Não há dúvida de que, ao adotar uma sistemática restritiva, nosso legislador pretendeu delimitar os benefícios decorrentes do instituto da recuperação judicial e da falência apenas aos agentes econômicos qualificados juridicamente como empresários. Trata-se de uma sistemática que atribui tratamento diferenciado ao devedor empresário e ao devedor não empresário diante de um mesmo contexto de crise econômico-financeira.
Não por outra razão se discutia, até pouco tempo atrás, os diversos entraves acerca do acesso pelo produtor rural ao instrumento recuperatório previsto na lei 11.101/05 ("LREF"). Isso porque aquele que exerce atividade rural pode, por ato de vontade, aderir ou não ao regime jurídico empresarial mediante seu registro na Junta Comercial, nos termos do art. 971 do Código Civil ("CC"). Isto é, eventual submissão ao regime jurídico empresarial por parte do produtor rural constitui mera faculdade, sendo certo que ao optar pela inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis estará sujeito ao procedimento falimentar e poderá se valer da recuperação judicial, submetendo-se, portanto, às normas de Direito Comercial.
Nesse sentido, vale recapitular que, para fins do preenchimento do prazo de dois anos assinalado no art. 48 da LREF, havia toda uma discussão se eventual exercício regular da atividade empresarial rural se iniciaria apenas com sua inscrição na Junta Comercial ou se prescindiria do referido registro, iniciando-se a partir do momento em que presentes os requisitos para a caracterização de uma atividade como empresária, consoante art. 966 do CC. Entretanto, não mais subsiste esta querela, pois nosso legislador andou bem ao prever, através da nupérrima alteração legal decursiva da lei 14.112/20, que eventual cálculo do período de exercício rural por pessoa física deverá ser feito através de algumas obrigações tributárias instrumentais (§2º ao §5º do art. 48 da LREF). É dizer que ao produtor rural se proveu um bálsamo para sua crise, permitindo maior previsibilidade ao "homem do campo" que pretende obter os benefícios da recuperação judicial, assim como dar segurança jurídica àqueles credores que fornecem crédito a todos os agentes econômicos que desempenham atividade rural.
Não obstante, não há este mesmo louvor quando se trata do tratamento concursal dispensado às sociedades cooperativas, as quais, em razão de previsão expressa na legislação cooperativista, estariam per se excluídas do âmbito passivo de aplicação da lei 11.101/05. Nesse contexto, um dos argumentos suscitados por aqueles que entendem pela inaplicabilidade dos dispositivos da Lei nº 11.101/05 em procedimento liquidatório de sociedade cooperativa, consiste no fato do art. 982, parágrafo único, do Código Civil ter conferido natureza simples às sociedades cooperativas. É questão controvertida na jurisprudência e na doutrina, mas deixar de aplicar as benesses da recuperação judicial por um formalismo exacerbado (e, quiçá, impreciso e ultrapassado) seria, ao meu ver, desconsiderar toda realidade econômica e social que existe por detrás da atividade desenvolvida pelas sociedades cooperativas.
Aliás, Haroldo Medeiros Duclerc Verçosa disserta com peculiar maestria a respeito da submissão da sociedade cooperativa ao regime recuperacional ou falimentar, no sentido de que "as cooperativas poderiam ser consideradas sociedades empresárias, cabendo perfeitamente na definição do art. 966 do NCC e, por conseguinte, no art. 1º da lei 11.101/05, observando-se que esta exceção do art. 2º somente alcança as cooperativas de crédito"1. Mais do que isto, pode-se dizer que argumentar pela submissão da sociedade cooperativa ao regime recuperacional ou falimentar seria prezar pela adequação e adaptabilidade do procedimento liquidatório frente às orientações internacionais de incentivo e tratamento não discriminatório às sociedades cooperativas.
Ainda, não se poderia deixar de mencionar os dilemas vivenciados pelas associações, as quais, por não serem consideradas sociedades empresárias, têm, recorrentemente, seus requerimentos de recuperação judicial indeferidos pelo juízo competente. Um dos casos mais emblemáticos vivenciado recentemente se trata do requerimento de recuperação judicial formulado pelo Figueirense Futebol Clube, uma associação civil sem fins lucrativos, que teve seu pedido indeferido pelo juízo singular, mas deferido pela corte recursal. Nesse mesmo contexto, cita-se os casos recuperatórios da Associação Educacional Luterana Do Brasil (AELBRA) e da Universidade Cândido Mendes (UCAM), nas quais se reconheceu haver atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou serviços, atuando na área da educação em nível superior, gerando empregos, bens culturais e arrecadação ao Estado, exercendo sua função social.
Ora, parece não haver razão para abduzir do agente econômico não-empresário os instrumentos recuperatórios previstos na LREF, uma vez que estes servem justamente como meio de superação da crise, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. E, na riquíssima biblioteca do emérito professor Carlos Galves, herdada e mantida pelo ilustre professor Dárcio Vieira Marques, constatei que esta controversa decorre quando da vetusta concordata preventiva. Isso porque, à época, Inglez de Souza, entusiasta da unificação das obrigações civis e comerciais, defendia um código comercial que deveria regular indistintamente a falência de qualquer devedor impontual, ou seja, sem distinção entre comerciante e não comerciante. É partindo da obra de Waldemar Martins Ferreira que se encontram as razões, as quais, por sua magnificência e sagacidade, merecem ser transcritas na íntegra:
"Nada póde tornar", são palavras daquelle saudo commecialista, "mais odiosa a injustiça da theoria ainda vigente do direito creditorio do que a flagrante desegualdade que ella mantem entre a situação do devedor civil e ado devedor negociante. [...] Numa situação identica, tem o devedor commerciante, victima de equaes fatalidades, o favor da concordata preventiva: póde convocar os seus credores e pedir-lhes uma dilação dos prazos para o pagamento de suas dividas, a moratoria, em summa, ou pedir-lhes, além da prorogação dos prazos, um tanto por cento de abatimento, ou somente este. Com isso, poderá voltar á sua actividade mercantil, e removida a difficuldade que se antolhava, vir a reconstituir a sua posição, e no mais das vezes, enriquecer-se. O devedor civil, não. Esse, despojado de seus bens pelas penhoras, enxovahado no seu brio e na sua honra, terá de assistir, impotente, á sua propria ruina. "Que razão de conveniencia", pergunta o autor do projecto do codigo commercial "que razão de convenicencia póde ter a sociedade neste sacrificio de um homem util, na dispersão de uma familia e na destruição de um estabelecimento? Que lucra o credor com a subsistencia da divida após á destruição da fazenda?"2
Transladando todo exposto ao cenário atual, não se pode deixar de mencionar que esta pandemia decorrente do coronavírus tem provocado danos formidáveis nos diversos agentes econômicos, não se restringido apenas aos devedores empresários. Apesar da nupérrima reforma legislativa na Lei de Recuperação de Empresas e Falência ter, em certa medida, provocado avanço no tratamento dispensado às sociedades empresárias em crise, não se oblitera que ainda existe um hiato quando se trata das sociedades não empresárias. No dizer de Inglez de Souza, qual razão de conveniência pode ter uma sociedade empresária em se submeter ao regime da recuperação judicial e uma sociedade não empresária se ver impedida para tanto? É, portanto, tempo de reflexão e de deixar os legados reles que amarram nossa legislação concursal ao passado.
------------------
1- VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In L. F. Valente de Paiva. Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas – Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC 118 de 9 de fevereiro de 2005, São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 109/110.
2- FERREIRA, Waldemar Martins. Curso de Direito Commercial: da Fallencia e da Concordata Preventiva. v. II. São Paulo: Salles Oliveira, Rocha & C., 1927, pp. 29/31.