Migalhas de Peso

Diversidade de gênero e raça: Essa pauta importa

A interseccionalidade mostra-se, assim, fundamental para o avanço das pautas inclusivas, especialmente quando falamos da inserção das mulheres negras no mercado de trabalho.

30/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

No início de 2020, pouco antes do início do isolamento social imposto pela pandemia disseminada pelo vírus Sars-Cov-2, teve lugar um Evento organizado pela Associação das Mulheres do Mercado de Seguros1, cuja temática era a seguinte: “Protagonismo e Diversidade – A mulher no mundo corporativo”. A convidada da noite foi a fundadora do Instituto Identidades do Brasil2, Luana Génot, mulher e negra.

Luana convidou o público – majoritariamente feminino – a refletir sobre a representatividade da mulher no mercado de trabalho e, sobretudo, a representatividade da mulher negra no mercado de trabalho. Uma reflexão difícil, à medida que se se olhasse ao redor, notar-se-ia que não havia nenhuma mulher negra na plateia. Ou seja, assumindo-se que a plateia era composta por mulheres atuantes no mercado de seguros, pode-se concluir que o número de mulheres negras nesse mercado – e certamente em outros tantos – é ínfimo. Outro motivo que tornava a reflexão muito difícil é o fato de que a reflexão dar-se-ia sob o ponto de vista de mulheres brancas, posto que, como observado, não havia mulheres negras na plateia.

Em dado momento Luana perguntou-nos quantas de nós têm chefes mulheres – nem metade da plateia levantou as mãos. Em seguida, perguntou-nos quantas dessas chefes são negras. Ninguém, absolutamente ninguém, levantou a mão. Ou seja: é preciso que se tenha consciência de que diversidade de gênero e racismo não são assuntos de gente chata mas, sim, um importante meio de inclusão e reparo da cultura e da história, sabidamente escrita, em sua maioria, por homens brancos.

Nesse passo, oportuno trazer à lume o termo/tema interseccionalidade, forjado por feministas negras3, estimuladas pela filosofia de Kimberlé Crenshaw4:

Conforme Kimberlé Crenshaw, a intesrseccionalidade é, simultaneamente, a maneira sensível de pensar a identidade e sua relação com o poder, não sendo exclusiva para mulheres negras, mesmo porque as mulheres não-negras devem pensar de modo articulado suas experiências identitárias, ademais, transexuais, travestis e queers estão incorporados a perspectiva da autora. Este volume contém contribuições oriundas da segunda edição da Escola Internacional do Pensamento Feminista Negro Decolonial ministrado pela Doutora Kimberlé Crenshaw, na University of Wisconsin law Scholl, para o Coletivo Angela Davis, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, no período de 5 a 11 de agosto de 2018.

Nessa esteira, Carla Akotirene5 não deixa dúvidas sobre o termo:

O pensamento interseccional nos leva reconhecer a possibilidade de sermos oprimidas e de corroborarmos com as violências. Nem toda mulher é branca, nem todo negro é homem, nem todas as mulheres são adultos heterossexuais, nem todo adulto heterossexual tem locomoção política, visto as geografias do colonialismo limitarem as capacidades humanas. Segundo o professor Cristiano Rodrigues, além disso, a interseccionalidade estimula o pensamento complexo, a criatividade e evita a produção de novos essencialismos.

A interseccionalidade mostra-se, assim, fundamental para o avanço das pautas inclusivas, especialmente quando falamos da inserção das mulheres negras no mercado de trabalho. E aqui fazemos um breve parênteses para lembrar que durante toda a história de luta feminista pelos direitos sociais e civis, encabeçada em sua maioria por mulheres brancas, há muito as mulheres negras já trabalhavam, tendo em vista a escravização de seus povos, sendo certo que muitas das reivindicações não abrangiam as suas necessidades.6

Vale ressaltar que as mulheres negras ocupam uma posição de maior vulnerabilidade na sociedade: são as maiores vítimas de feminicídio7, bem como são expostas a situações mais precárias no mercado de trabalho, tendo os menores salários entre homens brancos, mulheres brancas e homens negros.

Conforme levantamento realizado pelo Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa, no ano de 2020, tendo como base o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínuos) de 2016 a 20188, os homens brancos em média ganham 100% a mais do que as mulheres negras, podendo essa diferença chegar a até 160% em caso de formação superior em instituição de ensino pública.

Portanto, para que possamos pensar em um cenário mais equânime é primordial que entendamos os distintos pontos de partidas e as distintas necessidades existentes entre os indivíduos de uma sociedade, utilizando tais compreensões como ferramentas em busca da justiça social.

A necessidade do pensamento interseccionalizado evidencia-se no início desse artigo, no relato do evento liderado por Luana Génot, à medida que facilmente constatou-se a quase inexistência de diversidade de gênero e raça nos locais de trabalho daquelas mulheres ali reunidas.

Retomando, então, a reflexão por ela proposta, no que diz respeito à diversidade de gênero e raça e inclusão, no ambiente de trabalho; felizmente nosso Escritório está no caminho certo no que diz respeito à diversidade de gênero: são 641 profissionais, dos quais 68% são mulheres; dentre os sócios coordenadores, 72% são mulheres; 45% dos sócios administradores são mulheres. Entretanto, quanto à presença de mulheres negras precisamos melhorar, e muito: apenas 10% das nossas profissionais são negras, sendo 39 advogadas, 14 auxiliares, dentre administrativo e serviços gerais, 3 coordenadoras, 2 estagiárias e, por fim, uma jovem aprendiz.

Ainda em relação à advocacia, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), no ano de 20199 realizou um mapeamento em alguns escritórios de grande porte do país e constatou que menos de 1% dos advogados desses escritórios são negros, número alarmante considerando que mais de 50% da população brasileira é negra. Onde estão estes profissionais?

Nesse diapasão, Djamila Ribeiro10 traz os questionamentos que devem ser feitos em nossos ambientes de trabalho:

Se você tem ou trabalha numa empresa, algumas questões que você deve colocar são: Qual a proporção de pessoas negras e brancas em sua empresa? E como fica essa proporção no caso dos cargos mais altos? Como a questão racial é tratada durante a contratação de pessoal? Ou ela simplesmente não é tratada, porque esse processo deve ser “daltônico”? Há, na sua empresa, algum comitê de diversidade ou um projeto para melhorar esses números? Há espaço para humor hostil a grupos vulneráveis? Perguntas desse tipo podem servir de guia para uma reavaliação do racismo nos ambientes de trabalho. Como diz a pesquisadora Joice Berth a questão, para além de representatividade, é de proporcionalidade.

Por isso, a reflexão e o engajamento para a mudança de cultura são ainda imperiosos e necessários, à medida que, como evidenciado alhures, claro está que na maioria das empresas e/ou escritórios a diversidade não está presente.

No âmbito da política, também ainda vemos as mulheres em situação de desvantagem no que diz respeito à representatividade, especialmente quando falamos em ocupação de cargos de liderança.

A Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015, adotou a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e, dentre os objetivos estabelecidos para o ano que se aproxima é a igualdade de gênero11. Em recente artigo publicado na Folha de S. Paulo12, Katyna Argueta13 destaca relevantes informações que ratificam o quanto a mulher está distante ainda de desempenhar papeis relevantes na sociedade mundial:

Em fevereiro de 2019, no âmbito global, apenas 24,3% dos parlamentares nacionais eram mulheres, o que significa que a proporção de mulheres parlamentares aumenta muito lentamente. Em fevereiro de 2019, apenas três países tinham 50% ou mais de mulheres no Parlamento. Em junho do mesmo ano, apenas 11 mulheres eram chefes de Estado, e 12, chefes de governo.

Vale anotar, por oportuno, que o mundo, segundo a ONU, em maio/2019, possuía 193 países14, ou seja, pouco mais de 6% do mundo tem como líder uma mulher, valendo anotar que a população feminina e masculina não diverge dessa maneira: 50,5% masculina, 49,5% feminina15.

No Brasil, segundo os dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínuos) do ano 201916, a população brasileira era formada por 51,8% de mulheres e 48,2% de homens, todavia, de acordo com a Câmara Legislativa - Mapa Mulheres na Política 201917 -, apurou que as mulheres representam apenas 15% do Congresso Nacional, sendo que dos 513 deputados apenas 77 são mulheres e no Senado Federal, dos 81 senadores somente 12 são mulheres, o que comprova que não há em nosso país, na política, uma representação proporcional à população feminina.

Importante destacar, ademais, que as mulheres negras representam a menor fatia do Congresso Nacional, sendo apenas 13 mulheres negras na Câmara e somente uma mulher negra no Senado18, não havendo nenhuma mulher negra em posição de liderança nas duas Casas, dados que reforçam o abismo existente na sociedade, não obstante as mulheres negras representem 27,8% da população brasileira19.

Nessa esteira, o acesso das mulheres à política, transitando entre as Casas e os Poderes é fundamental para que haja maior participação na administração pública e esfera legislativa, restituindo o protagonismo na tomada de decisões, edições de leis e criação de políticas públicas voltadas às mulheres. Afinal de contas, representam a maior parcela demográfica do Brasil.

Com isso em mente é curial observar que não obstante na maioria dos países ocidentais seja a meritocracia o parâmetro para o alcance de êxito profissional, certo é que é essencial olhar para o fato de que não há igualdade de condições de disputa. Com efeito, desde muito tempo a mulher teve que lutar – e muito – para conquistar algum espaço no qual pudesse até mesmo praticar esportes e/ou votar:

O preconceito é fenômeno secular e, de certo modo, se confunde com a própria história da civilização, ao menos em boa parte do mundo.

Nos dias de hoje, chega a ser difícil acreditar que as mulheres já foram equiparadas a escravos e estrangeiros (na democracia ateniense); consideradas “amaldiçoadas” pela igreja católica (na idade média); e cruelmente perseguidas como bruxas (no tempo da inquisição).

E o que dizer da proibição das mulheres de participarem dos Jogos Olímpicos, podendo ser condenadas à morte, caso fossem flagradas assistindo às competições? Tempos estranhos.20

E o fenômeno é secular, já nos ensinava Beauvoir e Hegel, porquanto o ser humano é dualista, há necessidade de perceber-se e ao outro como simétricos ou assimétricos, opostos ou atrativos: “Tais fenômenos não se compreenderiam se a realidade humana fosse exclusivamente um mitsein21 baseado na solidariedade e na amizade. Esclarecem-se, ao contrário, se, segundo Hegel, descobrimos na própria consciência uma hostilidade fundamental em relação a qualquer outra consciência; o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto.”22.

A posição da mulher como “o outro” de Beauvoir é contraposta pelo feminismo negro23, como base dos estudos realizado por Grada Kilomba24, pois em relação às mulheres negras é possível enxergar a imagem do “o outro” do outro, haja vista que as mulheres negras representam o contrário tanto da masculinidade, como da branquitude, estando duplamente em uma posição de desvantagem.

Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. […] Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.

Os campos legal e jurídico também foram utilizados como ferramentas limitadoras de acesso às mulheres, partindo-se do princípio de que ao longo da história foram negados às mulheres o direito à educação, ao voto, à elegibilidade, o impedimento de aquisição e posse de propriedades, à realização de movimentações financeiras, sendo as mulheres tratadas como mercadorias entre os homens, passando da posse de seus país aos seus maridos.

No Código de Processo Civil vigente até o ano de 2014 (há cerca de apenas 7 anos, aproximadamente), havia previsão de casos em que a mulher casada sequer podia comparecer em juízo sem autorização do marido25. Não é difícil, ainda sem mais dados estatísticos, concluir que a mulher não está ainda em igualdade de condições na disputa.

Precisamos, todos, de todos os gêneros, dedicar-nos a disseminar e contaminar (oportuno usar tais verbos em sentido positivo, neste difícil momento) outras tantas pessoas, sobre a necessidade de cuidar para que a desigualdade de gênero – e o racismo – seja página virada. Assim, quando se fala em igualdade de gênero e raça, espera-se, tão somente, igualdade de condições, para que o ponto de partida seja exatamente o mesmo.

________

1 Disponível clicando aqui. Acesso em 9 mar. 2021.

2 Disponível clicando aqui. Acesso em 9 mar. 2021.

3 AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade?, Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018, p. 13.

4 Ob. cit., p. 112.

5 O que é interseccionalidade?, Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018, p. 40.

6 BELL, Hooks. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. bell hooks; tradução Ana Luiza Libânio, 4ª ed., Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2019, p.81.

7 Feminicídio – Brasil é o 5º país em mortes violentas de mulheres no mundo – “No Brasil, as maiores vítimas do feminicídio são negras e jovens, com idade entre 18 e 30 anos. De acordo com os últimos dados do Mapa da Violência, a taxa de assassinato de mulheres negras aumentou 54% em dez anos. O número de crimes contra mulheres brancas, em compensação, caiu 10% no mesmo período. Disponível clicando aqui. Acesso em 15 mar. 2021.

8 “Diferenciais Salariais por Raça e Gênero para Formados em Escolas Públicas ou Privadas” Disponível clicando aqui. Acesso 13 mar. 2021.

9 “Metade da população, negros são somente 1% dos advogados dos grandes escritórios”. Disponível clicando aqui. Acesso 13 mar. 2021

10 RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista, 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras: Editora Schwarcz S.A.,.2019, p. 53.

11 “Por um planeta 50-50 em 2030: um passo decisivo pela igualdade de gênero”. Disponível clicando aqui e aqui. Acesso em 9 mar. 2021.

12 Disponível clicando aqui. Acesso em 18 mar. 2020.

13 Representante-residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil.

14 Disponível clicando aqui. Acesso em 17 mar. 2020.

15 Disponível clicando aqui. Acesso em 5 fev. 2021.

16 “Quantidade de homens e mulheres”. Disponível clicando aqui Acesso em 13 mar. 2021.

17 “Baixa representatividade de brasileiras na política se reflete na Câmara”. Disponível clicando aqui Acesso em 13 mar. 2021.

18 “Bancada negra no Congresso é sub-representada em postos de comando”. Disponível clicando aqui. Acessos em 13 mar. 2021.

19 “Negras são 28% dos brasileiros, mas têm baixa participação política”. Disponível clicando aqui. Acesso em 13 mar. 2021.

20 ANDRIGHI, Nancy e MAZZOLA, Marcelo. Reflexões sobre a igualdade de gênero no processo civil. Conjur.com.br, 2019. Acesso em 5 fev. 2021.

21 Tradução nossa: “estar junto”.

22 BEAUVIOR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S. A., 2009, págs. 16-17

23 RIBEIRO, Djamila. “A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher”. Disponível clicando aqui Acesso em 14 mar. 2021

24 “A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher”. Disponível clicando aqui Acesso em 14 mar. 2021.

25 ANDRIGHI, Nancy e MAZZOLA, Marcelo. Reflexões sobre a igualdade de gênero no processo civil. Conjur.com.br, 2019. Acesso em 5 fev. 2021.

Janaina Andreazi
Sócia do Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados, possui mais de 18 anos de experiência em contencioso cível e em seguros, com expertise tanto no contencioso como no consultivo. Além de possuir artigos publicados é palestrante. Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduada em Processo de Conhecimento e pós-graduanda em Direito Constitucional pela PUC-SP.

Janaína de Castro Lopes Vicente
Sócia do Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados, possui cerca de 6 anos de experiência em contencioso cível e em seguros. É graduada pela Faculdade das Américas.

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