1 .OS CONTRATOS EMPRESARIAIS
Até muito pouco tempo, a doutrina entendia o contrato com menor importância, atribuindo ao ente produtivo o foco de análise1. Basicamente, a doutrina clássica adota que os elementos do contrato são a coisa (res), que é o objeto do contrato, o preço (pretium) convencionado e o acordo entre as partes (et consensus).
Em seguida, os atos jurídicos empresariais passam a ser observados conforme sua inserção no mercado, seguindo a ordem de que “na economia moderna, é o contrato, acima de tudo, que cria a riqueza”2. Nas palavras do Ilustre Professor Orlando Gomes3, o contrato é “o negócio jurídico bilateral, ou plurilateral que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam”, e sendo assim, é negócio “cujo efeito jurídico pretendido pelas partes seja a criação de vínculo obrigacional de conteúdo patrimonial”.
Desta forma, os contratos devem ser observados como negócios jurídicos que tem origem e conexão com a realidade das partes, sem se afastar do comportamento e reflexos do contexto em que estão inseridos, sempre ressaltada a necessidade de observância do mercado e dos negócios empresariais contemporâneos.
Os notórios ensinamentos do doutrinador italiano Ascarelli4 denotam que diferente do Direito Civil que se apoia em critérios da lógica, o Direito Comercial tem mais sentido apoiado no contexto histórico em que está posto. O método proposto por Ascarelli torna indispensável para a compreensão dos contratos comerciais, o seu reconhecimento e sua análise conforme uma perspectiva história.
Como é sabido, o direito clássico considerava solidificado que os princípios gerais dos contratos apoiados no individualismo, na liberdade de contratação e na presunção de igualdade entre as partes. Entretanto, o funcionamento deste mercado liberal gerou problemas que precisaram ser tutelados, como foi feito pelo Direito do Consumidor, por exemplo, que basicamente se ramificou como um ramo autônomo, mas que em teoria tratam do mesmo objeto, os contratos.
Neste sentido, bem assevera a professora Paula Forggioni5:
“Todos esses cismas e rearranjos são realizados [pelo Direito] em torno do status das partes. Os contratos mercantis despregam-se do direito comum porque deles participa um comerciante; os trabalhistas, porque envolvem empregado e os consumeristas porque na relação há um consumidor.”
A maior parte da doutrina, não dedica muito tempo à distinção dos contratos paritários gerais e os contratos empresariais. Mesmo os mais modernos códigos, não classificam com facilidade as diferenças entre os negócios entre civis e comerciais. Em suma, os contratos mercantis sempre tiveram um tratamento que não diferenciava a obrigação civil da comercial.
Contudo, a observação da necessidade de se reconhecer as especialidades de um direito do consumidor, com toda uma carga principiológica distinta, aplicação e contextualização diferentes, também trouxe à tona a obrigação de se reavaliar os contratos empresariais. Esse pensamento, foi esboçado pela doutrina brasileira, ainda na década de oitenta. Note-se:
“Há, portanto, [...] de se distinguir hoje entre os contratos comuns firmados entre particulares, de igual ou equivalente posição econômica, dos contratos entre empresas, e dos contratos dos particulares com as empresas, sendo estes últimos, o alvo especial do chamado direito do consumidor [...]”6
Mais recentemente, foi editada no Brasil a Lei da Liberdade Econômica, lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, que trouxe significativos conceitos e distinções para essa categoria dos contratos empresariais. Senão, observe-se o que está assegurado aos agentes econômicos:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
[...]
VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;
Portanto, a diretriz principal do conceito atual de contratos empresariais está fundamentada na liberdade de estipulação, que remota ao conceito clássico da autonomia das vontades, sendo que, como dito, observada no contexto do negócio de seu tempo, respeitada a dinamicidade do mercado.
Ademais disso, o contrato, visto de maneira singular, vincula uma relação obrigacional. Entretanto, quando considerado realizado por empresas, denota o caráter da atividade do ente produtivo. Muito além da vontade das partes isoladas, está todo o funcionamento econômico e sua força de imposição. O conjunto de relações empresariais forma o conceito econômico de mercado, que inclusive, limita as consequências de pactos fora de contexto.
Desta forma, uma vez que o objetivo da atividade empresarial é sempre o lucro, essa é a direção, é a “natureza e espírito do contrato” empresarial, atrelada à vontade comum das partes. Ou seja, muito além de sua singularidade, o contrato entre empresas ganha conotação mais específica, atrelada ao seu momento histórico e com características próprias do mercado em que está inserido.
Esse cenário de liberdade (autonomia) e segurança (pacta sunt servanda) é o que determina o maior ou menor nível de segurança daquele mercado. Ademais da garantia ao cumprimento dos contratos em si, quanto menos houver interferência do Estado no pacto entre as empresas, mais haverá um ambiente propício aos negócios.
Como os agentes econômicos respondem aos incentivos e desincentivos do Estado, deve-se estar atento que normas que limitem a livre contratação e autonomia dos mercados sempre irão ser consideradas prejudiciais, ou não estimulantes.
Neste contexto que se encontram as normas anti-elisão. Geralmente são leis criadas pelos Estados para limitar a formalização de contratos empresariais atípicos que visem exclusivamente a redução do impacto tributário. Este tipo de norma não estimulante ao mercado, encontra diversos paradigmas que devem ser sopesados pelo operador do Direito, especialmente para encontrar as lacunas e exercer, dentro dos limites da legalidade, sua autonomia e liberdade de contratar.
2. O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E OS LIMITES IMPOSTOS PELAS NORMAS ANTIELISÃO OU ANTI-ABUSO
O planejamento tributário é o estudo das alternativas lícitas de formalização jurídica de determinada operação, antes da ocorrência do fato gerador do tributo, para que o contribuinte possa optar pelo que apresentar o menor ônus financeiro.
O fato gerador7 de um tributo é a situação fática, a realidade material ocorrida, que trará reflexos no mundo jurídico, gerando uma obrigação tributária. Para ser válida, tal situação deve estar prevista na norma tributária, que consiste, assim, na hipótese normativa daquele tributo.
Desta forma, pode o administrador buscar alternativas não tipificadas em lei, ou, ainda que tipificadas, sejam manejadas com objetivos distintos da forma usual. Esse poder de decisão deve ser autorizado em razão do direito constitucional de livre iniciativa8. É nesta zona limítrofe que se enquadram os contratos empresariais que visam à redução da carga tributária, a princípio sem cometer ilegalidades, mas colocando em colisão diversos direitos, garantias e deveres constitucionais.
Esta forma de procedimento que se atenta à legalidade é chamada pela doutrina várias formas. Não há um consenso internacional de qual o melhor vocábulo para expressar esse tipo de procedimento lícito, que mais adiante se buscará entender seu alcance.
De toda sorte, ainda que com diversas nomenclaturas, o direito positivo dos Estados Democráticos tem sempre buscado limitar o uso desta ferramenta de planejamento, com fundamento que se interpreta do dever de solidariedade e o dever fundamental de pagar tributos9.
Para a doutrina brasileira, majoritariamente utiliza-se o termo elisão fiscal. A pesar da já destacada divergência quanto a precisão do termo, a qual pontuamos a do Ilustre Professor Kiyoshi Harada10, filiamo-nos à corrente defendida pelo Mestre Rubens Gomes de Sousa11, que, assim referenciou:
“o único critério seguro para distinguir a fraude da elisão é verificar se os atos praticados pelo contribuinte, para evitar, retardar ou deduzir o pagamento de um tributo foram praticados antes ou depois da ocorrência do respectivo fato gerador: na primeira hipótese, trata-se de evasão; na segunda trata-se de fraude fiscal”.
Seguindo uma linha mais rígida, encontram as previsões legais de Portugal. Neste país europeu existem medidas expressas de combate ao planejamento fiscal lícito, onde o legislador criou, por um lado, a Cláusula Geral Anti-abuso – CGAA – enquanto medida de carácter genérico que permite a desconsideração fiscal de todos os negócios, conduzidos de forma artificiosa e com abuso das formas jurídicas à obtenção de uma redução da carga tributária, e, por outro, normas anti-abuso específicas inseridas nos diversos textos normativos fiscais, que visam combater comportamentos peculiares, potencialmente elisivos, através da criação de presunções relativas, inversão do ônus da prova ou mesmo a desconsideração de algumas despesas.
A CGAA portuguesa, está posta no artigo 38º da Lei Geral Tributária, a qual houve recente alteração em sua redação, mediante Lei nº 32, de 3 de maio de 2019, podendo ser considerada norma já é baste completa, inclusive prevendo penalidades em caso de comprovação de qualquer das situações ali previstas.
Todavia, se verifica que em julgamentos perante o Tribunal de Justiça da União Europeia é reconhecido o direito ao planejamento fiscal por parte dos contribuintes, mas também o direito dos diferentes Estados Membros tomarem medidas que contrariem os comportamentos abusivos, não existindo, portanto, uma plena segurança de como proceder com esse planejamento lícito.
Em se tratando do ordenamento jurídico do Brasil, não existe uma norma expressa que determina todos os critérios e reflexos da atividade empresarial antielisiva. Em verdade, a norma geral tem eficácia limitada, pois estabelece que deverá ser criada uma lei ordinária regulamentadora. Note-se o que o parágrafo único, do artigo 116, do Código Tributário Nacional do Brasil:
“Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
[...]
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)”12
Assim, restou no ordenamento jurídico brasileiro o que se pode considerar uma norma geral antidissimulação13, isso porque o parágrafo único alude expressamente à “finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador [...]”, remetendo, desta maneira, à figura da dissimulação, sendo esta entendida como a conduta da pessoa que tem por objetivo enganar a administração fiscal sobre a existência de uma situação real.
Deste modo, depreende-se que para o Direito brasileiro somente poderá ser invalidado o negócio jurídico, contrato, que obtém efetivamente a vantagem econômica de reduzir a carga tributária, mas sem qualquer outro objetivo negocial diverso14.
Em outras palavras, é preciso se atentar para a utilização dos contratos empresariais com a finalidade exclusiva de planejamento fiscal, pois existem limites de licitude atribuídos que não podem apenas ser oponíveis pelos princípios da autonomia privada e da liberdade econômica. Contudo, importante se fazer a valoração da vontade comum das partes, sendo primordial interpretar o fim pretendido pelos contratantes.
O que se deve destacar é que para a validade dessa medida negocial não pode ser meramente financeira, haja vista que nem mesmo seriam necessárias as normas de Direito Tributário tutelarem essa ação, pois contratos não podem ser celebrados apenas com a finalidade de alterar a relação com terceiros, ou seja, como forma de simulação15.
Sendo assim, o que parece comum aos diferentes sistemas jurídicos normativos, é que desde que o contribuinte não se utilize de fraude à lei ou de dissimulação/simulação, o contrato será válido em todos os seus efeitos. Deste modo, uma vez que a obrigação tributária somente emana da subsunção do fato real tributável com a hipótese normativa, a vontade do contribuinte é relevante uma vez que determina-se previamente os caminhos estabelecidos pelo instrumento contratual16.
3. REFLEXÃO FINAL
Por todo o exposto, este breve estudo buscou pontuar, inicialmente, os conceitos básicos pertinentes aos contratos empresariais e suas distinções dentro do campo do direito civil e comercial. Paralelamente, destacaram-se as relevantes normas que limitam a livre pactuação para fins exclusivos de redução da carga tributária, bem como seus diferentes termos e imposições normativas adotadas em distintos países.
Restou claro que existem limites gerais ao princípio da autonomia e livre contratação, devendo serem aplicados sempre onde houver lacuna legislativa. Destaca-se como limitação à autonomia, dentre outros, a boa-fé, o abuso de forma, as normas de capacidade, os vícios de consentimento, os institutos corretivos, os direitos humanos, direitos ambientais, e, especial atenção para as leis e normas anti-elisão.
Segundo as normas de direito brasileiro, não pode a Administração fiscal se valer do exclusivamente do parágrafo único do art. 116 do CTN como norma anti-elisão, vez que não há no ordenamento jurídico pátrio a previsão dos procedimentos necessários à sua aplicação. Não há, portanto, qualquer vedação legal à elisão fiscal, e, os negócios somente podem ser enquadrados em outras previsões legais.
Todavia, de maneira expressa, o Direito Brasileiro veda qualquer tipo de simulação ou dissimulação, impondo a limitação à autonomia contratual quando visando exclusivamente esquivar-se do fato gerador, não sendo permitido se criar contratos atípicos sem que estes tenham alguma função além da diminuição da carga tributária. Em outras palavras, a finalidade desses instrumentos deve ter por fundamento algum outro elemento real para sua criação, e, não apenas a redução de impostos.
Em um contexto mais restritivo, encontra-se a previsão anti-elisão do Direito Português. Naquele país, existe a previsão determinada de que em ocorrendo o abuso de forma, aplicam-se as penalidades da Cláusula Anti-abuso (assim nomeada pela doutrina portuguesa), de cuja interpretação será presumida pela ilegalidade da construção contratual que visou à redução de impostos.
Em linhas gerais, a problemática se apresenta de duas formas: (i) para os Estados, que precisam evitar a redução inesperada e inapropriada da sua arrecadação tributária, mas ao mesmo tempo também precisam promover um ambiente de negócios o mais atrativo possível; (ii) para as empresas, que precisam ser diligentes com sua atividade, precisando utilizar-se do planejamento tributário para aumentar ou manter sua competitividade, porém ao mesmo tempo precisam estar atentas às limitações para não cometer ilegalidades, e, por conseguinte, infrações.
Em assim sendo, o mercado exige um ambiente jurídico o mais livre e autônomo possível, sendo necessário existir segurança jurídica para se alcançar a confiança e atratividade. Neste contexto, as normas gerais que limitam a atuação contratual da empresa para redução de sua carga tributária nem sempre são claras, e, em geral, deixa bastante malograda a segurança jurídica para o exercício das liberdades. Entretanto, não se pode considerar que existe uma vedação à sua utilização, desde que esses instrumentos contratuais tenham abarcadas outras obrigações relevantes, que não exclusivamente para esquivar-se das normas tributárias.
1 FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais. Teoria geral e aplicação. 5ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p.24.
2 ROPPO, VICENZO. Il contrato del duemila. 2 ed. Torino: Giappichelli, 2005. P. 56.
3 GOMES, Orlando. Contratos. 11ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1986, p.11.
4 ASCARELLI, Tulio. Corso di diritto commerciale: Introduzione e teoria dell’impresa. 3ª ed. Milano: Guiffre, 1962, p. 79.
5 Ob. Citada, p. 44.
6 BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 1987. P.24.
7 ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 3Ed. Método. São Paulo. 2009. p. 266-267.
8 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”
9 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 233.
10 “[n]a verdade, evasão vem do francês evasion, que expressa exatamente a lititude da economia tributária. Evadir significa evitar, desviar, escapar, ou seja, trilhar o caminho não onerado, o menos onerado pelo tributo” HARADA, Kiyoshi; HARADA, Marcelo Kiyoshi. Código Tributário Nacional comentado, São Paulo, Rideel, 2012. p. 243.
11 SOUSA. Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária, São Paulo, Resenha Tributária, 1975. p. 113.
12 Código Tributário Nacional, LEI 5.172, DE 25 DE OUTUBRO DE 1966.
13 CAVALI, Marcelo Costenaro. Cláusulas gerais antielusivas: reflexões acerca de sua conformidade constitucional em Portugal e no Brasil. Coimbra: Almedina, 2006, p. 259 e 260.
14 COURINHA, Gustavo Lopes. A cláusula geral anti-abuso no direito tributário. Contributos para a sua compreensão. Coimbra: Almedina, 2009, p. 180.
15 O art.167 do Código Civil Brasileiro, em seu parágrafo 1º, traz três hipóteses em que haverá simulação: quando os negócios jurídicos: I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
16 NABAIS, José Casalta. Contratos fiscais. Reflexões acerca da sua admissibilidade. Coimbra, 1994, p. 91.