Migalhas de Peso

O dilema da mobilidade urbana no Brasil

As cidades são espaços em que as pessoas e famílias deveriam se sentir felizes, agregando a um só tempo cultura, transportes, entretenimento, empregos, educação e serviços, além do desenvolvimento científico e tecnológico.

17/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Nossas cidades são espaços em que as pessoas e famílias deveriam se sentir felizes, agregando a um só tempo cultura, transportes, entretenimento, empregos, educação e serviços, além do desenvolvimento científico e tecnológico. Verdadeiramente, as cidades são como algo vivo, pois: “[...] as metrópoles são concebidas em uma dinâmica de construção coletiva e constante mutação. A forma como uma cidade se desenvolve é determinada por um conjunto de forças e interesses dos indivíduos, do governo e das organizações privadas, que se entrelaçam, de forma complexa” (VASCONCELLOS, 2018, p. 9).

Cerca de 84% da população brasileira vive em cidades:

“[...] No último século, a população brasileira cresceu de 17 milhões para 170 milhões de habitantes. No início do século XX, apenas 17% dessa população vivia em cidades, situação que se inverteu no fim do século, quando esse percentual já era de 81%, elevando-se ainda mais no último censo demográfico, realizado em 2010, que apurou uma taxa de urbanização de 84%. Tamanha mudança demográfica está associada à passagem da dinâmica econômica de base primária e exportadora para uma sociedade de base urbano-industrial” (SANTOS, 2017, p. 18)

Possivelmente após o censo demográfico previsto pelo Governo Federal para este ano de 2021, poderemos ter conhecimento se a tendência de moradias em cidades aumentou ou diminuiu na última década.

Ocorre que com o crescimento desordenado das cidades brasileiras, invasões em lotes públicos e privados, a falta de organização administrativa, o desemprego e a criminalidade causaram polos urbanos que desagregam a população:

“[...] O principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos. Não se devem se sentir ameaçadas por eles de antemão. O distrito que falha nesse aspecto também fracassa em outros e passar a criar para si mesmo, e para a cidade como um todo, um monte de problemas” (JACOBS, 2011, p. 30).

Jan Gehl destaca:

“[...] Uma característica comum de quase todas as cidades – independentemente da localização, economia e grau de desenvolvimento – é que as pessoas que ainda utilizam o espaço da cidade em grande número são cada vez mais maltratadas.

Espaço limitado, obstáculos, ruído, poluição, risco de acidentes e condições geralmente vergonhosas são comuns para os habitantes, na maioria das cidades do mundo.

O rumo dos acontecimentos não só reduziu as oportunidades para o pedestrianismo como forma de locomoção, mas também deixou sitiadas as funções cultural e social do espaço da cidade. A tradicional função do espaço da cidade como local de encontro e fórum social para os moradores foi reduzida, ameaçada ou progressivamente descartada” (GEHL, 2015, p. 3).

Necessitamos acrescentar a isto a criminalidade urbana e seus reflexos sociais diretos e indiretos para a população brasileira, principalmente nas periferias das cidades, já que as mulheres e crianças são as maiores vítimas desse aspecto social de violência. Raquel Rolnik formula uma questão: “As mulheres também tem direito à cidade?”, para na sequência responder:

“[...] Enquanto andar sozinha pela rua implicar medo de assédio, ameaça ou violentação, a resposta para a pergunta formulada no título deste texto é: não! As mulheres não tem direito à cidade porque não tem uma vivência plena e segura do espaço público. E não o têm tanto nas ruas como no transporte público, especialmente em horários de pico, quando a superlotação favorece a ação de abusadores” (ROLNIK, 2017, p. 170).

Assim é que há necessidade de um planejamento urbano eficaz e seguro, para todas as camadas sociais, surgindo então a questão crucial da mobilidade urbana, que seria a facilidade para se locomover, precipuamente em grandes cidades. Certamente este é um desafio para o Brasil e outros Países, já que se proporciona o melhor e rápido deslocamento das pessoas entre espaços urbanos, sendo essencial para a qualidade de vida de qualquer cidadão, promovendo as relações sociais e econômicas dentro das cidades.

Existe, sem dúvida, uma interconexão clara na relação entre veículos e pedestres, envolvendo os carros, motos, bicicletas, transportes coletivos, UBER, 99, ônibus, BRT, VLT, Metrô, sendo que para uma eficiência da mobilidade urbana precisa-se organizar o território, o fluxo de transporte de pessoas e mercadorias, assim como os meios de transportes recorrentes em determinado lugar.

Nos últimos anos, com o crescente número de veículos individuais há consectariamente intenso fluxo no trânsito das ruas e avenida, com sérias dificuldades de locomoção nas metrópoles e cidades de médio porte, com engarrafamentos, lentidão e acidentes, em geral nos centros das cidades e em locais em que há prestação de serviços e grande circulação de pessoas em direção aos seus empregos.

A lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012, que trata da mobilidade urbana, diz em seu artigo 1º:

Art. 1º A Política Nacional de Mobilidade Urbana é instrumento da política de desenvolvimento urbano de que tratam o inciso XX do art. 21 e o art. 182 da Constituição Federal, objetivando a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município (BRASIL, 2012).

Tal lei foi uma inovação no país, conquanto até hoje ainda não é totalmente efetiva nas cidades, pois há dificuldade, inclusive orçamentária do poder público, em implementar suas políticas públicas fundamentais.

No que tange à mobilidade urbana, Jerson Carneiro e Natasha Torres, em artigo publicado no livro Direito da Cidade, Tomo I, afirmam:

[...] A integração entre modos de transporte e a priorização dos modos não motorizados sobre motorizados e dos transporte coletivo sobre o transporte individual, o projeto de revitalização da área central portuária, o Porto Maravilha, pode servir como rico laboratório de análise da viabilidade de adoção de várias medidas preconizadas há décadas no país, porém ainda não testadas de forma tão concentrada e simultânea.

Destaca-se a construção e operação do VLT como uma das grandes inovações catalizadoras da proposta de reorganização dos fluxos de pessoas na área e de requalificação da convivência urbana, mas também ponto de risco face aos inúmeros desafios a serem superados para seu sucesso (AIETA, 2015, p. 229-230)

O exemplo do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, é bom um exemplo de convivência urbana e conexão nos transportes, contudo, o fato do Brasil, historicamente, optar pelo modal rodoviário por todo o país, ao invés do investimento em metrôs, trens e em meio marítimo ou fluvial, acarretou um fluxo enorme de carros e caminhões no País, geralmente mais e mais congestionamentos.

Verdadeiramente deve-se buscar um plano eficaz de mobilidade urbana, que deve objetivar a acessibilidade, segurança e eficiência no trânsito, priorizando-se a inclusão social e a preservação do meio ambiente.

Com o objetivo de evitar a poluição, o Brasil deveria também investir infraestrutura e incentivo à produção de veículos que não poluem tanto, como metrôs e trens, além de ônibus com motores elétricos ou com biocombustível, investimento em infraestrutura e em ciclovias, esteiras rolantes, elevadores de grande porte, calçadas niveladas e de boa qualidade, iluminação e teleféricos, facilitando o acesso inclusive para pessoas com deficiência.

O fato do transporte público no Brasil ser, na maioria das localidades, de péssima qualidade, aliado à facilidade na compra de veículos e a opção pelo modal rodoviário, trouxe este acúmulo inexorável de veículos no país, com sobrecarga no espaço, limitação do fluxo de veículos, grande número de acidentes, obstáculos ao deficientes e poluição exagerada.

Portanto, o país necessita buscar alternativas ao grande fluxo de veículos, como os teleféricos de Medellín, na Colômbia, além da utilização de bicicletas em países europeus.

Deveras, as calçadas devem ser uniformizadas, amplas e niveladas, permitindo que as pessoas caminhem pelas cidades sem grandes percalços, inclusive com cadeira de rodas, ocupando o espaço urbana dirigido a tal finalidade.

Angela Issa Haonat afirma:

“[...] Um dos aspectos fundamentais para a harmonia urbana é a devolução dos espaços públicos aos pedestres. Para a maioria dos urbanistas, os espaços urbanos devem ter ruas com vida, ou seja, com a energia positiva dos empreendimentos e das pessoas que nelas circulam, formando-se, consequentemente, uma cidade sem exclusões (HAONAT, 2007, p. 32).

Sem investimento para os pedestres, com transporte público de qualidade, como metrô, ônibus e trem, e com o crescimento populacional desordenado, sempre teremos as dificuldades de mobilidade urbana, não ocupando devidamente os espaços urbanos.

A ausência de uma reforma agrária realmente eficiente ao longo do século XX, auxiliou no êxodo rural do Brasil, fazendo com que as cidades tivessem um crescimento sem organização efetiva, assim, há de se investir nos espaços urbanos, em benefício da população, pois, segundo Glória da Anunciação Alves:

[...] Criam-se e valorizam-se espaços par moradia, lazer e turismo a partir da exploração da proximidade às áreas verdes e/ou parques contemplativos e às unidades de conservação ambiental, atribuindo à natureza a condição de mercadoria, junto à qual se vendem características de um ritmo de vida que tende ao desaparecimento na metrópole: a tranquilidade, o ar puro (agora um bem raro), a segurança e a beleza, todos postos em oposição à vida metropolitana (CARLOS; SOUZA, SPOSITO, 2020, p. 119)

Veja-se, portanto, que há o espírito de criar-se o espaço urbano, que não seja urbano, já que as pessoas se sentem maltratadas nas próprias cidades em que vivem.

Como consequência da pandemia e do afastamento social, dada a letalidade do COVID-19, incentivou-se a utilização do home office para as profissões que possibilitam tal modalidade de trabalho, tanto no serviço público quanto no privado, diminuindo, e muito, o fluxo nas grandes cidades, contudo, o poder público necessita refletir, estudar e pensar, rapidamente, como resolver situações caóticas da mobilidade urbana nas grandes cidades, precipuamente no pós-pandemia, planejando o futuro das cidades sempre com vistas no passado recente de imobilidade.

__________

AIETA, Vânia Siciliano. Direito da Cidade, Tomo I, organização: Vânia Siciliano Aieta; autores Alberto Afonso Monteiro ... [et al]. - Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. Justiça espacial e o direito à cidade / Núria Benach... [et al.]; organizado por Ana fani Alessandri Carlos, Glória Alves e Rafael Raleiros de Padua. – São Paulo: Contexto, 2017.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. SOUZA, Marcelo Lopes. SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão (organizadores). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios – 1ª ed., 8ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2020, p. 119

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 9 ed. 5ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2020.

COHEN, Jean L. Repensando a privacidade: autonomia, identidade e a controvérsia sobre o aborto. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 7, Brasília, janeiro-abril 2012, p. 165-203.

GEHL, Jean. Cidades para pessoas. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 3

HAONAT, Angela Issa. O direito ambiental em face da qualidade de vida: em busca do trânsito e do transporte sustentáveis. São Paulo: RCS Editora, 2007

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana / David Harvey; tradução Jeferson Camargo. – São Paulo : Martins Fontes – selo Martins, 2014.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 30

MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade / Ermínia Maricato: coordenação: Wanderley Loconte. – 7 ed. – São Paulo: Atual, 2004

ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2019.

ROLNIK, Raquel. Territórios em conflito: São Paulo: espaço, história e política. – São Paulo: Três Estrelas, 2017.

SANTOS, Ângela Moulin Simões Penalva. Política urbana no contexto federativo brasileiro: aspectos institucionais e financeiros – Rio de Janeiro : EdUERJ, 2017.

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos de personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Capitalismo e urbanização. 16 ed. 3ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2018.

Érika Silvana Saquetti Martins
Mestranda Direito UNINTER e Políticas Públicas UFPR. Especialista em Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral Anhanguera. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

Robson Martins
Doutorando em Direito. Mestre em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral e Direito Civil. Professor da Pós latu sensu da Uninter e ITE. Docente da ESMPU. Procurador da República.

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