Migalhas de Peso

A inteligência artificial e os escritórios de advocacia

A inteligência artificial (IA) é tema recorrente nos noticiários, nas publicações científicas e tudo o mais que reporta as revoluções pelas quais passam o saber humano. Mas até que ponto os profissionais do Direito dominam esse assunto?

24/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Nos dias atuais é comum a preocupação, senão o interesse, de grande parte da população acerca do tema “inteligência artificial” (IA). Ela encontra-se em grande parte nos dispositivos utilizados, tais como, aparelhos celulares, computadores, automóveis, aviões, assistentes virtuais, e, mais recentemente, atua em áreas mais delicadas, como por exemplo, a saúde ou definindo resultados de eleições para presidência de países, seguros, finanças, e quaisquer outras onde se faz necessário o tratamento de grandes volumes de dados e cruzamento de informações, inalcançáveis pela maioria dos seres humanos. No entanto, será que todos sabem exatamente de que se trata? Quais as implicações sobre o uso desses dispositivos equipados com a inteligência artificial? E na advocacia, quais serão os possíveis impactos? 

Ainda temos dificuldade para definir o que é “inteligência”. É certo que o que nos diferencia dos outros animais é a nossa capacidade cognitiva.

Desde os idos de 1956, estudam-se metodologias para vencer as limitações impostas pela anatomia humana e criou-se a ideia de que a inteligência poderia ser “emulada” pelos computadores.

Para a maioria dos estudiosos do assunto, é convergente a ideia de que a IA deve ser, predominantemente, executada por computadores. E ainda, tarefas realizadas por seres humanos devem ser emuladas pelas máquinas. Ademais, quanto a serem tarefas inteligentes stricto sensu, ainda há um longo caminho a se percorrer. Importante se faz distinguir entre um sistema inteligente, com capacidade real de aprender, raciocinar, superar desafios complexos, de sistemas meramente de solução de problemas específicos – recorte de diários oficiais (on-line), por exemplo – que servem apenas para superar certos tipos de desafios.

Portanto, inteligência porque emulada de atributos humanos e artificial porque desenvolvida por intermédio de dispositivos não-humanos.

É consenso, que os computadores fazem tudo mais rápido e em uma escala maior do que os seres humanos o fazem. Se a invenção da energia elétrica levou mais de 30 anos para consolidar mudanças radicais nas populações com acesso a ela, atualmente, as tecnologias estão sendo implementadas pela sociedade em um tempo muito menor1.

Dessa forma, não se trata de especular em qual profundidade se dará as mudanças no cotidiano das pessoas e sim, na velocidade que isso está acontecendo. De uma década para cá, o avanço do poder de computação e a geração e armazenamento massivo de dados, por praticamente todos os habitantes do planeta, proporcionou um boom na IA e em especial na parte dela sustentada pelas redes neurais2.

A quantidade e velocidade com a qual são gerados os dados e armazenados por empresas do ramo, é alucinante. Não sobra outro meio para analisar e gerar informações relevantes utilizando esses dados, que não a utilização da inteligência artificial. São várias as terminologias utilizadas para designar essa tecnologia.

A chamada inteligência artificial fraca (Weak AI) é aquela baseada em sistemas especializados em resolver certas situações para as quais foram devidamente treinadas, enquanto a inteligência artificial forte (Strong AI) ou geral (General AI) seria aquela de uso geral ou equiparada à inteligência humana em sua plenitude.

Percebe-se que independentemente de nomenclaturas – que variam de autor para autor – o fundamental é que todos concordam que ainda não se pode contar com a IA forte, ou aquela que poderia lidar com qualquer tipo de tarefa intelectual. Os sistemas disponibilizados como dotados de IA, são da modalidade IA fraca, ou de uso específico. Isso significa que eles só se aplicam àquela finalidade peculiar, não sendo de uso geral, portanto3. Ainda está longe do momento no qual o(a) advogado(a) vai dialogar com seu computador (ou robô) e este apresentará todas as respostas contextualizadas, desde elaborar a peça, peticionar, interpor recursos, levantar alvarás dentre outras atividades inerentes.

Malgrado a inteligência artificial geral ainda estar no seu estágio embrionário, muito já se pode vislumbrar do que pode ser feito com a IA limitada, ou aquela tida como de uso específico. Tarefas como classificação de textos, reconhecimento facial, tratamento de voz, predições, dentre outras, são comuns e estão disponíveis para uso de qualquer pessoa. Gravitando a popularização desse uso, alguns desafios devem ser enfrentados sob pena de gerar desvios e efeitos colaterais indesejáveis. A intelegibilidade constitui-se em um desses grandes desafios.

O fato é, no processo de treinamento do algoritmo corre-se o risco – mesmo que inconscientemente – de transportar para ele as idiossincrasias humanas, com toda a carga de valores, crenças etc., transformando o processo de tomada de decisão assistido pela máquina em atividades impregnadas de vieses camuflados pela tecnologia.

Quanto maior for a acurácia do sistema, mais sofisticado será o nível de análise aplicado no aprendizado de máquina (machine learning ou deep learning), aumentando a complexidade do modelo utilizado e dificultando, sobremaneira, o entendimento de como foi gerado o resultado apresentado pelo computador. Nesse sentido, o ideal seria que um especialista humano pudesse entender os motivos que norteiam, ou, o que há por trás de uma ou outra escolha feita por um modelo de inteligência artificial. Existe um forte componente de desconfiança nas decisões automatizadas.

Ocorre que, ainda não existe regulamentação a respeito de como se dará essas “revisões”, se por humanos (o que inviabilizaria o ponto forte da IA) ou se, por algoritmos treinados para isso (o que geraria mais desconfiança ainda).  O que ocorre é que estão criando leis para tentar regular o que é pouco conhecido até mesmo por especialistas no assunto, ou seja, como os algoritmos montam os modelos de decisão e incrementam esses modelos a partir do funcionamento do sistema.

As aplicações a partir daí desenvolvidas utilizam em larga escala a inteligência artificial como sustentáculo e se servem da mesma para alcançar seus objetivos, quais sejam, entregar um serviço baseado na análise de imensas quantidades de dados e capacidade de processamento dos computadores, estabelecendo padrões e gerando valor através das informações prestadas. No âmbito do Poder Judiciário, a IA também ganha contornos de aplicações práticas que visam beneficiar a todos os que dela se utilizam. O Supremo Tribunal Federal (STF), noticia “(...) está sendo desenvolvida, em parceria com a Universidade de Brasília, uma ferramenta de inteligência artificial destinada a identificar os recursos extraordinários vinculados a temas de repercussão geral, não apenas no STF, mas com potencial de atuação em todo o Poder Judiciário4. Essa IA recebeu o apelido de “Victor”, em homenagem a Victor Nunes Leal ministro do Supremo entre os anos de 1960 a 1969, responsável pela sistematização da jurisprudência em Súmulas5”.

Nunca é demais repisar que, no judiciário – pelo menos por enquanto – a IA deve representar um sistema de apoio às decisões que serão tomadas por humanos, e que todas as decisões judiciais devem ser devidamente fundamentadas. Desse modo, as regras previamente estabelecidas para a solução de problemas assentados na certeza, previsibilidade e segurança, que são características do Direito, passam por transição para um sistema automatizado, que como dito anteriormente, não é de fácil compreensão humana.

Existe ainda, uma outra vertente que afirma que as tecnologias disruptivas como a inteligência artificial, blockchain, big data, internet das coisas, redes sem fio avançadas (5G e além) e computadores quânticos, produzirão profundas mudanças na forma como trabalhamos no escritório de advocacia, mas, muito mais nas novas demandas que surgirão no mercado em função delas. A convergência dessas tecnologias promoverá alterações nas leis, nas necessidades dos clientes e nos modelos de negócios dos escritórios de advocacia.

No ponto de interseção provocado pelas tecnologias disruptivas, vão surgir as grandes oportunidades de atuação para os escritórios de advocacia que se prepararem para atender à essas novas demandas.

O grande desafio vai ser implementar modelos de negócios adaptados para antever as necessidades dos clientes e, ao mesmo tempo, responsivos o suficiente para se readequar caso algo não saia como previsto.

Implantar novas tecnologias no escritório para se diferenciar dos concorrentes é evidentemente importante. No entanto, só isso, pode não ser a estratégia mais adequada. Talvez o mais importante seja centrar os esforços para entender as novas “dores” dos clientes, que certamente surgirão a partir da transformação digital provocada pelas tecnologias disruptivas.

Nem sempre o cliente dispõe de recursos para a prospecção das diferentes combinações de necessidades legais futuras que as tecnologias disruptivas certamente vão impor com o passar do tempo. Essa é uma oportunidade de aproximação e fidelização do cliente. 

Considerações finais 

Desde os primórdios da civilização, os humanos têm uma certa tendência para extrapolar características, inerentemente humanas, para outros seres. Veja-se o caso dos entes mitológicos (gregos, romanos etc.), com superpoderes que expandiam as capacidades humanas, apresentando-se como figuras imortais e dotadas de sentimentos, antecipando-se à ficção científica dos super-heróis que tudo podem. A inteligência artificial, área integrante da Ciência da Computação, também não é exatamente uma ideia nova. Como parte de estudo sistematizado, foi criada a partir de 1956 e teve vários períodos de quase inatividade, motivados por falta de investimentos no setor. Aqui, o componente econômico tem papel de destaque. A inteligência artificial depende de grandes quantidades de dados e capacidade de processamento dos computadores, o que não existia nos primórdios dos estudos. Daí, a euforia inicial transformou-se em expectativas não atendidas minguando os investimentos e relegando a pesquisa apenas ao ambiente das universidades e pesquisadores independentes que financiavam seus próprios trabalhos. Com o advento das melhorias contínuas nas técnicas de armazenamento de dados e velocidade de processamento dos computadores, a inteligência artificial ganha novos contornos e passa a frequentar o noticiário como algo que pode revolucionar o nosso cotidiano. Apesar da dificuldade de se definir exatamente o que é a inteligência artificial, ninguém diverge quanto ao fato de ser a emulação de atributos do intelecto humano executados por máquinas.

O ganho na velocidade de processamento de forma exponencial e as técnicas de arranjo dos processadores dos computadores – na forma de redes neurais artificiais – aliados à disponibilidade de dados em abundância proporcionado pelo big data, viabilizaram o deep learning (aprendizado profundo), algoritmo de aprendizado de máquinas que eleva a inteligência artificial ao estado da arte atual. Os computadores podem aprender por conta própria com um mínimo de interferência humana. Por outro lado, esses mesmos algoritmos, devido à sua complexidade, dificultam a compreensão de como chegaram a certas conclusões, levantando questões éticas que devem ser resolvidas, como por exemplo, a possibilidade de o algoritmo estar impregnado de vieses com preconceitos humanos.

Os sistemas que atuam com extrema eficiência em solução de problemas específicos, também chamados de IA fraca, superam o desempenho humano e são a maioria dos algoritmos em uso atualmente. A inteligência artificial forte – ou de uso geral – aquela capaz de resolver problemas em áreas distintas sem intervenção humana, ainda está relegada ao futuro e, por mais que se tente fazer previsões de quando estará disponível para uso, o que se tem, são meras especulações. Fala-se em 20 anos, 40 anos e assim por diante. No entanto, não se deve olvidar que essa IA, quando disponível, se tornará independente do ser humano, podendo construir um arcabouço de conhecimento e replicação cada vez mais aprimorada de si mesma. Quando isso acontecer, não será só a profissão do advogado que estará em risco. Esse tipo de inteligência artificial (geral), poderá congregar todo o conhecimento da humanidade em questão de horas e construir uma nova base de saberes que certamente vai suplantar tudo que podemos fazer como humanos. Engenharia, Medicina, Filosofia, Física, Matemática, enfim, todo o conhecimento humano poderá ser remodelado e contextualizado de forma inédita, colocando em xeque-mate a todos os profissionais de todas as áreas do saber humano. Enquanto isso não acontece, a adoção de tecnologias para a transformação digital do escritório de advocacia é uma tática louvável, ao lado, é claro, de mecanismos de contato permanente com os clientes para entender quais são as suas necessidades presentes trazidas pelas tecnologias disruptivas e necessidades futuras, nem ainda percebidas por eles, mas já prospectadas pelo escritório. Focar nas “dores” dos clientes ocasionadas pela transformação digital pode ser mais importante que se preocupar com o tipo de tecnologia que será adotada para impressioná-los.

Aos profissionais operadores do Direito, na atualidade, estão disponíveis softwares equipados com IA fraca que os auxiliam em tarefas – geralmente repetitivas, que podem ser mapeadas e padronizadas – de pesquisa em base de dados para extração de conteúdo relevante, compreensão da fala humana, reconhecimento de imagens, geração de texto, tradução, dentre outras. O objetivo deste artigo não é a enumeração de marcas de softwares disponíveis e suas prováveis soluções senão, apenas despertar no leitor o interesse pelo tema e que, cada qual, no bojo de suas atividades cotidianas, busque o aprofundamento do conhecimento sobre o assunto.

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1 GABRIEL, MARTHA. Você, eu e os robôs: pequeno manual do mundo digital. São Paulo: Atlas, 2018.

2 SILVA, Nilton Correia da. Inteligência Artificial. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin. (Org.). Inteligência Artificial e Direito: Ética, Regulação e Responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

3 BOSTROM, Nick. Superinteligência, caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. São Paulo: Darkside Books, 2018.

4 Disponível em: <_http3a_ _portal.stf.jus.br2f_noticias2f_vernoticiadetalhe.asp3f_idconteudo="422699&tip=UN"> Acesso em: 10 fev. 2020.

5 Disponível em: <_https3a_ _www.abracrim.adv.br2f_artigos2f_inteligencia-artificial-no-processo-penal=""> Acesso em:  10 fev. 2020.

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João Bosco de Barros
Advogado, Administrador, especialista em gestão de escritórios de advocacia, com larga experiência em adensamento de cadeias produtivas, atua no escritório Murillo Lobo Advogados, professor na ESA-GO

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