A operação financeira da securitização só é possível em razão do mecanismo do Special Purpose Vehicle (SPV), ou seja, do chamado Veículo de Propósito Específico (VPE). Isto porque é este veículo que garante a “bankruptcy remoteness”, ou seja, protege o pool de ativos subjacentes de eventual falência do originador/cedente. É certo que as securitizações são realizadas para isolar o risco do crédito dos ativos do risco de eventual falência do emissor. No Brasil, inclusive, este mecanismo foi recepcionado pela Lei de Falências e Recuperação Judicial (lei 11.101/05), a qual, no artigo 136, reconhece que na hipótese de securitização, deverá ser declarada a ineficácia da ação revocatória em relação aos créditos da empresa falida ou sob recuperação.
No Brasil, o VPE, isto é, o Veículo de Propósito Específico pode ser dividido em três espécies: (I) Entidade de Propósito Específico (EPE); (II) Fundo de Investimento em Direito Creditório (FIDC); e (III) sociedade anônima a ser constituída com propósito específico.
A resolução de 2.907/01 do Conselho Monetário Nacional autorizou a constituição e o funcionamento do FIDC e do FICFIDC (Fundos de Investimento em Cotas de Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios). Já a Resolução de 356/01 da CVM regulamentou a constituição e o funcionamento dos Fundos de Investimentos Creditórios e de Fundos de Investimentos em Cotas de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. O FIDC corresponde, segundo o inciso III do artigo 2º da Resolução da CVM a “uma comunhão de recursos que destina parcela preponderante do respectivo patrimônio líquido para a aplicação em direitos creditórios”. Já o FICFIDC diz respeito à “uma comunhão de recursos que destina no mínimo 95% do respectivo patrimônio líquido para a aplicação em cotas de FIDC” (artigo 2º, inciso IV).
A natureza jurídica de tais fundos é muito debatida. Tanto para a CVM – por meio da Instrução normativa 555/14 –, como para o Banco Central do Brasil (BACEN), “Fundo de Investimento” é “uma comunhão de recursos, constituída na forma de condomínio, destinada à aplicação de ativos financeiros”, ou seja, trata-se de um condomínio (artigo 3º da instrução 555/14). O próprio Código Civil, após o advento da lei de 13.874/19 (LLE), passou a classificar o condomínio como "comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza" - artigo 1368-C.
Contudo, este conceito não tem se demonstrado suficiente. O debate ainda é grande perante a doutrina. Por um lado, há quem sustente que o fundo de investimento deve ser entendido como: “uma forma de propriedade coletiva com características especialíssimas delimitadas pelo próprio regimento”. Por outro lado, há aqueles que sustentam a natureza de simples sociedade, submetida a seu contrato social. O fato é que, além da divergência acima, das inúmeras resoluções distintas perante a CVM, o Código Civil, em seu artigo 1.368-D destaca a importância dos regulamentos de cada fundo no tocante à responsabilidade dos administradores e cotistas.
De forma a garantir segurança jurídica, a adaptar e sistematizar as inovações indicadas pela lei 13.874/19 (LEE) e, em conformidade com o decreto 10.139/19, responsável por dispõe a respeito da revisão e da consolidação dos atos normativos inferiores a decretos, a CVM promoverá, nos próximos dias, audiência pública para iniciar o processo de consolidação das normas dos fundos, alinhando ambas as regulamentações às inovações trazidas na LLE de uma só vez. O novo Regulamento será dividido em três grandes etapas: (I) uma estrutura principal, contendo os dispositivos aplicáveis a todas as categorias de fundos (Resolução); (II) um anexo disciplinando especificidades dos fundos de investimento em ações, cambiais, multimercado e em renda fixa (Anexo Normativo I); e (III) um anexo disciplinando especificidades dos fundos de investimento em direitos creditórios (Anexo Normativo II).
Uma ligação da proposta apresentada pela CVM com o direito financeiro deve ser destacada: não se fala aqui da regulação dos fundos para a alienação de créditos originários da dívida ativa (o que, até o presente momento não houve menção). A proposta da CVM diz respeito à regulação dos recursos do FIDC que serão aplicados em precatórios federais (o que não é uma inovação). A novidade, em verdade, está na criação de mecanismos para tratar das incertezas associadas à constituição, exigibilidade e titularidade dos precatórios federais.
Sendo assim, nos próximos dias, nova regulação será editada de forma a garantir mais segurança jurídica à atividade financeira, a qual, a cada dia, torna-se mais organizada em fluxos (adotando-se as palavras de Manuel Castells), a partir do espaço desenhado pelas normas jurídicas. As ligações da atividade financeira dita como privada com a pública demonstram-se mais e mais evidentes, o que comprova a importância do direito financeiro para além das regras orçamentárias.