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Consolidando o conflito formal na jurisprudência brasileira

A influência da jurisprudência regulatória (CVM) no julgamento sobre conflitos de interesse pelo STJ vem consolidar a opção pelo conflito formal como regra do artigo 115 da LSA.

5/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)
Em 23 de fevereiro de 2021, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, em face do REsp 1.692.803/SP, pela proibição formal de acionistas administradores votarem em deliberações sociais acerca da aprovação de suas próprias contas1.

Em síntese, o recurso especial tratava sobre a possibilidade de o acionista administrador votar em matéria atinente a aprovação de contas da sociedade. A fim de argumentar pela possibilidade do voto, a empresa recorrente alega que o quadro social da sociedade é composto por apenas dois sócios, o administrador e outro acionista que foi diretor financeiro da empresa durante parte do exercício social apurado, o que levaria incidência do art. 134, §6°, da LSA, e por consequência, a inaplicabilidade da vedação prevista no art. 115, §1°, também da LSA.   

Apesar dos argumentos apresentados, Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça interpretou pela não incidência do art. 134, §6°, da LSA, tendo em vista que o texto legal permite aprovação de contas pelos administradores apenas na hipótese de esses serem os únicos acionistas da sociedade, não fazendo ressalva alguma quanto acionistas que foram membros da diretoria somente em parte do exercício social apurado.

No mais, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva dispôs que a matéria em discussão é “caso típico de conflito formal (ou impedimento de voto), sendo vedado ao acionista-administrador proferir voto acerca da regularidade de suas contas”.2 Entendeu-se, portanto, que o art. 115, §1°, da LSA, constitui uma presunção in abstrato de conflito de interesses do acionista administrador na aprovação de suas próprias contas, o que gera uma proibição de voto ex ante.

Neste contexto, é importante notar que a construção doutrinária aponta para duas correntes de interpretação da regra de conflito prevista no art. 115, §1°: a do conflito de interesses formal e a do conflito de interesses material, também denominadas na doutrina brasileira de “proibição de voto” (conflito formal) e “conflito de interesses” (conflito material ou substancial).

A controvérsia reside na interpretação da segunda parte do parágrafo primeiro do art. 115 da LSA, em que se busca identificar se se trata de proibição de voto, aferida ex ante ou ex post, ou seja, antes do exercício do voto ou após seu exercício, que culminaria na anulação da assembleia em que acionista conflitante votara em detrimento do interesse social.

A doutrina majoritária defende a aplicação do conflito de interesses “material” ou “substancial” na interpretação do §1º do art. 115 da LSA. Para essa corrente doutrinária apenas se caracteriza o conflito de interesse com a comprovação de benefício singular do acionista em detrimento da companhia ou demais acionistas ou a contraposição de interesses entre o acionista e a companhia, o que só pode ser auferido após o exercício do direito de voto.

Sendo assim, pode-se dizer que a interpretação do conflito de interesses como conflito material entende como necessária a análise caso a caso para averiguação da existência de interesse contraposto ao da companhia, em que ambos não podem ser exercidos concomitantemente sem prejuízo de um ao outro.

A corrente doutrinária do conflito formal, por sua vez, defende a interpretação literal da lei, segundo a qual, o § 1º do art. 115 da LSA é claro ao estabelecer a proibição de voto em situações em que o acionista seja titular de duplo interesse: seu interesse como acionista e seu interesse extrassocial.

Segundo essa corrente, o legislador optou pela prevenção, ao estabelecer hipóteses em que a duplicidade de interesses do acionista já o impede de votar. Portanto, depreende-se com clareza que essa vertente da doutrina defende a identificação ex ante de duplicidade de interesses de um acionista, que, se verificada, o impede de votar em tal deliberação, não havendo necessidade de que o interesse seja oposto, bastando-lhe ser duplo.

Não obstante as divergências doutrinárias, desde o início dos anos 2000, a evolução jurisprudencial da CVM acerca do conflito de interesses tem se mostrado importante parâmetro de intepretação da norma.

A CVM não possui total uniformidade em suas decisões, vezes pendendo para a análise formal e outras para a análise material. Um exemplo de adoção da análise material é o Processo Administrativo Sancionador RJ2002/11533 (“Caso Previ”), o qual tratou do direito de voto de PREVI e SISTEL, acionistas diretos e indiretos da Tele Norte Participações S.A. (“TNL”) e de sua controladora Telemar Participações S.A. (“Telemar”) em aprovação de acordo de prestação de serviços gerenciais a ser celebrado entre a Telemar e concessionárias.

Em tal processo prevaleceu o entendimento pela ausência de benefício particular e de conflito de interesses, considerando uma interpretação material para este último, ou seja, na ausência de constatação fática e ex post de prejuízo aos interesses sociais, entendeu-se pela não caracterização do conflito de interesses.  

No mesmo sentido, o colegiado da CVM deliberou, no Processo Administrativo RJ2013/109134, pela possibilidade do voto dos acionistas controladores da Oi na assembleia de avaliação do valor dos ativos da Portugal Telecom para subscrição de aumento de capital e a emissão e integralização de debêntures conversíveis em ações, caso fosse liquidado o aumento de capital previsto, pois consideraram a inexistência do benefício particular dos controladores, o que remete novamente a uma análise material do art. 115, §1°, da LSA.

De forma mais ampla, entretanto, a jurisprudência da CVM tende à adoção do conceito de conflito de interesses sob a ótica formalista.

No Processo Administrativo Sancionador RJ2001/49775 (“Caso TIM”), por exemplo, o qual envolveu a deliberação acerca dos royalties a serem pagos pela CTMR Celular S.A. (“CTMR”) à sua controladora indireta, a Telecom Italia Mobile, que detinha a Tele Celular Sul Participações S.A., controladora da CTM, prevaleceu na autarquia o entendimento de que o conflito de interesses mencionado no artigo 115, §1º, da LSA, deve ser interpretado como a existência de interesses contrapostos pelo acionista, o qual este se torna impedido de votar, independentemente da existência ou não de prejuízo aos interesses sociais, optando-se claramente por uma proibição ao exercício do direito de voto que deve ser auferida objetivamente e ex ante.

Tal análise formalista foi aplicada de forma similar também nos Processos Administrativos RJ2009/58116 (“Caso Duratex”) e RJ2009/131797 (“Caso Tractebel”). Ainda em conformidade a essa linha de interpretação, o Parecer de Orientação CVM 34/20068 optou pelo impedimento ex ante do voto do acionista controlador nos casos de operações de incorporação e incorporação de ações, em que sejam distribuídos diferentes valores para as ações detidas por controladores e minoritários e para ações de diferentes espécies ou classes, justamente por existir essa duplicidade de interesses do acionista controlador.

Mais recentemente, o colegiado da CVM reforçou tal posicionamento formalista em face Processo Administrativo Sancionador RJ2014/100609. No referido processo, condenou-se Eike Batista, então presidente do Conselho de Administração da Óleo e Gás Participações S.A. (“OGPar”), por votar na aprovação de contas da OGPar por meio das sociedades Centennial Asset Mining Fund LLC (“Centennial Mining”) e Centennial Asset Brazilian Equity Fund LLC (“Centennial Equity”), as quais eram totalmente controladas por Eike.

Apesar Centennial Mining e Centennial Equity constituírem personalidades jurídicas distintas de Eike, o colegiado entendeu que tais empresas, por serem unipessoais e totalmente controladas pelo empresário, tinham suas vontades e votos diretamente influenciados por esse. Em decorrência disso, interpretou-se que as sociedades estariam impedidas de votar, pois o art. 115, §1°, da LSA, visa justamente a proibição do administrador em deliberar pela aprovação de suas próprias contas, independentemente de figurar na condição de sócio ou represente do acionista.

A decisão do PAS RJ2014/10060, portanto, além de reiterar a análise formalista do art. 115, §1°, da LSA, ampliou a proibição de voto em aprovação de contas também às sociedades totalmente controladas pelo administrador, o que se tornou no mercado um marco teórico de interpretação do dispositivo legal.

Percebe-se, dessa maneira, que a decisão proferida no REsp 1.692.803/SP atende a mais recente jurisprudência regulatória no sentido de adoção do conflito de interesses sob uma ótica formal e estrita, podendo-se dizer inclusive, ao menos em relação a proibição de aprovação das próprias contas, que há uma certa consolidação jurisprudencial acerca da interpretação do art. 115, §1°, da LSA, vez que não se admitiu, no âmbito administrativo, o voto do administrador mediante sociedade por ele controlada, assim como não se admitiu no judiciário o voto do acionista administrador em razão do número de acionistas.



1. STJ; REsp 1.692.803/SP, Terceira Turma, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 23/2/21.

2. STJ; REsp 1.692.803/SP, Terceira Turma, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 23/2/21, p. 8.

3. CVM; PAS RJ2002/1153, rel. Dir. Norma Jonssen Parente, j. em 6/11/02

4. CVM; PA RJ2013/10913, rel. Dir. Luciana Dias, j. em 25/3/14.

5. CVM; PAS RJ2001/4977, rel. Dir. Norma Jonssen Parente, j. em 19/12/01.

6. CVM; PA RJ2009/5811, Dir. Pr. Maria Helena Dos Santos Fernandes De Santana, j. em 28/7/09.

7. CVM; PA RJ 2009/13179, rel. Dir. Alexsandro Broedel Lopes, j. em 9/9/10.

8. CVM; Parecer de Orientação CVM 34, Dir. Pr. Marcelo Fernandez Trindade, aprovado em 18/8/06.

9. CVM; PAS RJ2014/10060, rel. Dir. Pablo Renteria, j. em 10/11/15.

Lucas Bento
Sócio Consultivo e de Estratégia de Negócios do Thielmann Nogueira Advogados, com experiência em Governança Corporativa, Direito Societário e Fusões e Aquisições, Mercados Capitais, Sistemas Bancário e de Pagamentos. Pesquisador e Doutorando na Universidade de Hamburgo com financiamento Albrecht Mendelssohn Bartholdy Graduate School of Law e vinculado à cadeira de Law & Economics do Institut für Recht und Ökonomik. Treinador do Núcleo de Arbitragem e Mediação da USP-Ribeirão Preto

João Vitor Calabuig Chapina Ohara
Estagiário do Thielmann Nogueira Advogados, acadêmico da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e membro do Núcleo de Arbitragem e Mediação da USP-Ribeirão Preto

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