Dia 1º de abril entrou em vigor a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133/21), revogando a lei 8.666 que há quase 30 anos estabeleceu as normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Dentre as inúmeras alterações trazidas, destacamos as que dizem respeito ao uso dos métodos adequados de solução de conflitos decorrentes dos contratos administrativos celebrados. É com muita alegria que vemos o legislador federal dando mais um passo na valorização dos meios alternativos à tradicional jurisdição, para resolver conflitos no âmbito do Poder Público.
Como se extrai da leitura do artigo 151 da nova lei, os meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, como a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem poderão ser utilizados nas contratações regidas pela lei.
O parágrafo único do citado artigo diz textualmente que as controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações, podem ser resolvidas pelos métodos alternativos.
O artigo 153 permite que os contratos já celebrados pela Administração Pública sejam aditados para conter cláusulas contratuais prevendo o uso dos métodos alternativos. Ou seja, estimula-se não só a utilização da conciliação, mediação, arbitragem e dispute boards em novas contratações, como também para as relações e contratos já existentes.
O artigo 154, por sua vez, estipula que a escolha dos profissionais que auxiliarão as partes a prevenirem ou a solucionarem os conflitos decorrentes da relação contratual deverá observar critérios isonômicos, técnicos e transparentes. O dispositivo cuida dos árbitros e dos membros dos comitês, não citando expressamente os conciliadores, negociadores ou mediadores. Mas nos parece claro que também para esses profissionais a escolha deve observar os mesmos critérios.
No artigo 138, II, mais uma referência é feita aos métodos de autocomposição quando o legislador prevê que a extinção do contrato poderá ser consensual, por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas, se a Administração pública tiver interesse. No inciso III do mesmo artigo, destaca que a extinção do contrato poderá se dar por decisão judicial ou arbitral, ou seja, por um método heterocompositivo (jurisdição ou arbitragem).
A negociação, outro método eficiente de prevenir e solucionar conflitos, também aparece na nova lei em alguns dispositivos. No artigo 61, permite ao administrador público negociar com o primeiro colocado condições mais vantajosas; no artigo 107, permite a negociação da prorrogação ou extinção do contrato de serviços e fornecimentos contínuos; e no artigo 90, § 4º, estimula a convocação dos licitantes remanescentes para negociação, caso o licitante vencedor não celebre o contrato com o Poder Público.
Especialmente desde 2015, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil, lei 13.105, e da lei 13.140, que disciplinou a mediação judicial e extrajudicial no Brasil, os métodos alternativos como a conciliação, mediação, negociação, dispute boards, dentre outros, vêm ganhando espaço. A arbitragem, cabe destacar, já vem se desenvolvendo no Brasil há mais tempo, especialmente desde que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucionais dispositivos da lei 9.307/96.
As tensões e os conflitos são fenômenos inerentes ao convívio social; imaginar a inexistência deles seria ingênuo, mas buscar preveni-los ou resolvê-los de uma maneira mais eficiente, menos custosa (financeira e emocionalmente) e mais rápida, é medida essencial para contribuir para a pacificação social e para o desafogamento do Poder Judiciário que conta com mais de 80 milhões de processos aguardando julgamento. É aqui que a utilização dos métodos alternativos ou adequados de solução de conflitos ganha relevo.
Cada vez mais se tem entendido que o direito fundamental de acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CF, que trata do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, pode e deve ser exercido de forma mais ampla, com o uso de ferramentas jurídicas que garantam às partes a solução dos seus problemas de forma mais satisfatória.
A Lei de Mediação prevê a autocomposição não só entre particulares, mas também entre entes do Poder Público. No art. 32 autoriza a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios a criarem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, com competência para: I) dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; II) avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; e III) promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
Considerando que o Poder Público é o maior litigante brasileiro, já que mais da metade de todos os processos que tramitam no Poder Judiciário envolve o Estado, repensar a forma pela qual o próprio Estado soluciona seus conflitos é medida urgente.
Ainda nos deparamos com uma resistência à adoção dos métodos alternativos por parte das entidades públicas. Além da cultura da litigiosidade, acrescenta-se o clássico e tradicional princípio do Direito Administrativo da indisponibilidade do interesse público. Muitos procuradores invocam tal princípio como impedimento para conciliar ou mediar questões que envolvam entes públicos, mas nos parece que o conceito de indisponibilidade implica na impossibilidade de se renunciar ou transferir a terceiro o direito, não implicando, todavia, na proibição de buscar soluções consensuais para garantir o seu exercício.
Mas felizmente vemos relevantes movimentos dentro de diversas procuradorias estaduais e municipais para o desenvolvimento do instituto e a nova Lei de Licitações deu uma grande contribuição neste sentido.
A lei não só incentivou o uso dos métodos alternativos, como deixou claro que umas das maiores controvérsias que acabam desaguando no Poder Judiciário, quais sejam, as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, ao inadimplemento de obrigações contratuais e ao cálculo de indenizações, podem ser resolvidas de forma consensual.
Tal dispositivo, inclusive, está em total sintonia com o enunciado 19 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal e com o art. 32, § 5º da Lei de Mediação.1
Sem dúvida, a nova Lei de Licitações está antenada com as práticas mais modernas e eficazes de solução de controvérsias. Esperamos que, com ela, a Administração Pública invista seriamente nos métodos alternativos, construindo com os particulares soluções rápidas e inteligentes para os conflitos que surjam de suas relações contratuais. Todos sairão ganhando!
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1 Como destacamos em recente obra: “Os conflitos que dependam de autorização do Poder Legislativo para serem solucionados não poderão ser resolvidos nas câmaras. Por outro lado, a lei é expressa ao afirmar que conflitos que envolvam discussão quanto ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares podem ser tratados no âmbito das câmaras. Enquanto não forem criadas as câmaras de mediação, diz a lei que os conflitos poderão ser dirimidos nos termos do procedimento de mediação previsto no art. 14 e seguintes.
NETTO, Antonio Evangelista de Souza; LONGO, Samantha Mendes. A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos. Porto Alegre. Paixão Editores, 2020