Migalhas de Peso

Entre liturgias e legalidades, deve prevalecer a ciência e a Constituição Federal

Passados mais de um ano desde que o vírus foi detectado no primeiro brasileiro, e após a descoberta da vacina, mas ainda em produção que não atende à demanda/necessidade do povo brasileiro, ainda é preciso prevenir o contágio por meio de distanciamento social.

7/4/2021

Semana Santa do ano de 2021, pela segunda vez em um ano, a Praça de São Pedro no Vaticano presencia ao Papa Francisco celebrar o ato religioso cristão da páscoa sem que os fiéis estejam presentes. Como se sabe do acompanhamento da pandemia do covid-19, a Itália e o Vaticano foram os primeiros epicentros da infecção pelo vírus na Europa. Com isso, sendo o Vaticano a sede da Igreja Católica Apostólica Romana, as celebrações religiosas foram suspensas desde o primeiro momento para que se pudesse conter as aglomerações e assim a proliferação do vírus.

No Brasil, desde o início do ano de 2020, a comunidade científica passou a aderir e incentivar o recolhimento social como a única forma de eliminar, ou pelo menos diminuir/conter, o avançar sem controle pela infecção do COVID-19. Eu mesmo à época, por meio de artigo/texto publicado aqui no Migalhas intitulado de A prevenção ao contágio do covid-19 como meio neoconstitucional de prover o direito à saúde1 externei o meu entendimento de que, o distanciamento social, deveria ser medida adotada pelo Estado como forma neoconstitucional de respeito à efetividade dos direitos e garantias fundamentais ao cidadão, visto que àquele momento não tínhamos a vacina como um meio eficaz de prevenir a contaminação pelo covid-19.

Pois bem. Passados mais de um ano desde que o vírus foi detectado no primeiro brasileiro, e após a descoberta da vacina, mas ainda em produção que não atende à demanda/necessidade do povo brasileiro, ainda é preciso prevenir o contágio por meio de distanciamento social.

Nessa Semana Santa do ano de 2021, um grupo de religiosos, denominado de Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), apresentou perante a Suprema Corte um pedido para que fossem declarados inconstitucionais os decretos estaduais e municipais que determinaram a suspensão, entre outras coisas, de atividades religiosas, mas sendo essa o objeto da ação (uma ADPF, conforme veremos adiante).

Desde o momento de sua indicação ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - STF, o Ministro NUNES MARQUES foi tido como pessoa contrária ao entendimento e validade dos referidos decretos. Porém, antes mesmo da análise do conteúdo da decisão do ministro, o que se tem de deixar consignado é o fato de que o plenário do SUPREMO já se pronunciou sobre a questão dos Decretos Estaduais e Municipais, onde ficou definido a autonomia dos entes federados para determinarem medidas necessários que se evitar ao máximo o contágio pelo vírus, inclusive, se achar necessário, determinando o recolhimento social e quais as atividades essenciais. Pois bem, nesse momento em que comento a decisão do Ministro NUNES MARQUES, a mídia vem dando uma atenção especial a uma pronunciamento do prefeito de Belo Horizonte-MG, o ALEXANDRE KALIL.

Aliás, no embate surgido nas redes sociais entre o Ministro NUNES MARQUES e o prefeito de Belo Horizonte-MG, o ALEXANDRE KALIL, esse disse categoricamente que: “Em Belo Horizonte, acompanhamos o Plenário do Supremo Tribunal Federal. O que vale é o decreto do Prefeito. Estão proibidos os cultos e missas presenciais.”2

Ao Jornal Estadão, o Ministro MARCO AURÉLIO DE MELLO questionou a decisão do colega de corte, argumentando, ironicamente, que o Ministro NUNES MARQUES era expertise no assunto, ao tempo em que colocou em dúvida a legitimidade da Associação para figurar o polo ativo de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. Vejamos a opinião do Decano da Corte: “O novato, pelo visto, tem expertise no tema. Pobre Supremo, pobre Judiciário. E atendeu a Associação de juristas evangélicos. Parte legítima para a ADPF? Aonde vamos parar? Tempos estranhos!", disse Marco Aurélio ao Estadão.3 (in verbis).

O Ministro MARCO AURÉLIO DE MELLO foi Relator da ação protocolada pela Partido Democrático Trabalhista – PDT, que alegava que a Medida Provisória – MP 926/20 editada pelo Presidente da República, era inconstitucional.

Dentre todos os votos dos Ministros que participaram da sessão virtual que julgou o caso acima descrito, chama a atenção o voto do Ministro GILMAR MENDES, que trouxe a observação de que em grandes núcleos urbanos as medidas sanitárias seriam melhores avaliadas pelos Poderes Executivos estaduais e municipais, citando inclusive a região onde o prefeito ALEXANDRE KALIL exerce o seu mandato, dizendo que “Nós temos no eixo SP, RJ e Minas 100 milhões de pessoas. A metade dos habitantes do Brasil vive nesse eixo. Portanto, sobre os governadores desses estados, recai uma imensa responsabilidade. (...) Tudo isso faz crescer a responsabilidade dos estados e municípios. Por isso, que esta Corte tem afirmado que, a despeito da competência da União, subsistem as competências dos estados e municípios para lidar com o tema

Como se ver, devido a complexidade de cada núcleo urbano, que pode estar em condições sanitárias diferentes de outras, não é seguro uma determinação por parte do Poder Judiciário para que seja executada uma determinação judicial sem conhecimento da realidade do local. Aliás, se observarmos os últimos noticiários nacionais e locais, todos dão conta de que a situação de Belo Horizonte-MG nesse início de abril de 2021, quanto à pandemia do COVID-19, é preocupante, ensejando um maior esforço por parte da gestão municipal para conter o quadro sanitário e evitar maiores danos sociais e de saúde pública:

Mulher com covid-19 morre à espera de UTI em Belo Horizonte. Paciente de 50 anos ficou três dias internada na UPA Oeste, no bairro Jardim América, esperando um leito, mas não resistiu4. (03 de abril de 2021) 

Por falta de espaço em necrotério, corpos de vítimas da Covid ficam expostos em UPA de BH5. (01 de abril de 2021)

Veja o impacto da covid-19 em Belo Horizonte bairro a bairro. Apenas 6 dos 487 bairros da capital mineira não registraram nenhum caso da doença (03 de abril de 2021)

Como se percebe, a negativa do Prefeito da capital mineira em liberar as celebrações religiosas, caso assim proceda (eu imagino que ele cumprirá, conforme já noticia alguns meios de comunicação6), é baseada no quadro trágico vivenciado nos últimos dias pelos mineiros, ou seja, é muito mais para evitar o risco do surgimento de novos casos que venham a causar transtornos no sistema hospitalar e para salvar vidas, do que simplesmente como uma forma de desobediência a uma decisão de um Ministro do STF.

O quadro abaixo, extraído do site7 próprio Ministério da Saúde, confirma o alto grau de mortalidade pela covid-19 vivenciado pelo país, especialmente pelo Estadode MinasGerais, que tem por capital o Município de Belo Horizonte,que é o segundo em número do óbitos:

(Imagem: Divulgação)

Mais do que insensato, data maxima venia, a decisão de S. Excelência o Ministro NUNES MARQUES demonstra total disparidade com a realidade vivenciada no país quanto ao covid-19, especialmente em relação à Minas Gerais a ao prefeito de Belo Horizonte-MG, o ALEXANDRE KALIL. Se de uma análise técnica científica já lhe falta razão como juiz para decidir nos termos como decidiu, imagine se discutirmos o lado jurídico da decisão, que além de contrariar o entendimento do plenário, ou seja, em verdadeiro desrespeito ao princípio da colegialidade, ainda é um equívoco legal, pois a ação foi interposta por parte completamente ilegítima para apresentar uma ADPF.

Como disse o ex-ministro AYRES BRITO quando perguntado sobre a Carta Magna de 1988, “A Constituição Federal, por ser materialmente expandida como nenhuma outra brasileira, tem resposta para tudo que seja importante e diga respeito à vida coletiva, à polis8. Pois é na Carta Política de 1988 que vamos buscar a previsão de quem são as partes legitimadas para apresentar a ADPF, isso c/c o inciso I, do art. 2º da lei 9.882/99:

Art. 2º Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I - os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade; (lei 9.882/99)

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

  1. o Presidente da República;
  2. a Mesa do Senado Federal;
  3. Mesa da Câmara dos Deputados;
  4. Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
  5. o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República;
  6. o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (Constituição Federal)
  7. Como se observa da previsão legal, a Anajure que apresentou a ação perante o STF não tem legitimidade ativa. Aliás, a própria Advocacia Geral da União, que atua também n feito, reconheceu essa ilegitimidade.

Recentemente, segundo relatam os meios de imprensa, o Presidente da República assinou petição endereçada ao STF que tentava reformar a decisão do Plenário que reconheceu a autonomia e legitimidade dos Estados e dos Municípios da União para emitir Decretos sanitários em complementação à política pública do Governo Federal. O relator da ação, o Ministro MARCO AURÉLIO DE MELLO, por prevenção, julgou a ação (ADIn 6.764), onde emitiu alguns posicionamentos sobre todas as questões de fatos legitimidade do Presidente da República:

“O artigo 103, inciso I, da Constituição Federal é pedagógico ao prever a legitimidade do Presidente da República para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, sendo impróprio confundi-la com a capacidade postulatória.”

“O Chefe do Executivo personifica a União, atribuindo-se ao Advogado-Geral a representação judicial, a prática de atos em Juízo. Considerado o erro grosseiro, não cabe o saneamento processual."

Desta forma, por não ter capacidade postulatória, condição própria da Advocacia Geral da União, a petição da ADIn 6.764 apresentada pelo Presidente da República, foi indeferida.

Eis que, se nem o Presidente da República, que figura no rol da Constituição como um dos legitimados, pode peticionar ADIn de forma direta sem a presentação da AGU, o que se falar da Anajure?

Espero que, sobre a Decisão do Ministro NUNES MARQUES, o Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL possa julgar em caráter de urgência o tema, por todos os indicativos científicos sanitários que o caso envolve, bem como pela clara ilegitimidade da Associação dos Jurista Evangélicos (Anajure) em figurar no polo ativo da demanda.

Muito mais do que desrespeito às liturgias,desta feita o que se tem é uma verdadeira ilegalidade/inconstitucionalidade na decisão de S. Excelência o Ministro NUNES MARQUES.

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1 Fonte: clique aquiacessado em 4.4.21

2 Fonte: clique aquiacessado em 4.4.21

3 Fonte: clique aqui acessado em 4.4.21

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Eduardo Silva
Advogado. Membro do escritório João Américo R. de Freitas. Atuante em Direito Público.

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