar substancialmente a posição, natureza e mesmo exigibilidade de seu crédito.
A jurisprudência nos tribunais brasileiros caminha na mesma direção do julgado em análise, considerando ser válida e eficaz a cláusula de supressão de garantias devido à natureza disponível do direito em comento, ao menos àqueles titulares que votaram favoravelmente.
Somado a isso, a recente alteração da Lei de Falências e Recuperação Judicial introduziu a possibilidade de os credores apresentarem um plano alternativo no caso de aquele formulado pela recuperanda ser rejeitado em assembleia. Nessa hipótese, ao invés de ser decretada imediatamente a quebra da empresa, os credores formalizariam uma “contraproposta”, mas o inciso V, do § 6º, do art. 56 da LFR (incluído pela lei 14.112/20) dispõe de forma categórica que esse plano alternativo deve conter obrigatoriamente “previsão de isenção das garantias pessoais prestadas por pessoas naturais”, o que serve para reforçar a concepção de que o direito atrelado às garantias fidejussórias possui natureza disponível, sendo passível de abdicação pelo titular.
Como desdobramento dessa tese, surge um outro questionamento muito relevante: qual seria o alcance da supressão das garantias em relação aos credores discordantes, isto é, aqueles que ressalvaram sua objeção à referida cláusula ou que votaram contra a aprovação do plano? Estariam eles vinculados à decisão da maioria?
O Superior Tribunal de Justiça já entendeu que sim, que se o plano de recuperação judicial contendo previsão de supressão de garantias for aprovado pela assembleia geral, com a devida observância do quórum legal, a aludida cláusula produz efeitos para todos os credores, indistintamente, inclusive aos que não compareceram ao conclave. Esse é o raciocínio adotado pelo STJ no julgamento do REsp 1.850.287/SP:
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CLÁUSULA DE SUPRESSÃO DAS GARANTIAS FIDEJUSSÓRIAS INSERTA NO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL, DEVIDAMENTE APROVADA PELA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. VINCULAÇÃO DA DEVEDORA E DE TODOS OS CREDORES, INDISTINTAMENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A controvérsia submetida ao exame desta Terceira Turma do STJ está em definir se, em relação à cláusula que estabelece a supressão das garantias fidejussórias, no plano de recuperação judicial, devidamente aprovado pela assembleia geral de credores, poderia o juiz restringi-la, quando de sua homologação, apenas aos credores que expressamente assentiram com tal disposição, não produzindo efeitos, assim, àqueles que não se fizeram presentes por ocasião da assembleia geral de credores, se abstiveram de votar ou se posicionaram contra tal disposição. 2. Como direito disponível, mostra-se absolutamente possível (e, portanto, não contrário ao ordenamento jurídico) o estabelecimento, no plano de recuperação judicial, de cláusula que estabelece a supressão das garantias fidejussórias. Afinal, se a cláusula supressiva fosse contrária ao direito posto e, portanto, inválida, não poderia produzir efeitos nem sequer àqueles que com ela consentiram expressamente, o que, como assinalado, refugiria sobremaneira da natureza do direito em análise e, principalmente, dos contornos efetivamente gizados na lei 11.101/05. Como se constata, a divergência que se coloca não seria propriamente quanto à validade, em si, da cláusula supressiva, mas sim quanto aos seus efeitos e a sua extensão, devendo-se perquirir, a esse propósito, o modo eleito pela lei para legitimar as deliberações correlatas, a qual se vale do critério majoritário, levando-se em conta, como deveria ser, o valor, a importância do crédito na correspondente classe. 3. Em regra (e no silêncio do plano de recuperação judicial), a despeito da novação operada pela recuperação judicial, preservam-se as garantias, no que alude à possibilidade de seu titular exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impor a manutenção das ações e execuções promovidas contra fiadores, avalistas ou coobrigados em geral, a exceção do sócio com responsabilidade ilimitada e solidária (§ 1º, do art. 49 da lei 11.101/05). 3.1 Conservadas, em princípio, as condições originariamente contratadas, no que se inserem as garantias ajustadas, a lei de regência prevê, expressamente, a possibilidade de o plano de recuperação judicial, sobre elas, dispor de modo diverso (§ 2º, do art. 49 da Lei n. 11.101/2009). É na exclusiva hipótese de haver aprovação pela assembleia geral de credores, com detida observância ao quórum legal, que a aludida cláusula supressiva produz efeitos para todos os credores indistintamente da correspondente classe. [...] 5. Recurso especial provido. (REsp 1.850.287/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 1/12020, DJe 18/12/20)
Esse entendimento vem ganhando força, mas ainda é controverso. A decisão em questão não foi unânime, valendo destacar trecho do voto divergente da Ministra Nancy Andrighi:
“Nesse contexto, a supressão das garantias somente pode ser admissível na hipótese de haver anuência prévia dos respectivos titulares, consubstanciada na manifestação expressa, em assembleia de credores, favorável à proposta de soerguimento apresentada pelo devedor que contenha tal previsão.”
Se prevalecer o entendimento de que a aprovação da supressão das garantias pela maioria dos credores vincula os demais, haverá um impacto ainda maior na relação dos titulares dessas garantias com os devedores, o que evidencia mais uma vez a importância de um acompanhamento diligente e cuidadoso pelo credor nas tratativas negociais com os devedores e pelos seus procuradores na condução do processo recuperacional. Nesse sentido, é pertinente a atuação de advogado especializado.
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1 Art. 49, LFR. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.
2 REsp 1700487/MT, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 26/4/19
AgInt no REsp 1838568/AC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 31/8/20