Radicada no princípio-valor da dignidade da pessoa humana, a Constituição Cidadã agasalha dentre os seus objetivos fundamentais a construção de sociedade livre e a redução das desigualdades regionais e sociais, ex vi artigo 3º, incisos I e III, da norma maior.
É justamente nesse sentido, aliás, que o Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, já confirmou a constitucionalidade do sistema de cotas implementado pelas universidades públicas brasileiras, ao importante argumento de que a adoção de mecanismos de compensação lastreados em políticas e ações afirmativas visa atender, a um só tempo, as metas estabelecidas no texto constitucional e, ainda, os diversos compromissos assumidos pela República Brasileira na órbita constitucional.
Nessa conjectura, sobreleva-se a aprovação da lei 12.711/12, ao estabelecer que cada processo seletivo voltado ao ingresso nos cursos de graduação, promovidos pelas instituições federais de ensino superior vinculadas ao MEC, deverá ser assegurada 50% das vagas aos para estudantes oriundos de escolas públicas. Exige a lei, pela literalidade do seu artigo 1º, caput, que os alunos tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Dúvida não há que o regramento em questão, para além de concretizar o posicionamento da Excelsa Corte, também implica fiel cumprimento ao comando constitucional que preceitua, como competência administrativa comum dos entes federados, a promoção e integral social dos setores desfavorecidos, à luz da redação do artigo 23, inciso X, da Constituição Federal.
Pese o cenário dantes exposto, vê-se, não raras vezes, abusos e ilegalidades sendo cometidas pelas próprias instituições de ensino superior em detrimento dos estudantes legitimamente aptos a concorrer pela reserva legal de cota social.
Especificamente e de modo injustificado, as universidades públicas, via de regra, não vêm admitindo o direito de ingresso, nas vagas destinadas a egressos de escola pública, aos candidatos que tenham concluído o ensino médio em exames supletivos aplicados pela rede estadual, ou que tenham obtido o certificado de conclusão do ensino médio por meio de exames aplicados (ENEM, ENCCEJA).
É de suma importância anotar que a legislação de regência assegura a equiparação do sistema de supletivo ao ensino médio regular para todos os fins. Senão vejamos:
Nos exatos termos do que veicula o Ministério da Educação (MEC), por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), ‘’ o Encceja tem como principal objetivo construir uma referência nacional de educação para jovens e adultos por meio da avaliação de competências, habilidades e saberes adquiridos no processo escolar ou nos processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais, entre outros.
Nesse sentido, vale destacar que a lei 9.394/96, após alterações legislativas promovidas pela lei 11.741/08, assegura a continuidade dos estudos aos estudantes aprovados em exames de suplência, senão vejamos: Art. 38, lei 9.394/96: Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular. § 1º Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão: I - no nível de conclusão do ensino fundamental, para os maiores de quinze anos; II - no nível de conclusão do ensino médio, para os maiores de dezoito anos.§ 2º Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos por meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames.
Em reforço, cumpre registrar que o exame supletivo possui aceitação irrestrita, nos moldes do que estabelece a Portaria Normativa 27/12, do Ministério da Educação e Cultura, consoante reza seu artigo 18, §8ª, adiante transcrito: Para a comprovação de conclusão do ensino médio, o estudante poderá apresentar certificado de conclusão com base no resultado do Enem, do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) ou dos exames de certificação de competência ou de avaliação de jovens e adultos realizados pelos sistemas estaduais de ensino.
Destarte, a aprovação em exame de certificação com base no resultado do ENEM, do ENCCEJA ou, ainda, de outros exames de certificação de competência/avaliação de jovens e adultos realizados pelos sistemas estaduais de ensino, somada à comprovação de que o estudante é, de fato, egresso de escola pública, afigura-se suficiente para viabilizar a habilitação do candidato a concorrer pelo sistema de cota.
Ocorre que os editais de processo seletivo para preenchimento das vagas nos cursos de graduação vêm exigindo, a título de documentação necessária para comprovar a condição de cotista, a apresentação de Histórico e Frequência Escolar, de modo a comprovar ter cursado todas as séries do ensino médio em escola pública.
Decerto que a legislação de regência (artigo 1º, lei 12.711/12) não exige que o ensino médio tenha sido cursado pelo estudante na modalidade regular, isso é, durante os 03 (três) anos. Conforme já informado, o texto legal estabelece a necessidade de que o candidato tenha cursado o ensino médio integralmente em escola pública.
Tais compreensões são absolutamente diferentes e, acaso sejam confundidas, implicará graves prejuízos à política educacional afirmativa, notadamente à população jovem e adulta (público de EJA) que não teve acesso ao ensino na idade apropriada e, por meio da escolarização tardia ofertada pelo Poder Público, estará apta a realizar o exame de suplência e alcançar a tão desejada certificação, requisito indispensável para acessar o ensino superior.
Destaca-se que no âmbito jurisprudencial, há posicionamento firme no sentido de que o exame supletivo aplicado pela rede estadual de ensino supre a exigência da Universidade para o ingresso pelo sistema de cotas. Com inteira correção, o TRF da 1ª Região, nos autos do Ag. Regimental em APC 10021-24.2011.4.01.3900/PA e sob a relatoria do em. Desembargador João Batista Moreira, entendeu que o candidato concludente do ensino médio por meio de exame supletivo aplicado pela rede estadual possui direito à preencher vaga de curso superior destinada aos cotistas, tendo sido consignado que a ausência de histórico escolar não desnatura a situação.
Já por meio da APC 0011220-43.2008.4.01.3300, a 6ª Turma do TRF da 1ª Região, concluiu que a certificação do ensino médio por meio de exame supletivo aplicado pela rede estadual ostenta o caráter de “escola pública” exigido na norma em questão.
De se consignar, portanto, que a distinção entre alunos egressos da rede pública do ensino regular e de escola pública do ensino supletivo revela-se absolutamente incompatível com o princípio constitucional da igualdade material e, de igual modo, com o propósito da política de ações afirmativas, razão pela qual não encontra amparo legal a recusa da matrícula dentro do sistema de cotas do estudante egresso de escola pública, sob o argumento de que a conclusão do ensino médio por meio de exame supletivo não atende à exigência legal estatuída no artigo 1º, da lei 12.711/12.