Em março de 2021, por ocasião do julgamento do REsp 1.839.078/SP, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça fixou o entendimento de que "é direito do sócio retirar-se imotivadamente de sociedade limitada regida de forma supletiva pelas normas da sociedade anônima".1 Longe de ser trivial, tal entendimento dá resposta prática a questão que já ocupava, há tempo, espaço em debates doutrinários.
Desde o advento do Código Civil de 2002, paira dúvida sobre a possibilidade de que o quotista de sociedade limitada constituída por prazo indeterminado exerça direito retirada imotivada por aplicação supletiva do art. 1.029 do CC, dispositivo que rege o funcionamento das sociedades simples. Isso porque, a rigor, o direito de retirada nas sociedades limitadas estaria adstrito a hipótese do art. 1.077 do CC, segundo o qual "quando houver modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra, terá o sócio que dissentiu o direito de retirar-se da sociedade, nos trinta dias subsequentes à reunião".
Sobre o tema, observa-se a existência de duas correntes doutrinárias divergentes. Tavares Borba, por exemplo, entende que "o disposto no art. 1.029 (direito de retirada – sociedade simples) não se aplica subsidiariamente à sociedade limitada, a qual, nessa matéria, encontra-se regida por norma própria (art. 1.077)".2 Sérgio Campinho, a seu turno, defende que "é assegurado ao sócio, pelo art. 1.029 do Código Civil (...) o direito de, além dos casos previstos na lei ou no contrato, poder retirar-se da sociedade, sempre que lhe aprouver".3
Em momento anterior ao julgamento do REsp 1.839.078/SP, o STJ já havia se alinhado à segunda corrente, firmando entendimento de que a retirada imotivada o âmbito das sociedades limitadas constituídas por prazo indeterminado era possível mediante aplicação subsidiária do art. 1.029 do Código Civil.4
A peculiaridade da situação posta no REsp 1.839.078/SP, no entanto, foi o fato de que o contrato social da limitada em questão previa a regência supletiva pelas normas da sociedade anônima, conforme possibilita o art. 1.053, parágrafo único, do Código Civil. Desse modo, em não havendo normativa sobre o tema voltada especificamente à sociedade limitada, deveria ser observado aquilo que seria aplicável às sociedades anônimas, nos termos da Lei 6.404/76 (LSA). Ocorre que na LSA também não há disposição sobre a retirada imotivada de sócio, remanescendo a dúvida se, mesmo nestes casos, seria admissível a retirada imotivada por aplicação do art. 1.029 do CC.
Antes mesmo da questão ser apreciada pelo STJ, Fabio Ulhoa Coelho havia elucidado sobre o tema ensinando que, no direito brasileiro, existem dois subtipos de sociedade limitada: aquelas sujeitas ao regime de regência supletiva das sociedades simples (subtipo I) e as sujeitas ao regime de regência supletiva das sociedades anônimas (subtipo II). Segundo o doutrinador, enquanto o primeiro subtipo é marcado por vínculo instável e admite a retirada imotivada nos termos do art. 1.029 do CC, as limitadas de subtipo II tem como característica a estabilidade e não admitiriam a retirada imotivada.5
O posicionamento de Ulhoa Coelho, a propósito, foi adotado na origem pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, ao julgar a Apelação Cível nº 0019809-31.2010.8.26.0032, entendeu que "o Código Civil é omisso no capítulo relativo às Sociedades Limitadas, sobre o direito de retirada imotivada, de modo que, nos termos do art. 1.053, caput e § único, a sociedade pode ser regida tanto pelas regras da Sociedade Simples, quanto pelas regras que disciplinam as sociedades anônimas (lei 6.404/76). O que determina a sujeição a um ou outro regime de regência supletiva é o contrato social que, in casu, elegeu a regência supletiva da Lei das S.A., razão pela qual é inaplicável o art. 1.029 do Código Civil".6
Contudo, em sentido diverso e de modo a reformar o acórdão originário, o STJ fixou a tese de que, a despeito da aplicação supletiva da LSA, a retirada imotivada ainda seria possível na sociedade limitada de prazo indeterminado, por dois principais fundamentos.
O primeiro deles seria o direito constitucional de não permanecer associado, a teor do art. 5º, inc. XX da Constituição Federal. O segundo fundamento seria o de que a aplicação suplementar da LSA apenas deve ocorrer naquilo que for compatível com o regramento das sociedades limitadas. Assim, como a LSA nada prevê sobre a retirada imotivada e a sociedade limitada a admite – conforme jurisprudência da própria Corte sobre o tema – remanesce o direito potestativo do sócio retirar-se da limitada de prazo indeterminado mediante notificação prévia aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias.
De modo geral, é possível dizer que o teor da decisão relativiza aquilo que foi expressamente pactuado no contrato social e cria precedente para que o direito de retirada no âmbito das limitadas seja exercido de maneira ampla e com maior celeridade.
Aliás, vale pontuar que em momento anterior o STJ já havia adotado entendimento parecido com relação às hipóteses de cabimento para ação de dissolução parcial no âmbito das sociedades anônimas fechadas. Isso porque, frente a ausência de norma que previsse a possibilidade de dissolução parcial de companhia fechada até o advento do Código de Processo Civil de 2015, coube à jurisprudência fixar suas hipóteses de cabimento.7 E, nesta ocasião, o STJ acolheu hipóteses para a dissolução parcial que flexibilizavam a saída dos sócios, tais como a quebra do affectio societatis, também fundada na garantia constitucional não permanecer associado.8
Dito isso, o REsp 1.839.078/SP reacende discussão que já havia sido posta por Ana Frazão neste mesmo portal: privilegiar os interesses de somente um dos vértices da relação societária – o sócio retirante – em detrimento da sociedade e dos sócios remanescentes pode ser prejudicial e até mesmo inviabilizar a continuidade da atividade empresarial.9 Afinal, o tipo societário e as normas jurídicas que irão reger a relação foram escolhidas pelos sócios no momento de constituição da pessoa jurídica. E, essa mudança das “regras do jogo” pela jurisprudência em momento posterior pode ser prejudicial para inúmeras sociedades, que agora terão de arcar com o risco de serem oneradas por pedidos de retirada imotivados.
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1- Conforme informativo de jurisprudência n. 688 do STJ, de 15 de março de 2021. Disponível aqui. Acesso em 16/03/2021.
2- BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 15. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 155.
3- CAMPINHO, Sergio. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 17. ed. Saraiva Educação, 2020. p. 195.
4- "o direito de retirada imotivada de sócio de sociedade limitada por tempo indeterminado constitui direito potestativo à luz dos princípios da autonomia da vontade e da liberdade de associação" (REsp 1403947/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 30/04/201
5- COELHO, Fabio Ulhoa. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 31. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Capítulo 13.6.
6- TJSP, AC 0019809-31.2010.8.26.0032, 8ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Alexandre Coelho. j. 28/10/2015. DJe 05/11/2015.
7- FERREIRA, Mariana Martins-Costa. Buy or sell e opções de compra e venda para a resolução de impasse societário. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 91.
8- "A jurisprudência do STJ reconheceu a possibilidade jurídica da dissolução parcial de sociedade anônima fechada, em que prepondere o liame subjetivo entre os sócios, ao fundamento de quebra da affectio societatis" (REsp 1.400.264/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/10/2017, DJe de 30/10/2017).
9- FRAZÃO, Ana. O STJ e a dissolução parcial de sociedades por ações fechadas. Migalhas de peso. Disponível aqui. Acesso em 16/03/2021.