Migalhas de Peso

Colaboração premiada e sua aptidão probatória

No caso específico da colaboração premiada, a confiabilidade das declarações do colaborador é fragilizada por uma questão lógica, qual seja, o seu desejo de obter o máximo de vantagens, o que, não raro, pode implicar na atribuição de responsabilidade aos coimputados.

17/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 12.850/13, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios de obtenção da prova, prevê no seu artigo 3º-A que o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos.

Em que pese seja considerado como negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, não se pode olvidar que, além da vedação de condenação proferida com base exclusivamente nos elementos constantes da delação, algumas medidas também não poderão ser decretadas ou proferidas exclusivamente com base nas palavras do delator. Isso porque o instituto não é imune de erros, como, aliás, não são os demais meios de obtenção de prova, todos falíveis e passíveis de malversação. No caso específico da colaboração premiada, a confiabilidade das declarações do colaborador é fragilizada por uma questão lógica, qual seja, o seu desejo de obter o máximo de vantagens, o que, não raro, pode implicar na atribuição de responsabilidade aos coimputados.

Nesse contexto, é inegável os avanços trazidos pelo “Pacote Anticrime” (lei 13.964/19) no que se refere ao Acordo de Colaboração Premiada, promovendo alterações substanciais na lei 12.850/13, criando novos mecanismos de “blindagem” ao instituto1, mitigando, destarte, a sua má utilização em prejuízo do sistema de justiça criminal e na busca pela verdade possível acerca do fato perscrutado. Sob tais premissas, o artigo 4º, § 16, da lei 12.850/13, estabelece o seguinte:

§ 16. Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador:

I - medidas cautelares reais ou pessoais;

II - recebimento de denúncia ou queixa-crime;

III - sentença condenatória”

Sobre o tema, vale destacar as lições de Gustavo Badaró mesmo antes das inovações promovidas pelo “Pacote Anticrime”2:

A título de conclusão, podem ser formulados os seguintes enunciados:

A regra do § 16 do art. 4º da lei 12.850/13 aplica-se a todo e qualquer regime jurídico que preveja a delação premiada.

O § 16 do art. 4º da lei 12.850/13, ao não admitir a condenação baseada exclusivamente nas declarações do delator, implica uma limitação ao livre convencimento, como técnica de prova legal negativa.

É insuficiente para o fim de corroboração exigido pelo § 16 do art. 4º da lei 12.850/13 que o elemento de confirmação de uma delação premiada seja outra delação premiada, de um diverso delator, ainda que ambas tenham conteúdo concordante.

Caso o juiz fundamente uma condenação apenas com base em declarações do delator, terá sido contrariado o § 16 do art. 4º da lei 12.850/13 (…).

Conforme já salientado, a regra que veda a condenação com base exclusivamente nas declarações do colaborador já era prevista na redação originária da lei 12.850/13, contudo, após a lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), foram incluídas também a vedação de medidas cautelares reais ou pessoais, bem como o recebimento de denúncia ou queixa-crime com fundamento apenas nas declarações do colaborador.

Como sabido, o recebimento da denúncia é o ato pelo qual o Magistrado inaugura a ação penal e, consequentemente, cita o acusado para responder à acusação, sendo certo que, contra este – acusado, quando do recebimento da denúncia, já se reveste todos os indícios de autoria e elementos aptos a qualificá-lo como denunciado.

Conforme previsão do Código de Processo Penal, considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.

Por esta razão, para que ocorra o recebimento da denúncia, não é crível que esta seja fundamentada exclusivamente com base nas declarações do colaborador, necessitando de indícios mínimos, corroborado por outros elementos de prova, ser o denunciado o autor da prática de eventual crime.

Cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal, antes mesmo do Pacote Anticrime entrar em vigor, já possuía entendimento consolidado no sentido de que depoimentos de réus colaboradores, sem provas mínimas a corroborarem a acusação, conduz à rejeição da denúncia por ausência de justa causa. Tal entendimento foi firmado no Inquérito 3.994/DF, de Relatoria do Min. Dias Toffoli, julgado em 18/12/17:

“(...) se os depoimentos do réu colaborador, sem outras provas minimamente consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação, também não podem autorizar a instauração da ação penal, por padecerem, parafraseando Vittorio Grevi, da mesma presunção relativa de falta de fidedignidade (...) a colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, tem aptidão para autorizar a deflagração da investigação preliminar, visando “adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória”. Essa, em verdade, constitui a sua verdadeira vocação probatória. Todavia, os depoimentos do colaborador premiado, sem outras provas idôneas de corroboração, não se revestem de densidade suficiente para lastrear um juízo positivo de admissibilidade da acusação (...)”

Por óbvio, como bem destacado pelo Min. Dias Toffoli, se as declarações do réu colaborador, sem outras provas minimamente consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação, também não podem autorizar a instauração da ação penal.

Recentemente, em 15/12/20, a 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, nos autos do Habeas Corpus 5004895-77.2020.4.03.61813, também determinou o trancamento da ação penal contra Mario Bianchini, da Queiroz Galvão, por suposta participação em esquema de corrupção nas obras da linha lilás do Metrô de São Paulo, porquanto, a denúncia teria sido baseada exclusivamente com declarações de um colaborador.

Como se sabe, não obstante os Tribunais Superiores, antes mesmo do Pacote Anticrime (lei 13.964/19), já possuíssem jurisprudência consolidada no que diz respeito à vedação de condenações e denúncias formuladas exclusivamente com base nas declarações do colaborador, bem como vasto entendimento doutrinário, cumpre trazer à baila que a alteração na lei 12.850/13 foi absolutamente importante e necessária, ao passo em que se evita que o colaborador preste declarações a qualquer custo, subvertendo a realidade dos fatos e, objetivando, consequentemente, os benefícios da delação.

Por meio de tal dispositivo, é possível concluir que o legislador teve a intenção de evitar que a colaboração premiada, por si só, servisse de standard probatório para demonstrar a existência do fumus commissi delict, encampando, desta forma, posicionamento já consolidado na doutrina e jurisprudência.

Como exposto anteriormente, a delação premiada não é meio de prova propriamente dito, mas, sim, meio de obtenção de prova, conforme previsão do artigo 3º-A, da lei 12.850/13, razão pela qual, através da delação, as Autoridades devem corroborar, ou seja, fortalecer as palavras do delator junto a outros meios idôneos de prova, como por exemplo, prova documental, testemunhal, pericial, entre outras.

Nesse sentido, Gustavo Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini4, ao tratarem de delação premiada no âmbito da lavagem de dinheiro (artigo 1º, § 5º, da lei 9.613/98), afirmam que as declarações do delator, para serem consideradas meios de prova, deverão encontrar amparo em outros elementos de prova existentes nos autos que corroborem seu conteúdo.

Desta forma, as palavras do colaborador devem ser sopesadas pelas Autoridades Públicas, tendo em vista que, isoladamente, não possuem o condão de comprovar que a pessoa delatada de fato tenha praticado algum ilícito penal, sendo necessário outros elementos de prova que, certamente, devem ser de cunho externo ao negócio jurídico processual pactuado entre o delator e as Autoridades.

Importante frisar, todavia, que, na prática, o contexto que envolve o instituto da colaboração premiada será, ao menos em regra, desfavorável aos investigados (delator ou delatado). Isto, pois, somente um conjunto probatório significativo pode dar ensejo à adoção da colaboração como um meio de defesa. Dizendo de outro modo, só vai haver a cooperação nas hipóteses em que o cenário probatório se mostrar juridicamente prejudicial ao colaborador. Com efeito, na maioria absoluta dos casos em que for formalizado o contrato colaborativo a persecução penal já vai ter coligido outras provas e elementos informativos relacionados ao fato perscrutado, não se limitando às declarações do colaborador.

Outro aspecto relevante e que não pode ser olvidado nesse estudo, se refere ao que denominamos de “diligências corroborativas”. Nos termos do novo artigo 3º-B, §4º, o acordo de colaboração premiada poderá ser precedido de instrução, quando houver necessidade de identificação ou complementação de seu objeto, dos fatos narrados, sua definição jurídica, relevância, utilidade e interesse público. Isso significa que em muitas situações a colaboração prestada não viabilizará a imediata identificação de um elemento probatório, mas servirá para orientar o caminho a ser trilhado pelas polícias judiciárias e Ministério Público.

Note-se que por se tratar de um “negócio jurídico” a colaboração deve atender aos interesses das duas partes, razão pela qual, os órgãos estatais também devem contribuir para a sua qualificação, afinal, se bem instruído o acordo, maiores são as chances da sua homologação. Nesse cenário, são fundamentais as denominadas “diligências corroborativas”, realizadas a partir das informações trazidas pelo colaborador e que servirão para qualificar o acordo, demonstrando, por meio de fontes externas e independentes, que as declarações do colaborador são verossímeis. Nesse diapasão, aliás, se posiciona a melhor doutrina:

(...) a colaboração precisa ser confirmada por elementos externos, a partir de uma exame que se projeta na identificação de uma prova independente, capaz de demonstrar e comprovar que a manifestação do cúmplice é verdadeira no que se refere a um corréu.5

(...) a corroboração constitui, deste modo, o complemento integrador da livre apreciação em relação a esta fonte probatória, devendo expressar-se na motivação para que a valoração possa considerar-se correta.6

Conclui-se, portanto, que o legislador, ao estabelecer o caráter da colaboração premiada como meio de obtenção de prova, estabeleceu como regra que a corroboração necessariamente esteja atrelada a outros elementos extrínsecos às declarações do colaborador, sendo certo que, se ausente tal previsão, não é possível a utilização do instituto negocial, sobretudo se levado em consideração o entendimento doutrinário, jurisprudencial e, por fim e não menos importante, a previsão do §16º, do artigo 4º, da Lei 12.850/13 incluído pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19).

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1 Vale lembrar que em sua redação original a Lei 12.850/13 já proibia a condenação de uma pessoa com base exclusivamente nas declarações do colaborador. Do mesmo modo, foi tipificada no seu artigo 19 a conduta de imputar falsamente, sob o pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas. Note-se que os dispositivos em questão servem de “blindagem” ao Acordo de Colaboração Premiada, mitigando sua malversação.

2 BADARÓ, Gustavo. “O Valor Probatório da Delação Premiada: sobre o § 16 do art. 4º da Lei nº 12.850/2013”. Disponível clicando aqui . Acesso em 01 de março de 2021.

3 3ª Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo/SP. Habeas Corpus 5004895-77.2020.4.03.6181. Relator Des. Federal Paulo Fontes. Acesso em 01 de março de 2021.

4 BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012 . 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp. 174-175

5 VASCONCELLOS, Vinicius. Colaboração Premiada no Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 293.

6 SEIÇA, Antônio A. M. O conhecimento probatório do co-arguido. Coimbra: Coimbra. Editora, 1999. p. 205.

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BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. Comentários à lei 9.613/98, com as alterações da lei 12.683/12 . 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, pp. 174-175.

CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.

SANNINI, Francisco. CABETTE, Eduardo. Colaboração Premiada como Técnica Especial de Investigação Criminal. Leme, SP. JH Mizuno, 2020.

Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 de fevereiro de 2021.

Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a lei 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 de fevereiro de 2021.

Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 3994/DF. Relator Min. Dias Toffoli, julgado em 18/12/2017.

Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Habeas Corpus 5004895-77.2020.4.03.6181. Relator Des. Federal Paulo Fontes. Acesso em 01 de março de 2021.

Francisco Sannini Neto
Delegado de polícia do Estado de São Paulo. Professor da pós-graduação da Unisal-Lorena e do Damásio Educacional. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Pós-graduado com especialização em Direito Público.

Leopoldo Gomes Moreira
Advogado. Presidente da Comissão OAB Jovem de Varginha/MG. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela PUC/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM. Sócio da banca Chalfun Advogados Associados.

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