Migalhas de Peso

Do céu à terra com o artigo 166 do Código Tributário Nacional

O artigo defende a constitucionalidade do artigo 166 do CTN e sustenta que a vinculação do dispositivo com a figura dos tributos indiretos levou à incompreensão do preceito legal.

13/4/2021

1- O espectro do artigo 166 do CTN

No mês passado, foram publicados dois artigos1 sobre a repetição dos tributos indiretos. Nos dois, os autores defendem a inconstitucionalidade do art. 166 do CTN2. A discussão não é nova. O STF possui duas súmulas3 da década de 60 sobre o tema e muito já foi escrito a respeito. Nesse contexto, vale a lembrança da série de Caderno de Pesquisas Tributárias4, que, em 1983, dedicou o volume 8 ao art. 166. Três décadas depois, o tema foi objeto de obra coordenada pelo Professor Hugo de Brito Machado5.

A quantidade de tinta e tempo, todavia, não foram suficientes para alcançar um consenso, o que reflete nas posições da jurisprudência até os dias atuais.

Por outro lado, a oscilação deste debate gera curiosidade e minha teoria da conspiração é a seguinte. Sempre que existe uma tese tributária nos tribunais superiores com potencial de gerar restituições em massa, o tema volta à pauta e tira o sono dos contribuintes na mesma medida que dá esperanças ao Fisco. Me lembro, por exemplo, que, em 2010, no julgamento do caso Mataboi6, a Ministra Ellen Gracie fez proposta de modulação com fundamento que parece ter sido extraído do art. 166 do CTN. Para alívio dos contribuintes, a Ministra ficou vencida. No entanto, o espectro do artigo continuou a assombrar os contribuintes.

2- Do falso dilema e dos argumentos pela inconstitucionalidade

Um dilema costuma ilustrar o debate da constitucionalidade do art. 166 do CTN. Pensemos num tributo ilegalmente instituído, cobrado de um contribuinte que teria repassado o encargo no preço para um terceiro. Nesse cenário, o juiz enfrentaria a desafiadora escolha de (I) autorizar a repetição e com isso validar o enriquecimento indevido do contribuinte ou (II) negar a restituição e com isso validar o enriquecimento ilegal do Estado.    

Para aqueles que defendem a inconstitucionalidade do art. 166 do CTN, o dilema é resolvido com o argumento de que a relação entre o contribuinte e o terceiro é estranha ao direito tributário e a questão deve ser analisada sob a perspectiva do direito público e do postulado da reserva legal. Reproduzo a síntese da conclusão do Professor Fernando Scaff:

“Logo, se a lei permite que o Estado arrecade R$ 100,00 de tributo (não importa o tributo), qualquer valor recebido acima desse montante legalmente autorizado, deverá ser devolvido, pois ilegal. Simples assim.” (grifei)

A força do argumento vem da injustiça que ele parece evitar. Nessa leitura, o dispositivo estaria a avalizar arrecadação ilegal. A questão, todavia, não é tão “simples assim”. O art. 166 não busca autorizar arrecadação ilegal, mas sim prevenir que o Estado restitua mais do que foi ilegalmente arrecadado.

3- Vinculação equivocada entre o artigo 166 e os tributos “indiretos”

O Google apresenta aproximadamente 12.600 resultados para a pesquisa ao pé da letra da expressão “repetição de tributos indiretos”7. Esse dado indica que a discussão do art. 166 está associada aos tributos “indiretos”. Os dois textos do mês passado não só não fogem à regra como a confirmam.

Essa circunstância é, no mínimo, peculiar, porque, se bem analisado, no direito positivo, a classificação de tributos em diretos e indiretos não existe. É difícil dizer com segurança quais foram as causas que levaram à associação do art. 166 do CTN com a figura dos tributos “indiretos”. O mais provável é que essa linguagem e forma de descrever a discussão é herança da Súmula 71. Como diria o antropólogo David Graeber, “para discutir com o rei, é preciso fazer uso da linguagem do rei, ainda que as premissas iniciais não façam nenhum sentido8.  

De outro lado, o art. 166 é geralmente visto como a ovelha negra do CTN. Falo isso porque, na comunidade jurídica, o Código é considerado lei de alta qualidade técnica. Harada9 qualifica o diploma como uma “obra prima”. A qualidade do trabalho é atribuída a Rubens Gomes de Souza, em especial, e a Aliomar Baleeiro10. A participação desses juristas na elaboração do CTN é importante para a discussão, porque ambos11 12 rejeitavam a classificação dos tributos em diretos e indiretos. Se os criadores rejeitavam a classificação, como explicar a inserção do art. 166 no CTN? A resposta só pode ser uma de duas possíveis. A primeira seria que o dispositivo teria sido incluído no texto durante o processo legislativo sem o aval dos juristas [=tese ovelha negra]. A segunda seria que o art. 166 não está associado aos tais tributos “indiretos” e, nesse caso, sua prescrição é destinada a outras situações.

Se eu tivesse a felicidade de voltar no tempo e ter uma conversa com o Professor Gomes de Souza, cogito que ele responderia que a associação do art. 166 com a figura dos tributos “indiretos” é descabida, muito embora o preceito possa ser aplicado em situações em que a espécie tributária “indireta”, de acordo com o que é geralmente entendido como tal, esteja em jogo. 

Duas evidências dão suporte ao meu atrevimento de cogitar uma resposta que seria dada pelo mestre.

Primeira, embora com redação menos concisa da que assumiu o art. 166 do CTN, no projeto apresentado ao Congresso, aprovado por Baleeiro, existia disposição (art. 13113) com objetivo de limitar a repetição do indébito14. O cotejo dos dois textos revela que ambos buscam atingir o mesmo fenômeno.

A segunda evidência pode ser extraída de duas manifestações de Gomes de Souza. A primeira consiste em publicação de 195015, na qual o jurista critica decisão que negou a restituição de imposto “indireto”, mas aceita, em tese, a possibilidade de haver deslocamento da legitimidade para restituição a depender da relação que a lei poderia criar entre o Fisco e o contribuinte de fato. A segunda manifestação é de conferência de 1962, onde o jurista critica a classificação dos tributos em diretos e indiretos e diz que a incompreensão do tema levava a complicações em pedidos de restituição de impostos. A existência do registro dessa crítica feita em 1962 é relevante pela ausência de menção ao art. 131 do projeto, o que permite supor que, pelo menos no entender de Gomes de Souza, o dispositivo não tinha relação com a classificação.

O mergulho no passado nos conduziu à duas conclusões. Primeira, a ideia de limitar a restituição para o contribuinte de direito em algumas hipóteses estava presente desde o início do projeto do CTN. Segunda, essa limitação não tem nada a ver com a classificação dos tributos em diretos e indiretos. 

4- À guia de conclusão

Aqueles que defendem a inconstitucionalidade do art. 166 do CTN sustentam que a relação entre o contribuinte de direito e o de fato é estranha ao direito tributário. Em 1950, Gomes Souza disse que a lei brasileira, até então, não tinha atribuído “qualquer significação jurídico-tributária ao contribuinte de fato16.

Sob a perspectiva atual, a premissa é improcedente em pelo menos duas situações. A primeira consiste na relação entre o responsável tributário e o contribuinte17. A segunda na relação entre agentes de uma cadeia de circularização sujeita ao regime não cumulativo18.

Analisemos a situação do regime não cumulativo. Aproveitaremos o exemplo apresentado por Fernando Scaff, no artigo já citado:    

Exemplos podem facilitar a compreensão: qual a possibilidade concreta de uma lanchonete reaver o ICMS que possa ter sido cobrado a maior no preço dos milhares de sanduiches vendidos todos os meses? O ICMS foi transferido no preço das mercadorias e seguramente a empresa não conseguirá autorização de seus clientes para reaver esse tributo, caso considerado indevido, seja por erro de lançamento, seja por eventual inconstitucionalidade normativa.

No caso do sujeito que adquire e consome o lanche com suco19, de fato, não se estabelece nenhuma relação entre ele e o Fisco, o que permite concluir que o artigo 166 CTN não deve mesmo ser aplicado20. Todavia, se voltarmos uma etapa na cadeia, a conclusão é diferente. Seguindo no exemplo, pensemos na relação entre o distribuidor de suco21 e a lanchonete. Nesse caso, partindo do pressuposto de que a venda do suco está sujeita ao ICMS22, o negócio entre o distribuidor e a lanchonete será a causa de criação de uma nova relação jurídico-tributária entre a segunda e o Fisco. É que a aquisição pela lanchonete lhe conferirá o direito de crédito contra o Fisco equivalente ao imposto que foi destacado na operação com o distribuidor. Veja que, nesse caso, não é verdadeira a afirmação de que a relação entre o contribuinte de direito e o de fato é estranha ao Fisco. No caso dos tributos não cumulativos, operações de compra e venda formam relações triangulares, porque o débito do tributo no agente anterior se transforma em crédito do agente na etapa de circulação seguinte e tal crédito possui como contrapartida débito do Fisco.

No início do texto, foi dito que o objetivo do artigo 166 do CTN não é autorizar a arrecadação ilegal pelo Estado, mas sim prevenir que a restituição global seja maior do que foi efetivamente arrecadado.

Voltemos à cadeia econômica do suco para ilustrar o argumento. Imaginemos que seja um distribuidor de suco verde e que faça uma venda para a lanchonete no valor de R$ 10023, com destaque de ICMS de R$ 18 (18%). Na sequência, a lanchonete acrescenta sua margem, faz a venda do estoque de suco e gera um faturamento de R$ 140, com imposto de R$ 27 (18%).

Nesse exemplo, haverá dois débitos de ICMS, um do distribuidor de R$ 18 e outro da lanchonete de R$ 27, totalizando R$ 45. A arrecadação, no entanto, será de R$ 27, porque como a lanchonete tem o direito de crédito de R$ 18, o débito de R$ 27 na segunda operação será reduzido e o total a pagar será de R$ 9. Logo, o Estado receberá R$ 18 do distribuidor e R$ 9 da lanchonete.

Para completar o exemplo, suponhamos que exista uma tese tributária no sentido de que o ICMS sobre o suco verde é inconstitucional, porque a bebida é essencial para a saúde da população24. Nesse caso, se tanto o distribuidor como a lanchonete ajuizarem ação judicial com a tese, a vitória de ambos e a não aplicação do art. 166 CTN significará o dever de o Estado restituir a quantia total de R$ 45, quando na verdade a arrecadação foi de apenas R$ 27. A restituição seria maior do que a arrecadação, o que não me parece que pode ser aceito.

Quando uma pessoa compra um lanche e suco para aplacar a fome, ela só enxerga o preço. No entanto, quando estamos falando de agentes econômicos situados em posições intermediárias na cadeia de circularização sujeita a tributo não cumulativo, a situação não é tão simples porque o preço não se confunde com o custo.

A discussão do art. 166 do CTN não está no plano constitucional e não deve ser associada com a linguagem da tributação indireta. Ter essas premissas em mente é fundamental para evitar que o dispositivo seja aplicado em situações que não deveria, sendo o inverso também verdadeiro.

Nem o céu, nem o inferno.   

_________________

1 SCAFF, Fernando Facury. A devolução dos tributos indiretos e o princípio da legalidade. Revista Consultor Jurídico, publicado em 08.03.2021 e BERGAMINI, Adolpho. Um pouco mais sobre a repetição de indébito de tributos indiretos. Revista Consultor Jurídico, publicado em 17.3.21.

2 Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.

3 Súmulas 71 e 546.

4 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Repetição do Indébito. São Paulo: Resenha Tributária, 1983.

5 Tributação indireta no direito brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

6 STF – Pleno. RE nº 363.852/MG, Re. Min. Marco Aurélio, j. 3.2.10.  

7 Se a busca for feita pela expressão sem aspas, a pesquisa retorna aproximadamente 183.000 resultados. As pesquisas foram feitas em 10.4.21.

8 Debt: the first 5,000 years. Londes: Melville House, 2014, p. 8 (tradução livre).

9 Cinquenta Anos de Código Tributário Nacional. Migalhas, publicado em 30.09.2017.

10 Outros respeitáveis juristas e estudiosos contribuíram com o projeto. A seleção dos nomes levou em conta o reconhecimento que geralmente a comunidade jurídica atribui aos dois juristas e uma preferência pessoal do autor deste texto.

11 SOUZA, Gomes de. As modernas tendências do direito tributário. Revista de Direito Administrativo 74/1.

12 Vide voto proferido no RE 45.997/ES, época em que Aliomar Baleeiro assumiu o posto de Ministro do STF. No mesmo sentido: STF, RE 61.664/MG, rel. Min. Aliomar Baleeiro.

13 “Existindo disposição legal expressa que determine ou faculte ao contribuinte a transferência do tributo a terceiro, o direito referido no artigo anterior fica subordinado à prova de que a transferência não ocorreu efetivamente, por impossibilidade material ou jurídica, em face das circunstâncias do caso.”

14 Nesse contexto, é oportuno a lembrança da proposta de Gilberto de Ulhôa Canto que pretendia eliminar qualquer tipo de condicionamento para o contribuinte de direito pleitear a restituição. Vide artigo publicado pelo próprio Ulhôa Canto na obra citada na nota nº 5 (p. 1/16). 

15 Impostos indiretos – Restituição. Revista de Direito Administrativo 21/24.

16 Pág. 38 do texto indicado na nota 16.

17 Nesse sentido: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Repetição do tributo indireto: incoerências e contradições. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

18 Nesse contexto, é importante mencionar que, no ano de 1950, quando Rubens Gomes de Souza escreveu o texto citado, o tributação não-cumulativa ainda não existia no Brasil.

19 Acrescentei o suco no exemplo para deixá-lo mais interessante.

20 Sob essa perspectiva, concordamos com Fernando Scaff, embora por fundamento diverso. No exemplo da lanchonete, o artigo 166 do CTN não é aplicável, mas isso decorre de uma hipótese de não incidência, o que é diferente de dizer que o dispositivo é inconstitucional.

21 Para simplificar, assumi a premissa que o regime tributário do ICMS é o normal.  

22 Para facilitar o exemplo, parti do pressuposto que o regime do imposto é o ordinário, o que significa dizer que inexistem regimes especiais, tais como o diferimento ou a substituição.

23 Para facilitar o cálculo e simplificar o exemplo, a operação será considerada de forma isolada e levará em conta apenas o ICMS. 

24 Embora seja provável que o suco verde faça bem à saúde, a tese hipotética não me parece que teria prognóstico promissor.

Cláudio Lopes Cardoso Júnior
Advogado em São Paulo. Sócio da CCJ Advogados.

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