Longe de estampar grande novidade nos terrenos forenses – em especial aos operadores do Direito atuantes na seara tributária –, fato é que, em meio à incessante e longeva contenda travada entre contribuintes e Fisco, este último, historicamente, sobressai glorificado em virtude de seus numerosos e vultosos triunfos no Poder Judiciário, notadamente no que tange ao Supremo Tribunal Federal1.
Este cenário de predominância fazendária na Suprema Corte resta ainda exponencialmente amplificado com o transcorrer dos anos, de modo que, dos 25 temas tributários apreciados de 2016 a 2019, somam 20 aqueles que se findaram proveitosamente ao Fisco. E não só: com a alta celeridade garantida pela realização de julgamentos no Plenário Virtual, somente de janeiro a setembro de 20202, a Fazenda Nacional emplacou êxitos equivalentes a mais de R$ 500 bilhões, cuja monta sobrepuja, em muito, os pouco mais de R$ 48 bilhões condizentes a vitórias por parte dos contribuintes.
Precisamente nessa conjuntura que exsurge a razão de muito se denominar como a “tese do século” a discussão atinente à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/PASEP e da Cofins (tema 69/STF), cuja tese restou assim alcunhada não só por representar um desfecho em prol dos contribuintes que ostenta repercussão economicamente expressiva, como também pelo fato de que, no tracejar cognitivo direcionado à sua resolução, aflora-se raciocínio que se presta a sublimar outras insurgências dos contribuintes, às quais fora denotada a qualidade de “teses-filhotes”.
E, dentre as variadas “teses-filhotes” depreendidas da “tese do século”, uma de avantajado relevo consiste no discernimento voltado a se excluir da base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (“CPRB”) o montante relativo ao ICMS. Ora, se o PIS/PASEP e a Cofins incidem sobre a receita bruta e esta grandeza – conforme sua matriz constitucional – não engloba os valores de ICMS, por conseguinte, a contribuição que recebe seu nomen iuris exatamente por atingir a sobredita receita bruta não poderia ter conclusão distinta.
Essa máxima perdurou por solos férteis, tendo engendrado, inclusive, o julgamento – sob o rito dos recursos repetitivos – do Tema 994/STJ, em que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou a impossibilidade de se incluir o ICMS na base de cálculo da CPRB ao seguir rigorosamente a ratio decidendi oriunda do RE 574.706/PR (tema 69/STF). Outrossim, o próprio STF, estendendo fielmente seu posicionamento referente ao PIS/PASEP e Cofins à hipótese da CPRB, assentou tal cognição em diversas oportunidades, como, à guisa de exemplo, nos julgamentos unânimes proferidos no RE 1.100.405/SC AgR (rel. ministro Edson Fachin), RE 1.089.337/PB AgR (rel. ministro Celso de Mello) e RE 1.151.761/RS AgR (rel. ministro Alexandre de Moraes).
Tamanha a coerência jurisprudencial decorrente da adequada observância do paradigma pretoriano – digna de louvar o sobreprincípio da segurança jurídica – que carreou a afetação, pelo TRF da 4ª Região, do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade 5035825-72.2017.4.04.0000, implementada com vistas a definir qual o ICMS (destacado ou efetivamente pago) que haveria de ser excluído da base de cálculo da CPRB.
A fortunosa expectativa dos contribuintes de ver encerrada, definitiva e favoravelmente, a celeuma da inclusão – ou não – do ICMS na base de cálculo da CPRB, conquanto tenha sido realçada num primeiro momento com o reconhecimento da repercussão geral da matéria nos autos do RE 1.187.264/SP (tema 1.048/STF), fora tragicamente extirpada em meio a uma reviravolta de posicionamentos.
Eis que, não obstante o relator, ministro Marco Aurélio, tenha capitaneado entendimento em harmonia com o deslinde fixado no tema 69/STF – e, assim, acolhido a tese dos contribuintes por haver estreita semelhança axiológica das bases de cálculo do PIS/PASEP, da Cofins e da CPRB –, a divergência instaurada pelo ministro Alexandre de Moraes, apostando no irreal alargamento da receita bruta e na facultatividade de adesão à sistemática da CPRB para determinar a inclusão do ICMS sobre a base imponível desta contribuição, conquistou mais adeptos, resultando na vitória da Fazenda Nacional pelo placar de 7 a 4 (ata de julgamento publicada em 9/3/21).
De prontidão, cabe assinalar o tremendo retrocesso empreendido na tese triunfante ao compreender, na amplitude conceitual de receita bruta, os valores de tributos nela incidentes. Como é cediço, este discernimento caminha na total contramão da consolidada noção de que a abrangência da dita grandeza está ligada indissociavelmente à riqueza própria dos contribuintes, somente a integrando o valor que ingressa nos cofres daquele que o recebe, incorporando-se ao seu patrimônio de forma definitiva.
Evidentemente, não há como se defender que o ICMS constitui riqueza que se absorve ao patrimônio dos contribuintes, uma vez que corresponde, em verdade, a mero ingresso de recurso que não possui definitividade, porquanto deve ser integralmente repassado ao Fisco Estadual, que é quem detém, indubitavelmente, a titularidade dessa receita. O contribuinte não fatura o ICMS, exercendo unicamente a função de mero sujeito arrecadador do tributo, transmitindo, em seguida, seu montante ao ente competente.
E nem mesmo o advento da lei 12.973/14 se porta como hábil a abalar esta intelecção, visto que a percepção de que a receita bruta não compreende meros ingressos encontra guarida na interpretação já perfectibilizada – seja pela pacífica doutrina pátria, seja pela sólida jurisprudência da Suprema Corte (vide tema 69/STF) – em que se definiram os conceitos de receita bruta e faturamento à luz da Constituição Federal (art. 195, I, b, da CF/88), e não com amparo primordial na legislação ordinária. Afinal, a exegese deve sempre partir da Carta Magna – fundamento de validade soberano e ápice hierárquico do ordenamento jurídico – aos demais instrumentos normativos, e não o contrário, donde se estaria, num procedimento hermenêutico teratológico, interpretando a Lex Mater à luz da lei infraconstitucional.
Perpassado este tópico, outra arguição fiscal acolhida pelo voto vencedor do tema 1.048/STF diz respeito à suposta presença de distinguish – espécie de técnica de superação de precedentes jurisprudenciais que detenham força cogente – entre o caso em apreço e a matéria ventilada no tema 69/STF, lastreada em pretensa diferenciação dos assuntos em vista da facultatividade de adesão ao regime da CPRB – em substituição à Contribuição Patronal sobre a folha de salários – pelo contribuinte. Tal assertiva, in casu, não guarda pertinência lógica nem jurídica.
Já de início, a própria argumentação recai em incongruência. Se é a facultatividade do administrado de optar ou não pela CPRB o fundamento responsável por gerar distinção suficiente para afastar a observância da tese firmada no tema 69/STF, como compatibilizar este posicionamento aos anos em que a CPRB fora compulsória, cujo lapso temporal abrange desde o surgimento dessa contribuição (com a MP 540/11) até o instante anterior à vigência da lei 13.161/20153?
E mais: ainda que a facultatividade estivesse presente na integralidade do período, isto em nada rechaçaria a indispensabilidade de se excluir o ICMS da base imponível da contribuição em tela. Isto, pois: (I) independentemente de o contribuinte deter a faculdade de optar por um regime ou outro, tal fato não autoriza o legislador ordinário a desmantelar o conceito constitucionalmente previsto do instituto sob análise (receita bruta); e (II) mesmo que a facultatividade fosse apontada como a possibilidade de o legislador ordinário atribuir sistemáticas distintas para a tributação da Contribuição Previdenciária – se pela folha de salários ou pela receita bruta –, também não há normativa autorizando que este legislador eleja, a seu talante, os contornos destas grandezas, sob pena de incorrer em grave infringência à dicção do art. 110 do Código Tributário Nacional.
Não à toa, o ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto como relator do tema 1.048/STF, discorreu com excelência sobre a temática:
“O caráter opcional de adesão à sistemática prevista na Lei 12.546/2011, bem assim a feição benéfica da disciplina não podem ser potencializados de modo a ensejar tributação em desacordo com o figurino constitucional.
Admitir a volatilidade dos institutos previstos na Lei Maior com base no regime fiscal ao qual submetido o contribuinte implica interpretar a Constituição Federal a partir da legislação comum, afastando a supremacia que lhe é própria.”
Nesse contexto, revela-se absolutamente impróprio o discurso fazendário – admitido pela maioria do STF – de que a base imponível da CPRB se diferenciaria daquela relativa ao PIS/PASEP e à Cofins sob a alegação de que, como a CPRB consistiria em benefício fiscal facultativo, caberia ao legislador ordinário eleger e estruturar – da forma que bem entendesse – a base de cálculo deste tributo, uma vez que o constituinte supostamente haveria lhe outorgado essa “carta branca” ao permitir que a substituição da folha de salários pela receita bruta ocorresse de maneira gradual, total ou parcial.
Ocorre que o esteio desta arguição, condizente com o já revogado § 13 do art. 195 da Constituição Federal4, em nada ampara o raciocínio supra, consoante se verifica a seguir:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
[...]
§ 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do capu t, serão não-cumulativas.
§ 13. Aplica-se o disposto no § 12 inclusive na hipótese de substituição gradual, total ou parcial, da contribuição incidente na forma do inciso I, a, pela incidente sobre a receita ou o faturamento.”
Ora, não é dificultoso identificar que a transição parcial, gradual ou total que é conferida pela Carta Republicana ao legislador ordinário se refere à substituição da folha de salários tão somente pela “receita ou faturamento”. Quer dizer que esta transição pode se dar: (I) de uma só vez (“total”), hipótese em que o contribuinte deixa de recolher sobre a folha de salários e passa a o efetivar apenas sobre sua receita/faturamento; (II) de maneira fracionária (“parcial”), situação na qual o particular passa a pagar a contribuição, ao mesmo tempo, sobre sua folha de salários e sobre sua receita/faturamento; e (III) paulatinamente (“gradual”), donde a contribuição, que era recolhida somente sobre a folha de salários, passa a incidir também sobre a receita/faturamento até certo período e, após determinado lapso temporal, recai apenas sobre essa última grandeza (receita/faturamento).
De todo modo, por qualquer ângulo que se observe, algo é incontestável: a base de cálculo da contribuição em testilha só pode fazer referência à folha de salários ou à receita/faturamento; esta é a única facultatividade concedida ao legislador ordinário (na elaboração da correspondente lei) e ao contribuinte (quando da opção por uma sistemática ou outra). Em sendo assim, não há espaço para a inclusão do ICMS em qualquer hipótese que seja, já que sua inserção não é legítima em nenhuma das grandezas mencionadas. Trata-se de conceitos constitucionais, imodificáveis pela via estreita da legislação ordinária.
Desta feita, como tanto o PIS/PASEP e a Cofins quanto a CPRB configuram tributos que incidem sobre a receita bruta, não existe, logica ou juridicamente, qualquer motivação para dar-lhes soluções distintas. A receita bruta dos particulares não compreende os valores relativos a ICMS: esta resolução, peremptória que é, aplica-se indistintamente para qualquer tributo que sobre esta grandeza (receita bruta) recair.
Entretanto, em que pese a solidez e serenidade de toda a linha argumentativa retro colacionada, quando do julgamento do tema 1.048/STF, infelizmente, despontou vitoriosa a tese fazendária, despontou vitoriosa a sede arrecadatória, despontou vitoriosa a insegurança jurídica que, há muito, tanto se pretende erradicar.
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1 A respeito da temática, interessante se apresenta o levantamento, promovido pelos professores Gustavo Fossati e Leonardo de Andrade Costa (FGV Direito Rio), substancializado no relatório “Supremo em Números: o Supremo Tributário”, pelo qual é viável observar que, no período abrangido de 1988 a 2018, o índice de sucesso do Fisco no STF é consideravelmente superior ao dos contribuintes, tendo alcançado, a exemplo das lides que envolvem contribuições, o elevado percentual de 70,14% dos casos. O estudo completo está disponível clicando aqui. Acesso em 15 de mar. de 2021.
2 Importa pontuar que, neste período, das 37 deliberações jurisdicionais exaradas pelo STF relativamente a litígios tributários, 31 se encerraram favoravelmente à Fazenda Nacional. A matéria jornalística contendo estes e outros dados se encontra disponível clicando aqui. Acesso em 15 de mar. de 2021.
3 Sobre o tema, importa dispor que, no período referenciado (3/8/11 a 30/11/15), a redação dos artigos 7º e 8º da lei 12.546/11 se formalizou com verbos no modo imperativo (“incidirá” e “contribuirão”), implicando a obrigatoriedade de adoção da sistemática da CPRB, em substituição ao regime relativo à folha de salários.
4 O atual fundamento de validade da CPRB, após o advento da EC 103/2019, está disposto no § 9º do art. 195 da CF/88, que, contudo, em nada altera a intelecção desenvolvida, pois expressamente permite, quanto à contribuição incidente sobre a folha de salários, a adoção de base de cálculo diversa apenas nos casos em que corresponder àquelas previstas nas alíneas “b” (receita ou faturamento) ou “c” (lucro) do inciso I do caput deste dispositivo.