Em 1980, John Hart Ely publicou seu ousado Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review1, em que, a partir do diagnóstico de que o debate constitucional estadunidense, no que diz respeito à Suprema Corte (leia-se: sua atividade e sua maior ou menor influência sobre o processo político daquele país), estava dividido entre o “interpretativismo” (i.e., a ideia de que a atuação judicial deve estar ancorada na legislação e, mais especificamente, orientada pelos ditames da Constituição) e o “não-interpretavismo” (a ideia oposta, i.e., de que a Corte pode agir sem necessariamente um ponto de ancoragem na Constituição). Ely, assim propunha uma terceira via, visando a superar tal debate.
Que era ela exatamente? Segundo Ely2, a Constituição Estadunidense (voltaremos a este grifo abaixo) não é um documento voltado prioritariamente a defender uma gama de valores e princípios caros à sociedade que a produz, mas sim, diferente do que usualmente a concebemos3, ela se destina à proteção do processo político democrático (é um pouco confuso que Ely admite que a Constituição defende valores, mas tenta minimizar esta constatação)4. Desta forma, para Ely, tal como os órgãos antitrustes, que atuam no âmbito do mercado e buscam garantir o seu adequado funcionamento, bem como proteger a coletividade contra suas falhas, a Suprema Corte deve exercer o papel de “antitruste do sistema político”, isto é, impedir que certos grupos – especialmente os majoritários, segundo a concepção de Ely – venham a adquirir maior poder de direcionamento ou influência sobre o próprio processo político, protegendo, dessa forma minorias5 – discretas e insulares – de legislações discriminatórias e desobstruindo os caminhos para a sua participação no sistema político, além de proteger os direitos fundamentais para o bom funcionamento da democracia. Colocando em outros termos, a Suprema Corte protege o próprio funcionamento do sistema político.
Não temos a intenção, aqui, de rever as críticas a Ely uma a uma (ainda que seja necessário pontuar que elas existem)6. A indagação que procuramos responder é outra: sabemos que a teoria de Ely fez sucesso entre os estadunidenses, mas ela faz algum sentido no Brasil? Ou ela é apenas uma idiossincrasia americana, distante e incompatível com a realidade experimentada em nosso país?
Nesse sentido, um primeiro caminho para nossa resposta é a simples comparação entre os textos. Enquanto a Constituição Estadunidense é o típico exemplo de uma constituição sintética e garantia, a nossa é exatamente o oposto: dirigente e analítica7. Em outros palavras, é mais fácil, para Ely, negar que a Constituição Estadunidense proteja direitos (ainda que o argumento seja fraco, afinal, o liberalismo e a Constituição Estadunidense, como típico exemplo do liberalismo, protegem direitos)8 em um documento cujo Bill of Rights são as suas 10 primeiras emendas (amendments 1 a 10) ou converter estas garantias em garantias meramente processuais. Seria mais difícil, porém, tentar o mesmo procedimento com os 78 incisos do art. 5º da Constituição de 1988 (isto, sem mencionar que o Título II da CF vai até o art. 17) e ter um resultado intelectualmente respeitável. Imperativo, portanto, concluir que se o modelo de teoria constitucional processual é debatível, em um contexto normativo como o estadunidense, no contexto brasileiro9, então, certamente, ele não faz sentido.
Além disso, no que tange a diferença entre ambos os textos, é de se mencionar que, ainda que aceitemos as premissas de Ely como factíveis, o esforço de leitura necessário para interpretar as normas da Carta Estadunidense segundo uma perspectiva “procedimentalista” varia em muito daquele potencialmente aplicável às suas análogas brasileiras. A natureza dita “programática”10 de nossa constituição a faz versar diretamente sobre searas específicas da vida em sociedade, almejando regular, segundo sua concepção particular de “ordem”, e.g. a economia, o “social” - aqui incluído a educação, a saúde e até a cultura e a organização detalhada da estrutura do Estado, diferente do que ocorre nos EUA, cuja Constituição é de muitas maneiras mais sucinta e “modesta” em seus objetivos.
O segundo ponto que merece atenção é a diferença entre as duas sociedades: brasileira e a estadunidense. Isto, pois é evidente que quando falamos sobre minorias e proteção de minorias, saímos da seara meramente jurídica e adentramos em outros campos, distintos do direito, mas com os quais o jurista (e, especificamente, os juízes da corte constitucional) terão obrigatoriamente que lidar. Isto é, aquilo que, nos Estados Unidos, parece um bom modo de proteger minorias, não necessariamente funcionaria no Brasil, pois as realidades são distintas. Nesse sentido, o autorizadíssimo Darcy Ribeiro discorre que:
“Apesar da associação da pobreza com a negritude, as diferenças profundas que separam e opõe os brasileiros em extratos flagrantemente contrastantes são de natureza social. [...] É assinalável, porém, que a natureza mesma do preconceito racial prevalente no Brasil, sendo distinta da que se registra em outras sociedades, o faz atuar antes como força integradora do que como mecanismo de segregação. O preconceito de raça, de padrão anglo-saxônico, incidindo indiscriminadamente sobre cada pessoa de cor, qualquer que seja a proporção de sangue negro que detenha, conduz necessariamente ao apartamento, à segregação e à violência, pela hostilidade a qualquer forma de convívio. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo, diferencialmente, segundo o matiz da pele, tendendo a identificar como branco o mulato claro, conduz antes a uma expectativa de miscigenação. Expectativa, na verdade, discriminatório, porquanto aspirante a que os negros clareiem, em lugar de aceitá-los tal quão são, mas impulsora da integração (Nogueira 1955)”11
Mesmo que consideradas como sendo de extrato etnográfico bastante heterogêneo e similares entre si, em linhas gerais, quanto a alguns outros aspectos, dado o seu histórico, formação colonial e passado de destino de fortes movimentos migratórios, ambas as sociedades guardam, cada uma, especificidades significativas, que dificultam ou, até mesmo, impedem a utilização de expedientes simplistas e homogeneizantes entre ambas, forçando similitudes onde na verdade existem diferenças visando aplicar, por exemplo, teorias constitucionais. Colocando a questão em termos mais claros: formas diferentes de um mesmo problema (in casu, a discriminação contra negros e pardos), podem ter a mesma solução? Sim, é verdade que podem (dependendo do caso), mas não necessariamente. E qualquer tentativa de aplicação da solução de Ely para o problema nos Estados Unidos, aqui, no Brasil, teria de levar em conta estas diferenças.
O leitor poderá notar, portanto, que em uma análise rápida encontramos dois grandes óbices à aplicação da teoria de Ely no Brasil: as normas jurídicas e o contexto social da sua formulação. Por que isso é importante? Não somos favoráveis ao chauvinismo jurídico, os estrangeiros têm muito a nos dizer, e, por consequência, podemos aprender muito com eles (quem negará que a teoria de Ely é interessante? Ou que os estadunidenses tem uma rica cultura jurídica?). Dito isso, não somos favoráveis à importação acrítica (i.e., cega, como se faz por aí) do referencial teórico estrangeiro, tanto em relação às críticas que ele comporta per se, quanto em relação à sua incompatibilidade com a realidade nacional (muitas vezes extremamente distinta da realidade na qual a teoria foi produzida). Em ambos os critérios, a teoria de Ely falha, motivo pelo qual é imperativo concluir que sua importação é desaconselhável. Por mais paradoxal que seja, porém, o livro é bom, tem informações e considerações interessantes (especialmente os seus capítulos 2 e 3), e, evidentemente, merece ser lido.
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1 Ver ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge, Massachusetts; London: Harvard University Press, 1980.
2 Ver, em especial, os três últimos capítulos da obra. Os três primeiros apenas situam Ely no debate e criticam as duas vertentes. Crítica que, aliás, como notou Posner, é muito proveitosa. Vide: POSNER, Richard. A. Democracy and Distrust Revisited. Virginia Law Review, v. 77, n. 4, p. 651, May 1991.
3 Ver, e.g., SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, pp. 39-40; MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2016, pp. 1-2; segundo André Ramos Tavares, o Direito Constitucional é “o berço natural da positivação dos direitos humanos”, vide: TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 119-120.
4 Ver ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge, Massachusetts; London: Harvard University Press, 1980, pp. 99-101.
5 Para uma referência básica sobre a democracia contemporânea e suas características constitutivas, ver DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016.
6 Ver TRIBE, Laurence H. The Puzzling Persistence of Process-Based Constitutional Theories. Yale Law Journal, v. 89, n. 6, 1980. Disponível em: clique aqui; TUSHNET, Mark. Darkness on the Edge of Town: The Contributions of John Hart Ely to Constitutional Theory. Yale Law Journal, v. 89, n. 6, 1980. Disponível em: <clique aqui>; POSNER, Richard A. Democracy and Distrust Revisited. Virginia Law Review, v. 77, n. 4, pp. 641-651, 1991.
7 Para classificações tipológicas das constituições, ver TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 168-181; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 38-43; MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 60-64; MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2016, pp. 7-11; SARLET, Ingo Wolfgang; MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 72-80; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, pp. 42-44. Ademais, para uma perspectiva zetética sobre a evolução do constitucionalismo, ver TEUBNER, Gunther. Fragmentos Constitucionais: Constitucionalismo social na globalização. Trad. Marcelo Neves, Pedro Ribeiro, Ricardo Campos, et al. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 47-90.
8 Não é possível negar que o liberalismo pretende usar o sistema jurídico – e, em especial, a constituição – para proteger uma série de direitos básicos. Nesse sentido, ver: DÍAZ, Elias. Estado de Derecho y Sociedad Democratica. 8. ed. Madrid: Taurus, 1981, p. 222; SCHMITT, Carl. Constitutional Theory. Trad. Jeffrey Seitzer. Durhan, London: Duke University Press, 2008, pp. 197-219. Especificamente sobre o caso estadunidense, Jill Lepore argumenta que “o experimento americano se sustenta em três ideias políticas, ou ‘estas verdades’, como Thomas Jefferson as chamava: igualdade política, direitos naturais e soberania do povo.” LEPORE, Jill. Estas verdades: a história da formação dos Estados Unidos. Trad. André Czarnobai; Antenor Savoldi Jr. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 12.
9 Mesmo no momento de maior influência americana, a Constituição de 91 (quando o país, não por coincidência, chamava Estados Unidos do Brasil), a Constituição Brasileira ainda tinha uma feição nitidamente diferente da Estadunidense. Ver: SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo brasileiro (evolução institucional). São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 51-57.
10 Ver a nota 7.
11 Ver RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2015, p. 177.