A 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP proferiu uma decisão totalmente absurda no tocante ao sigilo na arbitragem, fulminando-o de nulidade, para tanto tendo adotado argumentos completamente despropositados1. Um dos pontos principais da decisão foi no sentido de haver considerado inconstitucional o art. 189, IV do CPC, verbis:
Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos:
I - em que o exija o interesse público ou social;
II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes;
III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade;
IV – no que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.
A conclusão dos julgadores pela da inconstitucionalidade desse inciso está fundada nos artigos 5º, LX; e 93, IX da Constituição Federal, também aqui reproduzidos a fim de ficar facilitada a sua análise:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
...
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Nesse sentido, quando uma parte procura o Judiciário na busca da anulação de uma sentença arbitral derrubar o sigilo presente na arbitragem na ausência de pedido justificado implica em julgar ultra petita, considerando-se a natureza da arbitragem e que, para a sua sobrevivência no mundo do direito, seus princípios devem ser mantidos. A participação do Judiciário quando chamado para os fins acima é limitada aos termos da Lei de Arbitragem, não sendo compatível com a sua atuação a chamada ao CPC, desrespeitando na regra sobre o sigilo inserida no art. 189, IV, sob alegação de inconstitucionalidade.
E como o julgamento chegou à conclusão de que essas normas não valem? Vejamos os argumentos que foram utilizados.
Verifica-se que os julgadores simplesmente jogaram por terra a Lei de Arbitragem, cuja constitucionalidade foi expressamente reconhecida pelo STF em famosa decisão - SE 5.206-Espanha (AgRg), rel. Min. Sepúlveda Pertence, 12.12.2001.(SE-5206) e cujo art. 2º, parágrafo 3° dispõe que o princípio da publicidade é obrigatório para os feitos que envolvam a administração pública, entendendo-se que, no silêncio, as partes podem optar pelo sigilo, como resultado de uma simples e tradicional forma de interpretação de normas jurídicas.
E um dos despropósitos da decisão sob comentário é que ela veio, precisamente, de uma câmara especializada em direito empresarial, a qual, pela sua natureza, deveria entender a racionalidade dos institutos utilizados pelos comerciantes, na expressão constitucional de sua autonomia privada. Assim, quanto aos julgadores, trata-se de um trabalho de verdadeiros sapadores, agindo para derrubar as muralhas sobre as quais a arbitragem foi construída.
Ora, quando se trata da solução de pendências relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, o interessado tem dois caminhos, o tradicional do Judiciário, e o da arbitragem. Eles, como microssistemas jurídicos, operam em regime de universos que se tangenciam em um ponto comum, que é constituído pela Constituição Federal. No tocante à arbitragem essa intersecção é marcada pelo princípio da autonomia privada, insculpido precisamente no mesmo art. 5º, inciso III, citado no acórdão sob referência, que se sobrepõe ao inciso LX, respeitante à publicidade dos atos processuais. No caso o inciso III prevalece, quanto à arbitragem, como forma de se dar eficácia ao princípio da liberdade das convenções no âmbito privado. Assim sendo a construção feita na decisão em apreço, trazendo para aquele instituto normas de direito processual “judicial”, misturou coisas inconciliáveis.
Lembre-se, ainda, que o acórdão aqui criticado foi objeto de decisão tomada na plena vigência da Lei de Liberdade Econômica (13.864/19), totalmente ignorada. E seu artigo primeiro enuncia expressamente a proteção à livre iniciativa, ao livre exercício da atividade econômica e dispõe sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, aplicando-se ao exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente. Nesse plano na sequência do mesmo dispositivo, deve ser interpretado o direito em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.
E falta de respeito ao contrato celebrado entre as partes litigantes foi precisamente o que faltou na decisão dessa Câmara Especial de Direito Privado.
Mais ainda, o art. 2º da LLE é taxativa em estabelecer que são princípios que norteiam o disposto nesta Lei: a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; e a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.
Como se pode perceber, passar por cima da cláusula de sigilo consiste em afronta a esse princípio de liberdade, que tem matriz constitucional, como já foi visto acima. E, por outro lado, a referida intervenção do Estado nas relações privadas, de índole subsidiária e excepcional, inclui evidentemente o Judiciário, que é um dos três órgãos que formam aquele.
Nota-se que uma vertente do Judiciário parece entender que o seu papel é o de protetor geral dos cidadãos que geralmente são considerados hipossuficientes, relativa ou absolutamente incapazes de cuidar dos seus próprios interesses. E essa proteção deve cobrir um interesse difuso, que foi representado no caso pela alusão à necessidade da proteção de um interesse social indeterminado, correspondente a titulares abstratos e impessoais. Nesse sentido, haveria uma comunidade indefinida de jurisdicionados, ávidos por informações relacionadas à vida das empresas e aos seus infortúnios, representados, entre outros, pela condenação em um processo arbitral. Agiriam como comadres à procura de fofocas jurídicas com que passar o tempo.
Ficou acrescida nesse cenário a inclusão de outros empresários, externos aos feitos, cujos interesses eventuais possam ser protegidos, seguindo a decisão em apreço, pelo conhecimento do resultado de arbitragens, mas, muito mais do que isso, dos fundamentos que foram adotados na sentença arbitral, a qual formaria uma jurisprudência a ser consolidada pela via de precedentes arbitrais.
Trata-se, como se vê, de uma sentença universal, pois ela se volta para a proteção de diversas coletividades com interesses muito dierentes entre si e que, quanto ao sigilo dos segredos das arbitragens, muito marginalmente poderá aproveitar essa malfadada iniciativa.
Lá pelas tantas a decisão de que se trata faz uma alusão gratuita às companhias abertas, o que não era o caso de qualquer das partes desse julgamento, pois se trata de sociedades limitadas. Mas as normas a respeito de transparência no campo do mercado de capitais apresentam uma justificativa perfeitamente coerente com a sua natureza, pois se trata de cuidar dos interesses dos acionistas minoritários e dos investidores, que são chamados publicamente a aplicarem os seus recursos naquelas. Em sociedades limitadas isso não existe. São sócios que para tanto se aproximam pela via do parentesco ou de outras relações inerentes a uma proximidade, como a de amigos.
Mais ainda, um chamamento à proteção contra a assimetria de informações, que seria alcançada por meio da quebra do sigilo é mais um caso de quebra de parâmetros, considerada a origem da expressão, muitas vezes tomada de orelhada. Como se sabe, ela foi cunhada a partir de precioso texto de George Akerlof, denominado “The Market for Lemons: Quality Uncertanty and the Market Mechanism”2. “Lemons” era o apelido dado a carros usados de má qualidade, vendidos no mercado próprio. Por sua vez, “peach” era a designação de carros de alta qualidade.
Diante de um interessado que visite a sua loja o vendedor sabe quais veículos no seu pátio são pêssegos ou limões. Mas o comprador não sabe, fato que o coloca em uma situação de seleção adversa, originada de uma falha de mercado. Não é o caso de nos alongarmos neste texto sobre essa questão, anotando que neste mundo todos nós vivemos em quase completa assimetria informacional sobre os mais comezinhos fatos da nossa vida e nem por esse motivo precisamos pedir a cada momento que o Estado, inclusive pelas mãos do Judiciário, supra as nossas deficiências informacionais.
Já diziam os portugueses, muito sábios na vida dos negócios que, no campo do comércio, quem não tem competência não se estabeleça. Isso significa que se um alguém passa a atuar em determinado mercado, que ele se prepare para ser eficiente e isso não implica em que contrate um advogado par buscar na jurisprudência orientações sobre todo e qualquer risco que ele possa correr, o que seria absolutamente inviável. E outro efeito da LLE foi (art. 3º, inciso VIII), precisamente, o de considerar que na sua atuação os empresários agem sob o pressuposto da paridade, o que implica em se encontrarem no mesmo nível de informação sobre os negócios entre eles realizados, do que decorre a presunção juris tantum de não estar reconhecida a assimetria informacional in abstrato.
Ora, no caso sob exame não foi feita referência ao pedido de qualquer das partes no sentido da quebra da regra de sigilo mas isso deve ter acontecido na esteira da cláusula compromissória. Caso contrário, os julgadores teriam tomado uma decisão sponte sua, dessa forma tendo invadido a esfera privada dos interesses daquela, como se fossem curadores gerais de pretensos interesses de terceiros estanhos ao caso.
Passemos a criticar especificamente outros critérios adotados nesse julgado.
Muito bonita a citação do juiz Louis Brandeis da Suprema Corte Americana, no sentido do benefício da publicidade (a luz do sol) quanto às pendências judiciais. Bonita, mas completamente deslocada. Para assim constatar, vamos às fontes, que os doutos julgadores poderiam consultado por uma simples visita ao Google, bastando ter um pouco de afinidade com a língua inglesa3.
O contexto da afirmação de Brandeis se deu no plano de considerações sobre a concentração do sistema financeiro norte-americano daquele tempo e seu relacionamento com a negociação de valores mobiliários no mercado. Veja-se que ainda não havia se consolidado no ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América todo o aparato legislativo que veio a ser criado, tanto quanto ao direito concorrencial, quanto ao do mercado de capitais. Mas então o pano de fundo era completamente diferente ao de uma pendência arbitral privada, nada tendo a ver com a necessária publicidade concernente à negociação com valores mobiliários, em relação à qual a publicidade e a transparência têm valor quase absoluto. Não se pode livremente transpor uma afirmação feita em determinada situação específica para torná-la um postulado jurídico supra normativo, considerando-se que, no nosso caso, temos parâmetros constitucionais específicos. Brandeis, requiescat in pace.
Por sua vez, o combate ao art. 189, IV do CPC, taxado de inconstitucional, não se aplicaria à intimidade e ao interesse social, alegadamente generalizados, e de matriz constitucional desatendida.
Intimidade é um tema não apropriado à arbitragem, convenhamos. Ela diz respeito a direitos pessoais e não àqueles vinculados ao exercício de uma atividade empresarial. Foi completamente descabido a referência e esse direito.
Quanto ao interesse social, da mesma forma. E esse termo social, agregado a outros (propriedade, empresa, contratos) tem sido utilizado muito além da sua apreensão por institutos jurídicos, tendo se tornado quase sinônimo de socialista, no sentido de que tudo é público e nada mais é privado. Se é assim, adeus à autonomia privada, que siga para outras plagas.
O ataque pela decisão vertente ao art. 189, IV do CPC o critica porque ele possibilitaria que as orientações do Poder Judiciário fossem conhecidas apenas por poucos advogados e poucos julgadores, sendo desconhecidas pelo jurisdicionado. Primeiro neste país o que não falta são advogados, o que nos tem colocado como a nação deste planeta que mais conta com eles, prêmio ganho hors concours. Segundo os juízes não são tantos, mas temos bastante deles. Terceiro, a situação imaginada pelos ilustres julgadores no tocante ao conhecimento de decisões do Judiciário, que quebraria a assimetria informacional levaria os jurisdicionados à leitura diária dos diários da justiça ou de repertórios de jurisprudência (dezenas e dezenas deles), acarretando o mesmo efeito das publicações presentes de maneira geral nos diários oficiais, como o caso da famosa Conceição: ninguém sabe, ninguém viu. Esse argumento, forçoso é dizer, revela-se ridículo.
Poder-se-ia ter em conta que o referido interesse social fosse referente ao plano interno de cada uma das sociedades participantes da arbitragem, cujo cumprimento ou descumprimento seria aferido a partir da leitura dos contratos sociais de cada uma delas. Mas isso, ao que se verificou, não foi objeto da lide em questão.
Qual o interesse social presente numa pendência entre duas empresas que estão litigando pela via arbitral? O interesse primordial é do controlador, dos administradores e dos sócios. Um banco procurado por uma das partes para o fim da obtenção de um empréstimo precisará tomar conhecimento dos efeitos patrimoniais negativos de uma sentença adversa.
Mas esse conhecimento específico, mesmo em sede de arbitragem sigilosa, será alcançado pelo exame da escrituração da interessada, que deverá ter uma rubrica nos seus registros contábeis mediante uma provisão em balanço quanto aos eventuais efeitos negativos da decisão arbitral. O mesmo quanto aos fornecedores. Cônjuges, parentes e eventuais herdeiros do controlador, dos sócios e dos administradores das sociedades que sejam parte em arbitragens não estão na conta dos titulares desse alegado interesse social.
E, em contrapartida, o chamado segredo de negócio é princípio secular da atividade mercantil, não sendo dado a terceiros o direito de saber o que anda ocorrendo dentro das empresas, pois esse conhecimento daria margem a vantagens a serem auferidas pelos concorrentes, sem qualquer custo, a não ser o de consultarem os processos correndo no Judiciário.
Segue-se uma referência à pacificação social, que seria ferida pelo sigilo nas arbitragens. Parece que existiria um clamor na sociedade civil no sentido da superação desse obstáculo – que eu desconheço em absoluto, para que a paz seja restabelecida ou não prejudicada. Vamos e venhamos, essa alegação é forçar demais a barra. Nada tem a ver com a arbitragem.
Essa dita paz social estaria assegurada pela segurança e previsibilidade geradas a partir de decisões reiteradas do Poder Judiciário – que seriam aplicáveis às decisões arbitrais – pela consolidação de precedentes, do que resultaria a formação de uma jurisprudência sobre os temas discutidos naquela seara.
Abro aqui um ligeiro parêntese para dizer que essa história de uma jurisprudência arbitral e de precedentes na arbitragem surgiu no chamado mercado arbitral, tendo sido aberta uma discussão sem fim sobre essa questão. Sou absolutamente contra, como já tive oportunidade de dizer algumas vezes.
Do ponto de vista de efeitos práticos os arbitralistas desavisados que têm aderido à corrente acima citada não prestaram atenção no efeito correspondente, que seria um tiro no próprio pé, correndo o risco de levarem esse mercado a um sensível esvaziamento. Não levam em conta a possibilidade de ficarem desempregados. Vejamos as razões.
Primeiro, desde que passei a atuar nesse campo, seja como árbitro, seja como consultor, jamais vi um caso igual ou minimamente semelhante a outro. Daí que seria impossível se criar uma jurisprudência a partir dos fundamentos utilizados nas respectivas sentenças arbitrais. Minto em parte, reconheço. Semelhanças ou até mesmo identidade existem no plano do processo arbitral, que se tem tornado em uma odisseia na busca da chegada incólume pelos árbitros à ilha de Ítaca, tantas são muitas das discussões que se situam em um campo processual meramente técnico, que somente têm servido para encarecer os custos e delongar o momento da sentença final. Mesmo assim, não é o caso de se pensar em uma jurisprudência processual arbitral porque há realidades são muito diversas quando feita uma comparação com o Judiciário.
Dessa maneira, é completamente descabida a busca de uma coerência em decisões arbitrais, porque cada caso é um caso. A propósito, a comprovação da opção pelo sigilo é feita diretamente pela leitura da clausula compromissória e ou pelo Termo de Arbitragem ou Ata de Missão.
Reforce-se a natureza privada da arbitragem. No legítimo uso do princípio constitucional de que são titulares os contratantes elegem o sigilo como regra a ser adotada. Se agiram de boa fé e, consequentemente sem fraude, o Judiciário não tem o poder de invadir a sua esfera privada de interesses, a não ser que, precisamente, aqueles pressupostos não estejam presentes.
Segundo, já que o sigilo corre o risco de não mais ser um dos apanágios da arbitragem (com o desaparecimento de um dos seus incentivos principais), por qual razão recorrer a ela e não ao Judiciário onde uma das vantagens será o direito a mais de um grau de jurisdição? Eu até já disse outras vezes que, dada a instituição no Judiciário de varas empresariais especializadas isso traria mais segurança para o efeito de se alcançar uma sentença que atente para os princípios do direito correspondente. Já disse, mas não digo mais, tendo em visto o julgado em apreço.
Em conclusão essa decisão é reprovada em todos os seus aspectos, com deslouvor, esperando-se que seja desprovida e grau superior para que a arbitragem sobreviva entre nós.
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1 Cf. AgI 2263639-76.2020.8.26.0000, j. 2/3/21, rel. Cesar Ciampolini.
3 In “Others People Money”, cap. V, What Publicity can do”, texto encontrado em “Louis D. Brandeis School of Law Library/’, texto datado de 20/12/1913, acesso em 17/3/21.