Já faz dois anos, três meses e onze dias que o atual inquilino do Alvorada tomou posse, de forma que, a esta altura, já deveríamos estar habituados às polêmicas diárias que suscita, algumas delas ainda nas primeiras horas da manhã, de maneira a ocupar o noticiário pelo restante do dia, até que a nova surja.
A mais recente, porém, causou-nos especial indignação. Seja pela ignorância jurídica de seu conteúdo, como pelo modo atrabiliário com que proferida, dirigindo-se grosseiramente a um Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Referimo-nos às declarações que o Presidente da República dirigiu ao Ministro Luís Roberto Barroso, indignado que estava com a decisão proferida pelo último, determinando fosse instalada Comissão Parlamentar de Inquérito, no Senado Federal, a fim de investigar as ações do governo federal no enfrentamento da pandemia de Covid-19.
É verdade que não se pode exigir do leigo saber técnico sobre leis, sua interpretação e aplicação. No caso, porém, ainda que se trate de parlamentar experimentado, que atuou na Câmara Federal por 27 anos, não é possível assegurar que tenha sido capaz de assimilar conhecimento sobre Direito nessas quase três décadas. Mas tal escusa, hoje, não se lhe aplica, já que, por seu cargo, está cercado (ou deveria estar) por assessores com conhecimento jurídico, os quais poderiam, facilmente, explicar-lhe questões simples, como o direito das minorias em casas parlamentares.
Com efeito, qualquer bacharel em Direito sabe da importância que as Comissões Parlamentares de Inquérito têm como instrumento de fiscalização do Poder Legislativo em relação ao Executivo e que, por esta exata razão, devem estar acessíveis às correntes políticas minoritárias, não se sujeitando ao alvedrio do Presidente da casa.
Tal ensinamento foi corajosamente forjado há quase duas décadas no seio do Supremo Tribunal Federal, onde o Ministro Celso de Mello, recentemente aposentado, foi um dos mais brilhantes e profícuos cultores, e o Ministro Luis Roberto Barroso, o mais recente porta-voz.
Simples pesquisa no banco de jurisprudência da Corte pode demonstrar não terem sido poucas as ocasiões em que o Plenário pontificou, como líquido e certo, o direito de minorias parlamentares verem instauradas CPIs, desde que apresentassem requerimento subscrito por, no mínimo, um terço dos membros da casa, indicassem fato determinado e prazo certo de duração (art. 58, §3º, da Constituição Federal).
Veja-se, nesse sentido, voto subscrito pelo Min. Celso de Mello, por ocasião do julgamento de Mandado de Segurança, no Tribunal Pleno, em junho de 2005:
“(...) A norma inscrita no art. 58, § 3º, da Constituição da República destina-se a ensejar a participação ativa das minorias parlamentares no processo de investigação legislativa, sem que, para tanto, mostre-se necessária a concordância das agremiações que compõem a maioria parlamentar. A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO DE DIREITO REFLETE UMA REALIDADE DENSA DE SIGNIFICAÇÃO E PLENA DE POTENCIALIDADE CONCRETIZADORA DOS DIREITOS E DAS LIBERDADES PÚBLICAS. - O Estado de Direito, concebido e estruturado em bases democráticas, mais do que simples figura conceitual ou mera proposição doutrinária, reflete, em nosso sistema jurídico, uma realidade constitucional densa de significação e plena de potencialidade concretizadora dos direitos e das liberdades públicas. - A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República. - O direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa promessa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática efetiva e concreta. - A maioria legislativa, mediante deliberada inércia de seus líderes na indicação de membros para compor determinada Comissão Parlamentar de Inquérito, não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar em torno de fato determinado e por período certo.” (MS 24831).
No mesmo sentido, pode-se citar o MS 24849, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2005; e o MS 26441, Tribunal Pleno, julgado em 25/04/2007, ambos também da Relatoria do eminente Min. Celso de Mello; ADI 3.619, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 1º/8/2006, Tribunal Pleno.
Note-se, ademais, que todas as manifestações da Corte Suprema mencionadas acima foram pronunciadas por seu colegiado máximo, o Plenário, a demonstrar não só a uniformidade do entendimento sufragado, mas sua autoridade.
Tais circunstâncias, aliás, é que têm possibilitado que Ministros da Corte possam, monocraticamente, proferir decisões nesse mesmo e exato sentido, uma vez que as balizas para tanto foram postas com clareza pelo Plenário.
Como se vê, o eminente Ministro Luís Roberto Barroso nada fez além de aplicar um entendimento consolidado, desde há muito, pela Suprema Corte – e o fez, ainda, com extrema cautela, já que consultou seus pares antes de assim decidir e tentou pautar o feito no colegiado, o que era absolutamente desnecessário.
Surpresa, portanto, é constatar haver quem se surpreenda com a decisão, o que só pode mostrar falsa indignação ou inimaginável grau de alienação.