Migalhas de Peso

A racionalidade da decisão legislativa em política criminal

O presente trabalho pretende chamar a atenção para a necessidade de reconhecimento da política criminal como política pública, bem como demonstrar a necessidade da adoção de critérios de racionalidade na decisão legislativa em matéria criminal.

6/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Entende-se por “crise da lei” o evento no qual se passa a questionar o protagonismo desta no ordenamento jurídico. É fato que, desde a instauração do Estado de Direito liberal, a lei era tida como a expressão da vontade geral e democrática, espelhada por seu caráter singular, originário, supremo e incondicional.  A lei era o instrumento encarregado da racionalização social por meio do traslado das leis da natureza à ordem social, tendo seu ápice no processo codificador.

Atribui-se às sucessivas reestruturações do Estado de Direito moderno uma das principais causas da chamada “crise da lei”.

Primeiramente, o apogeu da lei foi substituído por um Estado de Direito positivista, no qual, ao mesmo tempo em que a lei alcança o ápice de sua importância institucional, evidenciada por ser um produto do anseio contingente, submetida à vontade dos detentores da soberania, é privada de sua estreita vinculação com a razão, decorrente de uma arbitrariedade implícita, que parte da sua criação até chegar à aplicação do Direito, redundando em um progressivo descuido na ampliação ou atualização do processo codificador.

Tal acontecimento é corroborado, por conseguinte, pela consolidação do Estado social de Direito, no qual se consagra um ativismo normativo, ilustrado pela abundância de regulamentos e normas de categoria inferior, tidos como instrumentos mais eficientes na nova sociedade intervencionista. De forma quase concomitante, ocorre a aprovação de Constituições repletas de conteúdos sociais relacionados à proteção dos direitos fundamentais e princípios orientadores da atuação política, restringindo o âmbito da lei ao intervalo entre a atividade regulamentar e o devido respeito aos princípios constitucionais. Logo, com a instauração do Estado de Direito constitucional, a lei perde seu status protagonista, devendo, necessariamente, acomodar-se a prescrições normativas constitucionais.

O processo de reestruturação do Estado de Direito moderno que enseja a crise da lei se conclui com a consolidação do que a doutrina denomina de “sociedade do risco”. É que, com a evolução das atividades sociotecnológicas, surgiu a necessidade de um intervencionismo administrativo superior ao do Estado Social, que culminou com o aparecimento de uma legislação imprecisa a ponto de permitir a discricionariedade administrativa; ao mesmo tempo, o protagonismo judicial é ressaltado, pois, ante a ausência de conhecimentos inequívocos a respeito das consequências das atividades tecnológicas, são os tribunais que têm a última palavra a respeito de sua procedência. Assim, a legislação perde racionalidade ou se submete ao condicionamento do ativismo judicial.

A esses fatores deve ser acrescentado mais um, que merece reflexão. Desde o aparecimento do positivismo jurídico, os juristas parecem ter assumido o papel estático de busca por uma pretensa neutralidade política, limitando suas contribuições à aplicação do Direito, em detrimento da racionalidade na criação da lei. Tal fato faz transparecer que a criação do Direito é “coisa de políticos”, dispensando contribuições intelectuais que ultrapassem a seara tecno-jurídica. Tal circunstância parece ter promovido um real distanciamento entre Direito e Política.

Política Criminal como Política Pública: policy e politic

Partindo do modelo de ciência penal global, defendido desde o final do século XIX, por Franz Von Liszt, no qual as ciências criminais constituem um conjunto único, formado por Criminologia, Política Criminal e Dogmática Jurídico-Penal, a Política Criminal ressai como a ciência responsável pela valoração dos fatos sociais, sob um juízo de valoração moral religiosa ou social, enquanto a Criminologia se ocuparia dos fatos sociais reprováveis e a Dogmática da normatização destes, sob a forma de um crime.

Partindo desses pressupostos, a Política Criminal, para Lizst, seria o conjunto sistemático de princípios garantidos pela investigação científica das causas do delito e da eficácia da pena, segundo os quais o Estado dirige a luta contra o delito, por meio da pena e suas formas de execução.

O conceito de política criminal apresentado por Lizst evoluiu com o passar dos tempos, com contribuições de alguns autores, como Alessandro Baratta, Eugênio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, entre outros, até se chegar ao ponto de ultrapassar a concepção de que a Política Criminal seria um pressuposto de políticas sociais ou apenas “conselheira da sanção penal”, atingindo a Política Criminal contemporânea, compreendida como o campo dos movimentos-modelos de controle penal (abolicionistas, minimalistas e eficientistas), entendidos como respostas teórico-práticas à crise do sistema penal. Ou seja, a Política Criminal seria composta de princípios e movimentos que definem o controle penal, impulsionado de forma autêntica pelo Estado, por meio de movimentos de expansão, contração ou manutenção do sistema penal.

Para se chegar à conclusão de que a política criminal é política pública, é necessário fazer um sucinto desenho das relações entre os domínios do Direito e das Políticas Públicas.

Política de Estado consiste em atividades voltadas a organizá-lo para que possua condições mínimas de execução de políticas de promoção dos direitos humanos, cujo horizonte temporal é medido em décadas. Política de Governo consiste na execução de ações pontuais de proteção e promoção dos direitos humanos, geralmente temporárias, de acordo com sua posição e realização dentro de um programa maior. Assim, as normas jurídicas podem balizar a efetivação das políticas públicas, servindo como norte para as metas definidas pelo Estado.

De acordo com a policy analisis, própria dos estudos da ciência política norte-americana (anos 1960), a politic tem foco nas questões clássicas do poder e suas formas institucionais, referindo-se à atividade política em sentido amplo, e a policy se ocupa da análise dos novos problemas governamentais, considerando as diversas variáveis que conformavam os processos de poder ou a influência sobre ele, tendo por cerne os programas (de governo) que materializam princípios da politic.

Não se pode afirmar que a Política Criminal discutida pelo Poder Legislativo, sobre a relevância ou não do tratamento jurídico de determinado comportamento como crime, de acordo com os movimentos político-criminais, seria politics, pura e simples, uma vez que existem estudos de análise da movimentação legislativa penal (desde a publicação do Código Penal), indicando que, em muitos casos de alteração legislativa, é possível falar-se em policy, ou seja, a discussão de programas governamentais em normas penais ou processuais penais. Assim, a Política Criminal no Brasil, entendida como política pública, ora pode se referir à atividade política em sentido amplo, ora pode demandar a implementação de programas de governo a respeito de determinada disfunção social.

A necessária preocupação com a decisão legislativa penal

É latente o fato de que as exigências da sociedade do risco demandam que a lei penal direcione a atenção para novos bens de tutela coletiva, incitando a produção de uma legislação mais vaga e farta de tipos de perigo, permitindo-se a maior adoção da técnica da lei penal em branco.

Assim, é possível vislumbrar o seguinte paradoxo: ao mesmo tempo em que falta uma teoria consistente a respeito da decisão legislativa, podendo-se falar, conforme afirmado, em uma “crise da lei”, na seara criminal a lei continua sendo um importante instrumento de transformação ou manipulação social, fenômeno refletido pelo intenso uso da legislação simbólica, produção legislativa inoportuna, quase sempre realizada “no calor do momento”, desvinculada de informações empíricas e assegurada por grupos de pressão não especializados (frequentemente a mídia ou vítimas da prática de um crime).

Atribui-se à separação entre Dogmática e Política Criminal, o protagonismo da jurisdição sobre a legislação. É possível visualizar o isolamento dos penalistas na aplicação do Direito, que conta com uma teoria da argumentação centrada na teoria jurídica do delito, profunda e refinada a ponto de influenciar o próprio modo de responsabilização penal, como é possível verificar no apenamento dos crimes continuados, de comissão por omissão e no tratamento do erro de proibição, a título de exemplo. Pode-se afirmar, assim, a existência de um descuido generalizado da doutrina no tocante à Política Criminal, a ponto de os juristas especializados limitarem-se a contribuições ou diretivas político-criminais no seio da própria teoria jurídica do delito, matéria de reflexão jurídico-penal por excelência.

No entanto, deve-se, de forma especialmente urgente, reorientar-se a atenção à decisão legislativa penal, tendo em vista: a) o protagonismo que o Código Penal assumiu na progressiva judicialização de quaisquer conflitos ou dilemas sociais, uma vez que a carência de alternativas ensejou a utilização do códex como o código moral da sociedade e com fins meramente simbólicos; b) que apesar da implicação intensa da cidadania de forma positiva no reforço da sociedade democrática, ocasionada pelo debate sobre a configuração da maior parte das leis penais, em geral pelos meios de comunicação, existe uma progressiva desconfiança da opinião pública e da sociedade em relação aos funcionários da justiça; e c) o fato de que o aprofundamento em mais de cem anos de rigorosos critérios da responsabilidade penal nos tribunais chegou ao ponto de os novos e refinados progressos conceituais não terem utilidade na aplicação judicial, permitindo que a criação das leis ficassem nas mãos da improvisação e oportunismo, social e político.

No caso do Brasil, é possível afirmar, a partir de breve análise de estudos que reuniram várias pesquisas a respeito da legislação pós-Constituição Federal de 1988, que há um fenômeno contemporâneo de infração legislativa que se desenvolveu no direito penal com singular amplitude, bem como o fato de as políticas criminais, públicas ou de segurança mais bem sucedidas no Brasil serem majoritariamente punitivas ou encarceradoras.

Politização da Política Criminal

É possível observar uma politização das políticas criminais nacionais. Tal afirmação pode ser evidenciada, primeiramente, pelo fato de que a política criminal não reflete mais o contraste ideológico do pensamento político, uma vez que os agentes políticos se depararam com o fato de que decisões que transmitam “pulso firme” no trato do crime e do criminoso podem proporcionar uma acumulação de votos nas eleições, terminando por dissolver as diferenças entre esquerda e direita na pauta do controle do delito.

Depois, porque as considerações estritamente partidárias prevalecem sobre as legítimas exigências sociais ou à realidade social a ser enfrentada. São os agentes políticos e seus interesses imediatos que determinam em maior medida a agenda político-criminal. Tal argumento é potencializado pelo fato de que um alto percentual da informação transmitida pelos meios de comunicação decorre de fontes oficiais ou institucionais. A isso, alie-se a circunstância de que as demandas populares por severidade punitiva são alimentadas por um sentimento difuso de inquietação pelo delito e seu enfoque, incitado pela presença frequente de notícias delitivas nos meios de comunicação, quase sempre de forma desconectada dos baixos níveis de medo pessoal do delito e das moderadas atitudes punitivas da população perante as condutas concretas.

Por fim, é possível pensar na influência cada vez maior das práticas político-criminais estrangeiras ou obrigações internacionais como influenciadoras de decisões nacionais sobre prevenção ou redução da criminalidade. Tal fenômeno é, em geral, considerado positivo, na medida em que justifica os estudos de política criminal comparada.

Defende-se, então, que sendo a política criminal uma política pública, é necessário criar um modelo analítico que possibilite uma comparação das políticas criminais nacionais. Primeiramente, deve-se partir do pressuposto de que a política criminal se insere dentro do conjunto de políticas públicas. Depois, deve-se ter a compreensão de que a finalidade de toda política criminal é prevenir a delinquência dentro de parâmetros socialmente aceitáveis. Por fim, a colocação em prática de qualquer política criminal demanda que se escolham, elaborem e implementem objetivos específicos que sejam coerentes com essa finalidade.

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Janaina Arimatéa
Assessora de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Pós-graduação lato sensu, Ordem Jurídica e Ministério Público (FESMPDFT). Discente do Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília.

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