Não é de hoje que se questiona a legitimidade do Ministério Público em dar parecer nas causas criminais em que é parte. A questão perpassa, basicamente, pelos conceitos de “custos legis”, “dominus litis”, a função do Ministério Público, bem como pelos artigos 127 e 129 da Constituição Federal de 1988.
Por diversas vezes o tema foi levado aos Tribunais Superiores, seja para (i) pedir a impossibilidade do parecer, seja para (II) demandar o direito de contrapô-lo, visto que a defesa deve sempre falar por último, em atenção aos princípios do contraditório e ampla defesa (art. 5º, inc. LV da CF/88).
Em todas elas, as decisões podem ser resumidas ao seguinte pensamento, exposto no HC 163.972/MG:
“(...) decorre da lei e é de sabença geral que o Ministério Público, até mesmo por previsão constitucional (art. 127 da Constituição Federal), como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe defender o regime democrático, ora atua com dominus litis, propondo, privativamente, a ação penal pública, ora atua como fiscal e, neste mister, não faz oposição à defesa, ainda que, eventualmente, traga posição antagônica ao réu no processo.”1
O raciocínio, pensamos, vem sendo repetido como um mantra, quase que de maneira automática, em que pese os esforços das defesas nas mais diversas ações penais. Se pararmos para pensar, além de não fazer absolutamente nenhum sentido aceitarmos, em determinados casos, que o Ministério Público oferte parecer, este ato enseja, a um só tempo, o desequilíbrio da balança da Justiça e dos cofres públicos, visto que boa parte dos servidores do Parquet se ocupam de algo absolutamente desnecessário, repetitivo e dispendioso.
Assim, vejamos o que diz o artigo 127 da Constituição Federal:
“O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
É com fulcro neste artigo que se diz que o Parquet possa ou deva ofertar parecer em quase a totalidade dos processos, independentemente da área, em cada instância.
Diz-se, ainda, que, apesar da “unidade” e “indivisibilidade” do Ministério Público (art. 127, § 1º, CF/88), a sua função “custos legis” – descrita acima – não se relaciona com seu poder/dever “dominus litis”, previsto no art. 129, § 1º da Carta da República:
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;”
É dizer, a independência que possui cada membro do MP, garantia de sua atuação, afasta as diferentes funções que eles exercem, sendo que, quando atua como “dominus litis” (titular da ação penal pública), desempenha o papel de acusador, conquanto, outro membro, quando age como “custos legis”, exerceria o ofício como fiscal da lei.
A corrente que defende esta vertente, acrescenta, ainda, que quando na atribuição de fiscal da lei, não estariam vinculados à ideia do MP-acusação, podendo inclusive ofertar parecer pelas teses defensivas, visto que, afinal, fiscal da lei, buscando a proteção da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Fazendo uma analogia, trata-se, verdadeiramente, de argumento de retórica, muito utilizado por promotores do júri, quando dizem, aproveitando-se da repetição do corpo de jurados no mesmo mês: “quando eu acho que o réu é inocente, ou que não há provas, eu mesmo peço a absolvição, como já podem ter constatado em meus júris anteriores...”, ou algo semelhante.
Eloquência que pode funcionar com a plateia leiga, mas não com os operadores do Direito.
Primeiro pois, quando o MP age como “dominus litis”, existe um dever de análise prévia dos fatos, da causa, que permite ao Parquet denunciar apenas quando do seu convencimento da materialidade e indícios de autoria; ou seja, o MP, já nessa fase, atua como “fiscal da lei”, no sentido de averiguar a justa causa da ação, não tendo um papel de acusar obrigatório.
Aliás, o papel previsto no art. 129, inc. I da CF/88 (dominus litis) é decorrência lógica e intrínseca de sua função (fiscal da lei) constante no art. 127: ou seja, ele - e somente ele - é o titular da ação penal pública; exatamente por ter a incumbência de defender a ordem jurídica bem como os interesses sociais e individuais indisponíveis. Apenas por isso ele é, como se disse, o titular da ação penal pública.
Não por outra razão, que não a tutela de referidos interesses, pode o MP - acusação pedir a absolvição do acusado, impetrar habeas corpus em seu favor etc.2
Ora, uma vez que o Ministério Público esteja exercendo o seu papel de titular da ação pública, é certo que ele já realizou seu juízo de legalidade e oportunidade, em defesa da ordem jurídica, por meio da própria propositura da ação.
E, em que pese o argumento de que, em suas atuações como custos legis, o órgão ministerial se afastaria dos interesses de parte, trata-se de mera distinção fantasiosa. Tanto o é que, na imensa maioria dos casos, o suposto fiscal da lei apenas ratifica as razões acusatórias ou as reforça, afastando-se de um ideal de parecer, caracterizado pela imparcialidade, e aproximando-o das razões e opinião pessoal.
Conforme anota Geocarlos Augusto Cavalcante da Silva, “no âmbito do processo civil, o MP pode atuar como parte ou como fiscal da ordem jurídica”, mas sua atuação não é obrigatória e indiscriminada em todo e qualquer processo, demandando que haja “interesses da coletividade” em disputa.3
Nas ações penais públicas, a atuação como órgão acusador já se justifica nessas premissas (“defesa do interesse público indisponível”), de forma que não faz nenhum sentido uma segunda manifestação (parecer), como se fosse um ente superior, averiguando a correta atuação do primeiro (MP-acusador). Afinal, se o órgão é uno e indivisível, não cabe sequer esse controle, que não pelos meios internos da própria corporação, como orientações, por exemplo.
Isto é, em que realidade paralela é admissível que a acusação se manifeste e, ainda, emita um parecer a respeito do próprio recurso? Parecer este que, além de representar clara violação ao direito de defesa, tendo em vista a dupla oportunidade de manifestação da acusação (ou, ainda, tripla, considerando, também, a possibilidade de atuação, concomitante, de um Ministério Público Estadual na demand4), é realizado por último, contrariando direito constitucional à paridade de armas e à ampla defesa do recorrido de se manifestar derradeiramente no processo.
Frise-se: é inviável que falemos em imparcialidade na manifestação do órgão ministerial, ainda que somente na condição de custos legis. Nas palavras de Medeiros:
“O Procurador de Justiça ou Procurador Regional da República que atua perante o tribunal continua sendo membros do Ministério Público, mesma instituição a que pertencem os colegas que firmam as razões recursais. Essa posição, a de pertencer ao MP, instituição encarregada da persecução de delitos, acrescida do fato de que quem oferece razões ou contrarrazões ao recurso ser um colega, retira do Procurador qualquer possibilidade de ser imparcial.”5
Ademais, conforme mencionado anteriormente, a emissão de parecer pelo Ministério Público, além de escancarar a quebra da igualdade entre as partes, representa um verdadeiro dispêndio de tempo, pessoal e recursos públicos.
Em que pese haja quem defenda que a solução para esse desequilíbrio na relação processual deva ser sanado oportunizando nova vista à defesa, para que possa contrarrazoar a declaração do Parquet, é claro que esse artifício iria de encontro ao princípio da celeridade do processo, estampado no inciso LXXVIII do art 5º da Constituição Federal. Na verdade, a dispensa do parecer é a medida ideal, visto que desnecessário que se oportunize nova manifestação ao MP quando este já exerceu seu direito no papel de parte.
Portanto, ainda que a controvérsia tenha se pacificado no âmbito dos tribunais superiores, resta claro que a questão constitucional deve ser reanalisada, por contrariar prerrogativas basilares do processo.
Nesse contexto, o papel do advogado vai além de buscar resguardar garantias, mas passa, também, por se posicionar contra práticas que, ainda que ratificadas jurisprudencialmente, se afastam do ideal de justiça buscado pelo Direito. Aqui, predomina a máxima de Eduardo Couture, em sua célebre frase: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas, no dia que encontrares em conflito o direito e a justiça, lute pela justiça.”6
Ao fim e ao cabo, no polo imparcial da demanda, suficiente é a magistratura, dispensando-se, pelas razões expostas, figuras acessórias e laterais.
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1 HC 163.972/MG, rel. ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 6ª turma, julgado em 4/11/10, DJe 29/11/10.
2 “A obrigatoriedade de oferecer a denúncia não significa que, em sede de alegações orais (ou de memoriais), o Ministério Público esteja obrigado a pedir a condenação do acusado. Afinal, ao Parquet também incumbe a tutela de interesses individuais indisponíveis, como a liberdade de locomoção. Logo, como ao Estado não interessa uma sentença injusta, nem tampouco uma condenação de um inocente, provada sua inocência, ou caso as provas coligidas não autorizem um juízo de certeza acerca de sua culpabilidade, deve o Promotor de Justiça manifestar-se no sentido de sua absolvição.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 4a ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. P. 330)
3 DA SILVA, Geocarlos Augusto Cavalcante. Limites da atuação do Ministério Público nos recursos especiais repetitivos. In: Revista de Direito Privado, vol. 100. Jul. – Ago. 2019. P. 222.
4 AgRg no AREsp 194892/RJ, min. rel. Mauro Campbell Marques, DJe 26/10/12.
5 MEDEIROS, Flávio Meirelles. Inconstitucionalidade e ilegalidade da apresentação de parecer pelo MP nos recursos de apelação e em sentido estrito. Jusbrasil, 2016. Disponível clicando aqui.
6 COUTURE, Eduardo Juan. Os Mandamentos do Advogado, 3ª ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987, p.10 e s.