A tutela jurídica do formato de programa de televisão
Marcelo Goyanes*
Ainda que definição legal falte ao termo “formato de programa”, cabe aos operadores do direito buscar, na legislação que acoberta a propriedade intelectual, forma de proteção a tais tipos de criação imaterial. O presente texto é calcado justamente no conceito de que o fomento do acervo cultural da humanidade depende do incentivo a atividades intelectuais.
À luz da norma constitucional consubstanciada no inciso XXVII, do artigo 5o, e em consonância com a Convenção de Berna, marco histórico na proteção dos direitos autorais, a Lei no 9.610/98 (LDA) encerra seu objeto de proteção no artigo 7o, ao enunciar que são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro (...).
Certas categorias de obras ficam excluídas, porém, da proteção autoral. O artigo 8o da LDA lista-as, como são exemplos as idéias, procedimentos normativos, métodos, esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios, e as informações de uso comum.
Um formato de programa seria o estilo, plano ou estrutura que serve como roteiro para a concepção de um show de TV. Mas afinal, um formato de programa de TV pode receber proteção legal de modo a impedir que terceiros o copiem? Talvez. Um formato estaria situado numa zona cinzenta entre um mero conceito e, de outro lado, o roteiro de uma obra audiovisual. A questão que surge neste ponto é saber quando a criação de um formato progrediu a ponto de fazer jus à proteção pelo direito autoral.
É certo que quanto mais criativo e original um formato de programa de TV for, maiores as chances de ser premiado com proteção autoral. A idéia original precisa ser amplamente elaborada e expressa para tanto. Assim, se um autor de formato o desenvolver detalhadamente em todos os aspectos e o expressar de modo amplamente delineado a ponto de constituir uma imagem única e original do que será o programa em sua forma final, o formato receberá proteção legal.
Nada obstante, a obra audiovisual resultante da aplicação do roteiro do formato somada às contribuições individuais das pessoas nele envolvidas, é do mesmo modo passível de proteção autoral. Diante disto, é tarefa das mais árduas determinar e avaliar a impressão geral de um formato de programa definido em roteiro, sem observar as nuances da obra audiovisual final. A impressão geral de cada programa após as contribuições individuais de seus participantes pode ser suficientemente original, o que será determinante para análise da proteção autoral recaída e da possibilidade de coexistência de programas semelhantes.
Em sendo a questão da proteção de um formato de programa de TV das mais complexas e controversas, três outros institutos jurídicos podem ser usados como fintes de proteção complementar: os acordos de confidencialidade; a concorrência desleal; e o enriquecimento sem causa.
Por diversas razões, formatos de programas são vulneráveis ao uso desautorizado. Normalmente, os criadores de formatos não estão na posição de produzir e exibir por eles próprios as obras que desenvolvem; precisam oferecê-los para terceiros e, para tanto, desvendá-los. Quando as informações essenciais sobre o formato são desvendadas em circunstâncias plenamente confidenciais, o que pode ser formalizado através de acordo de confidencialidade, a pessoa receptora de tal informação estará sob a obrigação contratual de não transmiti-las a terceiros.
O uso não autorizado de informações confidenciais pode, ainda, caracterizar ato de concorrência desleal, de acordo com o artigo 10bis da Convenção de Paris e 195 da Lei da Propriedade Industrial (LPI).
E mais, o novo Código Civil normatiza a repressão ao enriquecimento sem causa. A criação de um determinado formato de programa requer investimento; o seu uso desautorizado pode gerar enriquecimento sem causa. Se por um lado o direito autoral não protege o investimento em si, por outro, o direito civil indiretamente o perfaz.
Note-se que a controvérsia acerca da proteção a formatos de programas é debatida em diversos países há muito tempo. Cite-se como exemplo o badalado caso Green v. Broadcasting Corporation of New Zealand (RPC 700, 1989), decidido pela justiça inglesa, que negou tutela ao formato, mas deixou consignada a possibilidade de institutos jurídicos paralelos, como é o caso da concorrência desleal, auxiliarem a proteção desses tipos de criação.
Por fim, vale dizer que a indústria televisiva usualmente negocia direitos de uso de formatos através de contratos de licença. Isso acontece principalmente porque o uso desautorizado pode levar a longas e custosas batalhas judiciais e porque o acordo de licença de uso permite ao licenciado acesso ao know–how do criador.
Diversos embates judiciais agitaram as opiniões jurídicas sobre o tema. A TV Globo e a Endemol, empresa holandesa titular dos direitos sobre o formato do reality show “Big Brother”, distribuíram ação à 4a Vara Cível de Osasco, São Paulo, contra o SBT argüindo violação de direitos pela transmissão de programa semelhante ao “Big Brother”, chamado “Casa dos Artistas”.
Uma das principais questões deste caso consiste na relação negocial entre SBT e Endemol relacionada à possível licença de uso do programa “Big Brother” ao SBT, anteriormente ao lançamento do show “Casa dos Artistas”, quando o SBT teve a oportunidade de conhecer com detalhes, sob um protocolo de confidencialidade, as informações técnicas necessárias para a elaboração do show. Frustradas as negociações, a Endemol licenciou seus direitos sobre o reality show “Big Brother” à TV Globo e o SBT lançou sorrateiramente a “Casa dos Artistas”.
A sentença foi proferida em 16.06.2003, condenando o SBT a ressarcir as autoras por perdas e danos e a se abster da transmissão do “Casa dos Artistas”. Entendeu o juiz que o formato de um programa de TV como o “Big Brother” compreende não apenas a idéia geral de um show, mas também uma séria de informações técnicas e artísticas, materializada em roteiros, que garantem a proteção autoral.
Importante notar que o Tribunal de Justiça de São Paulo, que já teve a oportunidade de se manifestar de forma contrária à proteção ao formato do “Big Brother” no mesmo caso, apreciará oportunamente a apelação interposta pelo SBT.
Outro caso interessante foi julgado pela 7a Vara Cível de São Paulo, em 18.12.2002, e envolve no pólo ativo a MTV Brasil e no passivo o apresentador Marcos Mion e a TV Bandeirantes. A autora alega que os réus violaram seus direitos sobre os programas “Pérola Videoclíptica” e “Micon”, por transmitir os “Shit Show” e “Pagando pra ver”. Os dois primeiros shows, de titularidade da autora, eram apresentados por Marcos Mion quando este então fazia parte do elenco da rede. Ao mudar de emissora, Mion desenvolveu programas com formatos muito semelhantes e passou a apresentá-los sem autorização da MTV.
O magistrado reconheceu a proteção autoral a formatos, o plágio dos programas em questão e condenou os réus por perdas e danos. Há recuso interposto contra a sentença pendente de julgamento.
Igualmente relevante foi a ação movida por Marizete Kuhn contra a TV Globo, distribuída à 28a Vara Cível do Rio de Janeiro, a respeito de suposta violação do roteiro do programa “O povo é o juiz”, em razão da transmissão do show “Você Decide”.
Entendeu o magistrado que os roteiros dos programas eram diferentes e que a autora da ação tentava invocar direitos sobre um esboço de programa de TV, sem desenvolvimento ou detalhamento que pudessem lhe conferir materialidade. Decidiu a corte pela improcedência dos pedidos iniciais, fundamentando suas razões no princípio de que idéias não são protegidas pelo direito autoral, ao passo que o programa da ré estava completo e acabado, com uma estrutura definida e um formato que merecia proteção legal. Em grau recursal, o Tribunal manteve a sentença.
A TV Globo, aliada à Tokio Broadcasting System (TBS), mais uma vez se envolveu em uma contenda judicial contra o SBT na ação movida em razão da elaboração, pelo SBT, de plágio do programa humorístico “Olimpíadas do Faustão”.
Em primeiro e em segundo grau, as autoras tiveram seus pedidos de abstenção de uso e reparação de danos julgados procedentes. O Tribunal, ao manter a sentença em decisão por maioria, entendeu que é necessário reconhecer direitos autorais a formatos de programa de TV, que são criações intelectuais em sentido amplo, sobretudo para evitar a pirataria. O Tribunal afirmou que tal programa decorre da expressão de idéia original, que envolve a criação de cenários, educação de pessoal, desenvolvimento de roteiro etc., e que negar proteção a essa obra seria consentir com a concorrência desleal. O voto vencido pautou-se no entendimento de que formatos de programas de TV não são criações do espírito passíveis de proteção pela LDA.
Enfim, esse julgados dão uma idéia nítida do quão controversa é a matéria em debate. Somente a análise das minúcias do caso concreto responderá as questões que surgirem sobre plágio de programas de TV. É certo, contudo, que negar de plano proteção a essas criações intelectuais é retroceder e desincentivar a cultura em geral.
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* Advogado do escritório Veirano Advogados
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