Afinal, houve melhorias ou a repetição do engessamento do qual se acusa a lei 8.666/93? Esse assunto provoca as mais variadas respostas, pois licitação é pauta que suscita visões distintas, polarizadas até, desde os que são adeptos do maximalismo, passando para os mais flexibilizantes, até chegar, no outro extremo, aos “abolicionistas” da licitação, isto é: aqueles que acham que licitação só atravanca e encarece as compras públicas.
Enquanto os particulares têm ampla liberdade para contratação, a Administração, como regra, deve observar o procedimento licitatório, conforme exigência constitucional. Licitação é um procedimento administrativo pelo qual o ente seleciona proposta mais vantajosa para celebração de contrato. Ela procedimentaliza, mas simultaneamente procura ter um viés instrumental, pois visa garantir princípios como a isonomia, para abrir a todos os que queiram contratar com o Poder Público a oportunidade, tentando assegurar também a concorrência.
Ademais, na atualidade, sabendo-se do poder de compra governamental, de aproximadamente 740 bilhões de reais anuais, a licitação também é vista do prisma de política pública apta a promover objetivos de desenvolvimento nacional sustentável. Trata-se de mecanismo que também agrega uma faceta extracontratual. Nesta perspectiva, há a inclusão do objetivo de inovação, dentro da visão do fomento do Estado, ao modelar licitações, aos fornecedores de um mercado inovador (Estado Empreendedor), sendo, ainda, do prisma do desenvolvimento sustentável, incentivadas as compras ecoeficientes, as que promovam inclusão social, o pleno emprego, com simultâneo estímulo às microempresas e empresas de pequeno porte, dada continuidade de aplicação dos favorecimentos preexistentes.
Por que da criação de uma nova Lei de Licitações? A lei 8.666/93, antiga lei geral, começou a ficar defasada e seu uso passou, paulatinamente, a ser substituído, em muitas das hipóteses, por modalidades mais avançadas previstas em leis específicas.
Assim, dá-se destaque ao pregão, que, disciplinado pela lei 10.520/02, revolucionou as licitações, agregando inúmeras vantagens ao procedimento: celeridade pela inversão de fases, simplificação, redução de gastos e aumento da competitividade. Depois, com a intenção de trazer soluções técnicas inovadoras para o universo das obras públicas, diante dos jogos mundiais, houve o regime diferenciado de contratação (RDC).
A nova Lei de Licitações procura, portanto, compilar os três diplomas (lei 8.666/93, lei 10.520/02 e art. 1º a 47-A da lei 12.462/11), trazendo para dentro de um só diploma o que de mais avançado há tanto da lei do pregão como da lei que dispõe sobre o RDC, e também acoplou no seu bojo inúmeros atos normativos que disciplinam procedimentos auxiliares.
Ela conseguiu ser totalmente abrangente da disciplina das licitações? A resposta é negativa, dado que ainda são preservados diplomas específicos no tocante às licitações das estatais, bem como os seguintes diplomas: lei 8.987/95, de concessões e permissões de serviços públicos; lei 12.232/10, de serviços de publicidade prestados por agências de propaganda; e nas licitações de parcerias público-privadas, conforme regramento contido na lei 11.079/04, aplicando-se a estas três últimas hipóteses apenas subsidiariamente à nova lei.
O que houve, então, de novidade? Ela consolidou três diplomas normativos, extinguiu duas modalidades de licitação, quais sejam: a tomada de preços e o convite, e, ainda, incorporou na concorrência o modo de disputa aberto, aproximando esta modalidade, mais complexa, da disciplina ágil do pregão, incutindo maior competitividade. Como efetiva inovação nas modalidades dá-se destaque à adoção do diálogo competitivo, inspirado no diálogo concorrencial da Europa.
Ela trabalha com a ótica da inversão de fases como regra. Logo, o julgamento será anterior à habilitação, conforme inspiração no pregão e também no RDC, o que assegura celeridade, não obstante a previsão também da possibilidade da apelidada “desinversão”, desde que haja ato motivado com explicitação dos benefícios decorrentes.
A nova lei incorpora, ainda que em caráter facultativo, o sistema, passível de controvérsias, do orçamento sigiloso, inspirando-se no RDC, para tentar gerar contratações de valores mais vantajosos, sendo estabelecido que o sigilo não atingirá órgãos de controle interno e externo.
Um ponto que altera bastante o procedimento é que houve o empoderamento de um agente de contratação, acompanhado da respectiva equipe de apoio, em substituição da antiga comissão de licitação, órgão composto de três membros que tinham, como regra geral, responsabilidade solidária. Houve inspiração no pregoeiro (que continua sendo chamado de pregoeiro, no caso do pregão) e sua equipe de apoio. A comissão de licitação ainda será utilizada, contudo, em contratação de bens e serviços especiais.
A lei entra em vigor na data da publicação, sendo que os anteriores diplomas compilados serão revogados após dois anos da publicação da nova lei, sistemática que permitirá à autoridade optar pelo diploma a partir do qual irá licitar neste prazo (de dois anos) em que ainda estarão em vigor as anteriores leis (lei 8.666/93, lei 10.520/02 e lei 12.462/11), as quais serão, portanto, revogadas em 2023.
Como os valores de contratação direta foram significativamente ampliados para 50 mil reais em compras e serviços e 100 mil reais para obras e serviços de engenharia ou manutenção de veículos automotores (similar aos valores de contratação direta das empresas estatais), é muito provável que, ainda mais num cenário ainda pandêmico, da aprovação, haja utilização imediata da nova lei pelas diversas administrações. Advirta-se, contudo, que é estritamente proibida a mistura de conteúdo da nova lei com dispositivos dos diplomas anteriores.
Deve-se ressaltar também a previsão de alterações nas regras de contratação de seguro-garantia. Do ponto de vista positivo é algo a ser celebrado: a possibilidade de aumento do valor do seguro-garantia para até 30% e a previsão de cláusula de step in, em que há a retomada, isto é, a possibilidade de a seguradora assumir e concluir o objeto do contrato. O ponto positivo é, portanto, o potencial de termos muito menos obras inconclusas ou “elefantes brancos”, que são o símbolo da ineficiência e do desperdício de recursos públicos.
O ponto problemático, por sua vez, da introjeção desta possibilidade, é que a estrutura de mercado de seguro do Brasil, em comparação com os Estados Unidos, é muito menor, sendo provável que a capacidade e a aptidão das seguradoras irão contar na hora de estruturar uma modelagem complexa de obra pública nestes moldes, podendo também gerar encarecimento, tendo em vista a diferença fática de mercados. Assim, nem sempre a cópia de um sistema e seu transplante legislativo para outra realidade provoca os mesmos efeitos.
Outro ponto de aprimoramento é que os procedimentos auxiliares trazidos pela nova Lei de Licitações, que já existiam em atos normativos esparsos, podem ser o núcleo de transformação do regime das licitações, sendo de se elogiar principalmente a previsão expressa na lei do chamado credenciamento, inclusive para preços voláteis em mercados fluidos.
Assim, pode-se modelar, a depender da regulamentação da lei no tocante ao credenciamento de mercados fluidos, uma sistemática de compra em que se aproveita da cotação do dia, por exemplo, para passagens aéreas, sendo que há promoções que demandam o comparativo momentâneo do preço sazonal das empresas aéreas credenciadas, o que pode gerar economia e celeridade também em aquisições públicas, em vez de fazer com tanta antecedência em preços congelados e sem auferir dos benefícios decorrentes das dinâmicas tarifas promocionais no comparativo momentâneo.
Do ponto de vista da era digital, há espaço para contratações e catálogos eletrônicos, sendo preferencial a forma eletrônica da licitação. Houve também a determinação de criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) como sítio eletrônico oficial das licitações.
Houve, outrossim, a previsão de matriz de alocação de riscos na modelagem da contratação, sendo feita em compatibilidade de obrigações e encargos, natureza do risco, beneficiário de prestações e capacidade de cada setor de gerenciá-lo, renunciando, portanto, as partes aos pedidos de restabelecimento do equilíbrio relacionado com os riscos assumidos, exceto no que se refere a alterações unilaterais feitas pela Administração e ao aumento ou redução, por legislação superveniente, de tributos pagos pelo contratado (fato do príncipe).
Significa dizer que quem assumir o risco se exime, como regra geral, de exigir restabelecimentos de equilíbrios, o que pode tornar os contratos menos custosos no longo prazo e também mais previsíveis, mas, ao mesmo tempo, mais dependentes da modelagem feita e, portanto, muito mais vinculados ao regime do contrato que lhes origina. A matriz de riscos também traz parâmetros mais específicos a serem ponderados numa eventual arbitragem.
Por fim, outro ponto digno de efusivos elogios foi a inclusão da exigência do programa de integridade para contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, sendo considerada contratação de grande vulto aquela acima de 200 milhões de reais, hipótese em que se deve implantar o programa de integridade em seis meses contados da celebração do contrato. Também haverá a intensificação do compliance nas contratações públicas em função do fato de que o programa de integridade é disciplinado, ainda: (a) como critério de desempate; (b) como critério de mitigação das sanções contratuais; e (c) como requisito indispensável para a reabilitação de empresas enquadradas em apresentação de documentos falsos e no rol de condutas tipificadas no art. 5º da Lei Anticorrupção Empresarial.
Houve mudanças no planejamento nas licitações, regras pormenorizadas de gestão, inclusive no tocante ao controle. Não obstante a tendência maximalista da lei, ela abre a discricionariedade para o uso justificado de inúmeros dos seus mecanismos, sendo a maioria deles, à exceção da modalidade diálogo competitivo, preexistentes à colossal compilação dos seus mais de 190 artigos.
Finalmente, depois de um longo trâmite, uma nova Lei de Licitações!!! Seu melhor uso será realidade somente se os gestores e os órgãos de controle procurarem extrair dela seus potenciais. A meu ver, não há dúvidas de que ela apresenta vantagens em relação ao anterior diploma da lei 8.666/93, desde que a mudança de lei também seja acompanhada pela mudança de mindset daqueles que a aplicam, de nada adianta mudar a lei e trazer para o novo diploma, com novos princípios, diretrizes e instrumentos, a mesma mentalidade, pois seria como trazer para um carro com direção eletrônica e câmbio automático um condutor que se recusa a dirigir por ser ferrenhamente apegado ao ato mecânico de trocar de marcha...