Se costuma dizer que no Brasil, em termos de segurança jurídica, nem mesmo o passado é garantido. E as recentes idas e vindas da jurisprudência dos tribunais superiores em diversas matérias assim tem confirmado a velha máxima.
Ao tratar de questões relativas à saúde, entretanto (e em especial às questões de regulamentação do setor privado de saúde), o que se observa é um imbróglio ainda maior, potencializado não apenas por desrespeito à lei e aos contratos, mas também por decisões judiciais conflitantes, diametralmente opostas, em situações em que se espera um posicionamento uniforme, para o “bem” ou para o “mal”.
Complementando o cenário de “tempestade perfeita”, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que tem como objetivo legalmente definido1 a promoção e a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, de modo a contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país, tem agido em desconformidade com essa premissa.
Para além das situações vistas ao longo da última década, em que as decisões regulatórias pendem de maneira insofismável ao atendimento dos interesses das empresas de saúde em detrimento dos consumidores e beneficiários (melhor chamados de “usuários”) – estabelecendo regras em que o livre mercado atende unicamente a interesses comerciais (resultando em aumentos anuais em muito superiores à reposição inflacionária, sem qualquer demonstração de cálculos ou justificativas claras e transparentes, e na ausência de fiscalização quanto à não comercialização de planos de saúde individuais, que possuem regras de controle mais restritivas), a ANS resolve agora também atuar de maneira contrária à lei, com seu recente posicionamento a respeito do Rol de Procedimentos de cobertura obrigatória mínima.
Para entender o busílis, necessário compreender o embate existente atualmente no Tribunal Superior de Justiça, em que a 3ª e a 4ª turma tem firmado entendimentos irreconciliáveis com relação ao tema, tendo a 3ª Turma concluído que o Rol de Procedimentos é exemplificativo, não se exaurindo em si mesmo, permitindo assim o acesso a medicamentos e tratamentos que dele não constem, e a 4ª Turma seguindo a linha de declarar que o referido Rol é taxativo, não admitindo extensões interpretativas, em nome de “segurança jurídica” contratual.
Com a devida vênia, assumir este último entendimento é descaracterizar a existência mesma da razão de ser dos contratos de assistência suplementar em saúde. Primeiro, porque o que se tem por objeto de cobertura é o tratamento, e não o uso de um determinado método ou fármaco. E depois, porque a evolução das ciências da saúde é rápida, constante e incontornável, sendo desenvolvidos novos usos, métodos e tratamentos todos os dias. Negar tal fato é negar a realidade, em detrimento do consumidor.
A ANS possui competência para elaborar o rol de procedimentos em eventos em saúde, que constituirão referência BÁSICA para os fins do disposto na Lei 9.656/98, preconiza a já mencionada Lei 9.961/00 em seu artigo 4º. Todavia, não permite à Agência a adoção das medidas que tomou no final de fevereiro, ao atualizar o Rol de Procedimentos (competência sua) e indicá-lo como taxativo (extrapolando suas competências legais), agindo assim à margem da lei.
Assim o fez, a pretexto de compatibilizar o entendimento jurisprudencial defendido pela 4ª Turma do STJ, invadindo competência legislativa que não é sua, atropelando todas as regras relativas ao processo legislativo.
Algumas medidas poderiam ser tomadas a respeito da controvérsia sobre o Rol de Procedimentos: instar o STJ a pacificar a controvérsia a partir da definição por meio dos ritos repetitivos, ou chamar o Congresso Nacional à responsabilidade que lhe cabe, tornando a Lei mais clara e objetiva. Nunca, entretanto, se poderia recorrer ao uso de Resolução Normativa, que apenas escancara a opção da agência por defender um lado, e não por zelar pela equidade nas relações, regulamentando o mercado e permitindo o equilíbrio nas relações contratuais.
Não é por acaso que planos e operadoras de saúde ocupam historicamente os primeiros lugares no ranking da judicialização nos tribunais: com a adoção de medidas assim a ANS contribui para aumentar ainda mais a insegurança jurídica e a busca da resolução de conflitos pelo poder judiciário, perpetuando e agravando o problema.
Premissas econômicas questionáveis e opacas não podem nortear a definição sobre temas jurídicos de expressa relevância, e nem ignorar avanços da ciência.
Considerar como taxativo o rol de procedimentos, ao arrepio da lei e sem qualquer fundamentação adequada causa prejuízos irreparáveis justamente àqueles em estado de maior vulnerabilidade: pacientes que não podem esperar pela resolução de tecnicalidades para iniciar seus tratamentos.
A título de exemplo, observe-se aqui a questão do home care. O tratamento domiciliar ainda hoje é objeto de questionamento judicial, mesmo já tendo tido o seu entendimento pacificado em grande parte das cortes estaduais, como se nota a partir da transcrição das Súmulas abaixo:
SÚMULA 07 – TJ/PE: “É abusiva a exclusão contratual de assistência médico domiciliar (home care)”.
SÚMULA 12 – TJ/BA: “Havendo recomendação pelo médico responsável, considera-se abusiva a recusa do plano de saúde em custear tratamento home care, ainda que pautada na ausência de previsão contratual ou na existência de cláusula expressa de exclusão”.
SÚMULA 209 – TJ/RJ: “Enseja dano moral a indevida recusa de internação ou serviços hospitalares, inclusive home care, por parte do seguro saúde somente obtidos mediante decisão judicial”.
SÚMULA 90 – TJ/SP: “Havendo expressa indicação médica para a utilização dos serviços de home care, revela-se abusiva a cláusula de exclusão inserida na avença, que não pode prevalecer”.
SÚMULA 28 – TJ/PA: “Havendo expressa indicação médica para a utilização dos serviços de home care, revela-se abusiva a cláusula inserida no contrato que exclui a possibilidade da prestação deste serviço”.
Destaque-se que que mesmo que haja exclusão contratual para atendimento médico domiciliar e internamento domiciliar, essa exclusão não sobreviveria/sobrevive ao ordenamento pátrio, pois a recusa em autorizar o HOME CARE, mesmo que fosse respaldada em cláusula contratual, revelar-se-ia abusiva, pois esta cláusula causa prejuízo excessivo ao segurado e impede que o contrato atinja a finalidade para a qual foi pactuado; qual seja: assegurar a vida do segurado.
Importante ressaltar que a abusividade da cláusula contratual obstativa para a concessão do HOME CARE não necessita de vasta fundamentação, pois o próprio STJ já declarou em julgados essa abusividade e que isso não atinge o equilíbrio contratual, como se vê em julgado recente de 12/06/2018:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PLANO DE SAÚDE. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. ATENDIMENTO MÉDICO DOMICILIAR. CONVERSÃO. POSSIBILIDADE. HOME CARE. CLÁUSULA CONTRATUAL OBSTATIVA. ABUSIVIDADE.
3. É abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar como alternativa à internação hospitalar, visto que, da natureza do negócio firmado (arts. 423 e 424 do CC), há situações em que tal procedimento é altamente necessário para a recuperação do paciente sem comprometer o equilíbrio financeiro do plano considerado coletivamente.
(STJ. Processo: AgInt no AREsp 1185766 MS 2017/0264853-4. Órgão Julgador: T3 – 3ª turma. relator: ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julg.: 12/6/18)”
Os vícios formais são intransponíveis, e a ilegalidade é flagrante. Ironicamente, a resolução normativa e o novo entendimento têm data marcada para vigorar a partir de primeiro de abril. Um verdadeiro desrespeito aos usuários dos planos de saúde, ao processo legislativo, e um verdadeiro insulto ao Superior Tribunal de Justiça, arvorandose a ANS a decidir qual de suas Turmas tem o posicionamento correto. Aparentemente, os técnicos da Agência adquiriram novas competências, tanto legais quanto jurídicas, e nós, pobres mortais, sequer fomos informados.
Necessário, pois, em nome da segurança jurídica em saúde (matéria que nos é tão cara, urgente e necessária em tempos de pandemia) rever os atos, entendimentos e motivações jurídicas da ANS.
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1 Lei nº 9.961/00, Art. 3º.