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Dano moral trabalhista: A inconstitucionalidade da tarifação celetista

Cumprirá ao Supremo Tribunal Federal quando da análise do questionável artigo 223-G, § 1º, incisos I a IV da CLT, redação dada pela “Reforma Trabalhista” declarar sua inconstitucionalidade, ante o desprezo do legislador quando da elaboração da norma para com significativos avanços humanísticos de nossa Constituição da República.

22/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

É fato notório no meio jurídico que o instituto do dano moral – aqui tomado por sinônimo de dano extrapatrimonial, aquele que não possui quantificação precisa ou palpável – sofreu significativas transformações no decorrer dos anos, em especial no tocante a sua aplicabilidade à esfera trabalhista.

A norma laboral padecia de uma completa ausência de imperativo explícito quanto ao tema, obtendo a partir de fontes análogas os corolários necessários a tutelar ilícitos eventualmente perpetrados à esfera de intimidade de empregados e empregadores1.

Sob o pretexto de atualizar as normas regulatórias das relações empregatícias, em 13 de julho de 2017 foi instituída a lei 13.467/17, alcunhada de “Reforma Trabalhista”.

Norma de tramitação incomumente célere, finalmente, trouxe a regulamentação a despeito dos danos extrapatrimoniais de maneira clara inserindo na antiga CLT o artigo 233-A e seguintes, todos insertos no Título II-A alcunhado “Do Dano Extrapatrimonial”, regramento específico quanto a temática.

A principal alteração, objeto que delimita as breves críticas deste texto, diz respeito a retirada do poder decisório da jurisdição através da inserção de critérios estranhamente objetivos para a tarifação e balizamento das condenações em ilícitos extrapatrimoniais.

A legislação trabalhista antes da vigência da norma atual utilizava de parâmetros casuísticos, obtidos através de uma análise sistêmica do ordenamento jurídico pátrio para valorar eventuais condenações impostas para compensação por abalos morais perpetrados dentro da relação jurídica de direito material trabalhista.

Trocando em miúdos, para resolução de pleitos que versavam sobre danos morais, a jurisdição laboral se apoiava na norma cível2 e constitucional3, estabelecendo-se uma análise direcionada, exclusiva, entregando ao arbítrio e análise do julgador quanto a fatos, provas e direito o arbitramento a ser tomado por justo4.

Para tanto, a jurisprudência assente se apoiava em critérios subjetivos como a gravidade da culpa, a extensão do dano, a capacidade econômico-financeira do agressor, o caráter pedagógico da sanção jurídica a ser imposta, a compensação ao agredido e outros tantos utilizados, hodiernamente, pela magistratura trabalhista5.

Embora ao mais desavisado os critérios adotados possam transpor uma equivocada visão de subjetividade, a análise em comento jamais poderia ser arbitrária, os critérios da proporcionalidade e razoabilidade sempre regiam as condenações impostas a partir da moldura existente no plano do processo em si, ou seja, o jurisdicionado analisava as provas produzidas e se atinha a elas para definir o quantum da compensação.

Exemplificativamente, relembra-se a jurisprudência do TRT-15, como o quanto decidido pelo desembargador Ricardo Antonio de Plato para condenar empregador que acusou injustamente empregada de furto, na presença de demais funcionários e clientes, fixando-se o quantum em R$ 5.000,00.

O desembargador, por ventura do julgado, fez questão se ressaltar que a manutenção do patamar fixado em instância ordinária atendia “aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, caráter pedagógico da sanção e capacidade econômica das partes”6, punindo o agressor e compensando a agredida dentro da extensão do dano.

Ao caso em comento, quando da análise perspectiva da causa jurídica subjacente, à luz do que restou provado no feito, o jurisdicionado, em seu arbítrio, fixou critérios suficientes para a determinar o importe do quantum debeatur.

Não se olvide que o sistema padece de acertos – muito longe do autor se afigura a pretensão de afirmar que a legislação pretérita era perfeita. Porém, sem qualquer exercício de falsa modéstia, a norma prévia é muito mais razoável do que aquilo que foi imposto pela norma vigente.

Em prima análise, a inserção do Título II-A poderia sim ter trazido à esfera laboral um viés de que fossem evitadas decisões díspares para situações análogas, facilitando o exercício da jurisdição, garantindo segurança jurídica e uma duração mais razoável dos processos, porém, o efeito que pode realmente ser sentido é oposto.

Os temerários comandos estabelecem a não cumulatividade de danos – pauta para uma próxima discussão – e o último salário contratual do ofendido como critério de fixação do quantum – o busílis da questão ora debatida.

A inconstitucionalidade da tarifação com base no último salário contratual ressoa latente e merece reprimenda como tem se tornado pacífico na renomada doutrina, inclusive, já existindo questionamentos no âmbito do Supremo Tribunal Federal através da propositura das ações diretas de inconstitucionalidade nº. 5.8707, 6.0698 e 6.0829, todas apensadas para decisão conjunta do ministro relator Gilmar Mendes.

A afronta decorre de uma clara incompatibilidade entre a tarifação pretendida pela norma empregatícia e a tutela jurisdicional do dano moral garantida pela Constituição da República, como realização do corolário da dignidade da pessoa humana, trazido de maneira literal pelo artigo 5º, incisos V e X10.

O desprestígio do legislador já se destaca, sobremaneira, quando a Constituição da República, norma magna do ordenamento positivado, garante ao ofendido “resposta, proporcional ao agravo”, sendo princípio hermenêutico não poder se desconsiderar que a lei não possui palavras inúteis.

Estabelece-se, portanto, a noção de proporcionalidade entre a ofensa (“agravo”) e sua reparação11, perfazendo silogismo lógico das premissas apresentadas que a fixação do quantum debeatur deve refletir minoração relativa à afronta dispendida, tornando incompatível o texto que imponha proporcionalidade entre o último salário contratual do ofendido e a reparação12 – uma lamentável tentativa de isolar a seara trabalhista do restante do ordenamento.

Bem-vistas as coisas, a incompatibilidade da norma laboral com a Constituição da República advém do fato de que a o texto hierarquicamente superior estabelece que a quantificação da indenização guarda pertinência com a ofensa perpetrada, conquanto a norma laboral tenta estabelecer um liame de proporcionalidade com o valor recebido pelo obreiro, padecendo a tarifação discutida de inconstitucionalidade13.

A tarifação prévia pretendida pela dita “Reforma Trabalhista” fere de morte o princípio da reparação integral do dano, restringindo-se a plena concretização do postulado da dignidade da pessoa humana, cláusula pétrea prevista pelo artigo 1º, inciso III da Constituição.

Elucidativas as brilhantes lições do ministro Luis Roberto Barroso quando de voto-vista em caso paradigmático da Corte Superior, expondo que “a causa do dano moral nada mais é do que a lesão à dignidade, de modo que ‘quando a dignidade é ofendida, há que se reparar o dano injusto sofrido’”14, o que coaduna com as críticas tecidas.

Não fosse o bastante, a tarifação celetista não é recepcionada pela Constituição da República ao desconsiderar o princípio da isonomia, corolário expresso do artigo 5º, caput, disposição expressa de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Para fins de didática e facilitação da cognição da inconstitucionalidade como posta, permite-se exemplificar “situação modelo” que conclama a não aderência.

Tem-se que no caso em comento o evento danoso é o evento morte, invariavelmente, ofensa de natureza gravíssima aos direitos do empregado, passível de sanção que alcance até cinquenta vezes o salário contratual do ofendido, consoante artigo 223-G, § 1º, inciso IV do que se tem por nova CLT.

Há de se supor, para fins didáticos, que o evento morte afete dois empregados com imposição de apenas uma variável entre ambos: o último salário contratual.

Um dos trabalhadores perfez a última remuneração contratual de R$ 1.000,00 e, com a procedência da demanda judicial em face do empregador, obteve uma compensação pelos abalos extrapatrimoniais de R$ 50.000,00.

O outro ofendido perfez a última remuneração contratual de R$ 10.000,00 e, com a ação julgada procedente, obteve compensação em elevado patamar de R$ 500.000,00.

Vê-se de maneira nítida que a norma ofende a isonomia, ao passo que na discussão trazida o evento danoso – morte – afeta dois trabalhadores de maneira idêntica, porém, havendo valoração desigual da vida de cada um dos seres humanos afetados, discriminando-os de maneira que não é permitida pelo corolário magno da república15.

Novamente, para fins elucidativos, traz-se outra “situação modelo” para comprovação das graves ofensas ao permissivo constitucionalista.

Um obreiro cujo último salário contratual seja R$ 1.000,00 acometido por um evento gravíssimo (quantum a ser arbitrado em até cinquenta vezes o último salário contratual conforme entabula o artigo 223-G, § 1º, inciso IV) corre o risco de receber compensação menor que um obreiro com último salário contratual de R$ 20.000,00 acometido por evento de natureza leve (quantum a ser arbitrado em até três vezes o último salário contratual, consoante estabelece o artigo 223-G, § 1º, inciso I).

Trata-se de matemática básica. Ao primeiro obreiro pode ser arbitrada uma indenização de R$ 50.000,00 por um evento gravíssimo – morte, por exemplo – e o segundo laborador receber R$ 60.000,00 por um evento leve – uma discussão mais ríspida na frente de outros empregados ou algo mais singelo, por exemplo.

Há teratológica discriminação, ofensa grave ao princípio constitucional da isonomia, desconsideração absoluta a proteção jurídica dada a equidade e ao tratamento igualitário.

A má técnica redacional é também agressiva a independência do jurisdicionado, corolário previsto no artigo 93, inciso IX da Constituição da República.

A Constituição preconiza como prerrogativa do magistrado a prolação de decisão resolutiva consubstanciada em seu livre convencimento, desde que se resguarde a reparação do titular quando de um direito lesado, antônimo completo ao que se estabeleceu na norma laboral.

Há coalisão entre o pacto cidadão e a “Reforma”, quando essa visa impor amarras ao jurisdicionado, parametrizando a graduação de danos (leve, média, grave e gravíssima) e deixando aquele vinculado ao valor do último salário da vítima para determinação do quantum debeatur, usurpação claríssima de competência institucional.

Nessa esfera, a equivocada tarifação celetista desponta como cúmplice do sucateamento da relação laboral ao mitigar – quando não extinguir – a função preventiva do dano extrapatrimonial, para além de incentivar as contratações de mão-de-obra por valores cada vez menores, consequência lógica do exposto16, afronta ao direito constitucional dos trabalhadores a melhoria de sua condição social prevista no caput do artigo 7º.

Em situações análogas a analisada o Supremo já se posicionou no sentido de que tarifações prévias não encontram aderência ao texto constitucional, como quando da análise do recurso extraordinário 447.584-7-RJ17 em que se discutia a subsistência da norma prevista no artigo 52 da lei 5.250/67, popularmente alcunhada de “Lei de Imprensa”.

Ao analisar o tema, a corte superior cotejou a não recepção do dispositivo vez que “limitações prévias, que, despojadas de qualquer justificação lógica, desqualificam a importância estimativa da natureza, da gravidade e da repercussão da ofensa, bem como dos outros ingredientes pessoais do arbitramento” são, claramente, inconcebíveis com o que preza a Constituição.

Nessa mesma esfera houve manifestação do pleno do STF quando da arguição de descumprimento de preceito fundamental 130-DF18, em consonância com o que já vinha assente na jurisprudência do STJ19.

Momentaneamente, segue fora de pauta o enfrentamento do Supremo no tocante ao objeto destas breves linhas críticas, a inconstitucional tarifação celetista segue vigente e fazendo efeito em lides propostas por toda jurisdição pátria, trazida com amparo em falsas premissas e deturpados dados20.

Cumprirá ao Supremo Tribunal Federal quando da análise do questionável artigo 223-G, § 1º, incisos I a IV da CLT, redação dada pela “Reforma Trabalhista” declarar sua inconstitucionalidade, ante o desprezo do legislador quando da elaboração da norma para com significativos avanços humanísticos de nossa Constituição da República. É o que se espera para reinserção do ordenamento laboral em uma esfera, minimamente, republicana.

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1 ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de; SOUZA, Luiza Baleeiro Coelho. A regulamentação do dano extrapatrimonial pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) sob a perspectiva sistêmica do direito no constitucionalismo contemporâneo. Revista dos Tribunais, v. 196/2018, p. 63-85, dez/2018.

2 In casu, os dispositivos constantes do Código Civil editado em 2002.

3 In casu, os corolários vigentes a partir da Constituição da República de 1988.

4 FACCHINI NETO, Eugênio; GOLDSCHMIDT, Rodrigo. Tutela aquiliana do empregado: considerações sobre o novo sistema de reparação civil por danos extrapatrimoniais na área trabalhista. Revista dos Tribunais, v. 984/2017, p. 219-254, out/2017.

5 SANTINI, José Rafaelli. A reparação autônoma do dano moral. Revista de Direito do Trabalho, v. 739/1997, p. 156-167, mai/1997.

6 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. 1ª Câmara. 1ª Turma. Recurso ordinário nº. 11983-38.2016.5.15.0116. Relator: Des. Ricardo Antonio de Plato. Diário de Justiça Eletrônico: 18 de junho de 2020.

7 Proposta pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA “em face dos incisos I, II, III e IV do § 1º do art. 223-G da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei n. 5.452/1943), com a redação que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei n. 13.467, de 13/7/2017”.

8 Proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB “em face dos arts. 223-A e 223-G, §§ 1º e 2º, do Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho), na redação conferida pelo art. 1º da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 (Reforma Trabalhista)”.

9 Proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria – CNTI “objetivando a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 223-A e incisos I, II, III e IV do § 1º do artigo 223-G, do Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho), na redação conferida pelo art. 1º da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017”.

10 FONTES, João Roberto Egydio Piza. Dano moral. Revista dos Tribunais, v. 1/2015, p. 673-701, jul/2015.

11 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

12 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017.

13 SILVA, Artur Custódio da. Danos morais nas relações de trabalho. Os danos morais se tornaram “batatas fritas” no “fast food” da justiça laboral?. Revista de Direito do Trabalho, v. 191/2018, p. 55-74, jul/2018.

14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso extraordinário nº. 580.252-MS. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Diário de Justiça Eletrônico: 2 de fevereiro de 2018.

15 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.

16 RAYOL, Rayane Araújo Castelo Branco; GOMES, Ana Virginia Moreira. O tabelamento do dano extrapatrimonial na lei 13.467/2017 e a mitigação da função preventiva de sua reparação. Revista de Direito do Trabalho, v. 203/2019, p. 97-124, jul/2019.

17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário nº. 447.584-7-RJ. Relator: Min. Cezar Peluso. Diário de Justiça: 28 de novembro de 2006.

18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº. 130-DF. Relator: Min. Carlos Britto. Diário de Justiça Eletrônico: 30 de abril de 2009.

19 “Súmula 281. A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, de 15 de maio de 2004.

20 NELSON, Rocco Antonio Rangel Rosso; TEIXEIRA, Walkyria de Oliveira Rocha. Algumas ponderações críticas quanto a reforma trabalhista de 2017. Revista dos Tribunais, v. 998/2018, p. 335-371, dez/2018.

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Renan Binotto Zaramelo
Advogado em Advocacia Fávero e Vaughn. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Escola Superior de Advocacia.

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