O crime de perseguição tomou espaço na legislação brasileira no fim da semana passada (1º de abril de 2021). Por meio da sanção presidencial, recebemos uma alteração do Código Penal através da lei 14.132/21.
Culminando à inclusão do art. 147-A, que prevê pena de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, para o agente que "Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade", a nova norma detém o valor, segundo os Pareceres do Congresso Nacional, de empregar esforço na proteção principalmente das mulheres, gênero mais ofendido com a prática.
Embora aparente inovadora, a lei 14.132/21 contorna discussão de tema relativamente antigo no país, mas não muito explorado.
Isso porque a conduta apresentada pela alteração legal é conhecida pela doutrina nacional e estrangeira como stalking, e a criminalização vem de um movimento que nasceu nos Estados Unidos e se estendeu para a Europa, numa verdadeira onda punitiva ligada aos fatores de expansão do Direito Penal na Pós Modernidade1, exibindo um resultado, segundo Alexandre Morais da Rosa, de "transformação de condutas cotidianas em crime"2.
Com a sanção da norma, o stalking, que é afamado na literatura especializada como uma perseguição insistente e obsessiva a alguém, capaz de resultar numa violência psicológica, acabou por ser simplificado no Brasil ao nomen juris "perseguição", o que exibe um dos primeiros problemas ao refletirmos sobre o novo tipo penal.
De olho na tramitação legislativa, vemos que a denominação legal "perseguição" foi adotada pelo Senado Federal, que preferiu por atender a sugestão da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) para substituir o termo "perseguição obsessiva" - previsto pelo PL 1.369/19, anteriormente aprovado pela Câmara dos Deputados -, cuidando que "[...] a utilização de termos próprios da psicologia, como a obsessão, na descrição do tipo pode levar a imprecisões terminológicas e limitar o alcance da norma aos casos em que for, de fato, verificada a existência da neurose no comportamento do agente"3.
Tal alteração dada pelo Senado Federal, por claro, ampliou o alcance da denominação legal, ao ponto que, somente se entende que a perseguição referida pelo legislador se trata de uma conduta repetitiva e reiterada, quando da leitura atenta do tipo. Essa escolha semântica, embora atenta, poderá resultar em inúmeros enganos no momento de identificação do delito.
Ademais, ainda em análise a tipificação, é também visível que a nova norma nega à exigência da lei penal de ser apresentada de forma certa, que deveria demandar do legislador, por meio do princípio da taxatividade, o "mandato de determinação"4, já que se trata de tipo penal.
Na alteração dada pela lei 14.132/21, termos como "por qualquer meio", "de qualquer forma", e ainda, as 4 (quatro) conjunções "ou", dão conta de nos mostrar a imprecisão da tipificação, algo que, claramente, "impede o conhecimento das proibições e rompe a constitucionalidade da lei penal"5, que deveria ser regida pela fórmula lex certa.
Ainda sobre o princípio da taxatividade e o novo crime de perseguição, muito bem apontou FURNIEL, que, em artigo recente sobre o tema, concluiu que as indeterminações daquele tipo, que insurgem em inúmeras dúvidas, "(...) poderiam - e deveriam - ter sido sanadas com a elaboração de uma lei penal mais clara e, por consequência, menos ampla e de aplicação facilitada, que não violasse o princípio da taxatividade, cuja defesa irrestrita é corolário lógico do próprio estado democrático de direito"6.
Por fim, importante dizer que a experiência com uma norma indeterminada no caso do stalking já veio a ser experimentada por países como Portugal, que em 2015, numa redação muito parecida àquela entregue pela lei 14.132/21, aditou - por meio da lei 83/2015 -, o art. 154º-A do Código Penal Português, tipificando a conduta de "perseguição", e imputando-a a "Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal".
Na dissertação intitulada "A Neocriminalização do Stalking", de Marisa Nunes Ferreira David, que analisou o instituto após a adição daquele tipo à legislação portuguesa, é possível enxergarmos que a norma não conseguiu assegurar às vítimas, deixando-as sem saber se as condutas persecutórias terão fim ou não7. Segundo a Autora daquele trabalho, a referida problemática é percebida "face à moldura penal abstrata" conferida naquele país.8
Embora diante dessas críticas, de retorno a nova lei brasileira, é importante dizer que a recente tipificação acaba por corrigir uma dificuldade anterior de enquadrar formalmente a conduta prevista no artigo, que ora caminhava entre o crime de ameaça - do art. 147, do Código Penal -, ora alcançava a contravenção penal de perturbação de tranquilidade (do art. 65, do decreto-lei 3.688/41)9, esta última, que acabou por ser revogada pela lei 14.132/21. Ainda, é necessário também dar o devido crédito à redução do quantum de pena previsto no novo tipo penal.
Em alteração ao PL 1.369/19, aprovado no final do ano de 2020 pela Câmara dos Deputados, que previa pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, o Senado Federal acatou a proposta apresentada pela liderança do Partido dos Trabalhadores (PT), que requereu, por meio de pedido assinado pelo Senador Paulo Rocha (PT/PA), a supressão da pena sugerida para o quantum de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
A redução, nesse sentido, por claro se atenta à proporcionalidade, ao passo que o quantum sugerido no PL ofertado pela Câmara dos Deputados - 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, e multa - equiparava a punição do crime de perseguição às penas previstas para inúmeros delitos mais graves.
Dessa forma, dentre ganhos e perdas, vê-se que a criminalização do stalking - hoje recepcionado como "perseguição" - sofreu com o que FLORES já anunciava em 2016, quando, analisando o marco da criminalização do stalking no Brasil, explicitou que "a técnica legislativa por demais simplista apresentada (...) parece ser o signo do descaso com que a questão vem sendo tratada em nosso país"10. Resta observarmos, assim, as próximas discussões jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema.
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1 FLORES, Carlos Pereira Thompson. Stalking e Tutela Penal: Soluções de Lege Lata e De Lege Ferenda no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, p. 109. 2016.
2 DA ROSA, Alexandre Morais. Stalking e a Criminalização do Cotidiano. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 60, p. 72-79, Outubro, 2012.
3 BRASIL. Senado Federal. PARECER Nº 25 , DE 2021 - PLEN/SF. Brasília: Senado Federal, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 3 de abril. de 2021.
4 Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral - 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 91.
5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. - 5.ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 24.
6 FURNIEL, Guilherme. O crime de perseguição e a violação à taxatividade legal. Migalhas, São Paulo. 02 de abril. de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 2 de abril. de 2021.
7 FERREIRA DAVID, Marisa Nunes. A Neocriminalização do Stalking. Dissertação (Mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses) – Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra. Coimbra - Portugal, p. 95. 2017. p. 75.
8 Ibid. p. 75
9 CALLEGARI, André. Primeiras linhas sobre o delito de stalking. Consultor Jurídico, São Paulo. 1º de abril. de 2021. Acesso em: 2 de abril. de 2021.
10 FLORES, Carlos Pereira Thompson. Stalking e Tutela Penal: Soluções de Lege Lata e De Lege Ferenda no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, p. 109. 2016. p. 10