Migalhas de Peso

A governança de dados na era da transformação digital dos serviços públicos

Na Era da Transformação Digital e da Sociedade da Informação, a Governança de Dados assume protagonismo como instrumento de Integridade Governamental e, portanto, merece tratamento acurado pela Administração Pública.

15/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

O termo “governança” tem sido cada vez mais difundido no âmbito das organizações, sejam elas públicas, sejam privadas, sejam do terceiro setor. Possui múltipla aplicação, mas pode assumir diferentes acepções de acordo com o contexto em que é inserido e do enfoque a ser considerado (MESSA, 2019).

No Brasil, especificamente no âmbito da Administração Pública Federal, o decreto 9.203, de 22 de novembro de 2017, estabelece, de forma mais ampla, a política de governança da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional. De acordo com a norma, a governança pública consiste em um “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade” (BRASIL, 2017).

Relativamente à proteção de dados pessoais, instituiu-se o conceito de governança de dados, ou governança digital, que pode ser definida como a estruturação dos processos e políticas internas com o objetivo de conferir proteção dos dados pessoais. Para tanto, são estabelecidas regras a serem aplicadas considerando a natureza e a finalidade do tratamento de dados, bem como a análise dos respectivos riscos e benefícios decorrentes.

A Governança de Dados é responsável por gerir os princípios de organização e controle de dados e informações. Trata-se, portanto, de um ramo da governança voltado especificamente para a seara da proteção de dados pessoais. O desiderato maior está intrinsecamente ligado ao da governança de maneira geral: ações alinhadas ao interesse público, com uma melhor e mais eficiente condução de políticas públicas e de prestação dos serviços à sociedade.

No Brasil, antes mesmo do advento da LGPD, o decreto 8.638, de 15 de janeiro de 2016, instituiu a Política de Governança Digital no âmbito dos órgãos e das entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional (BRASIL, 2016). Continuamente, para efetivar as diretrizes contidas no Decreto, foi elaborado um documento com os objetivos estratégicos, as metas, os indicadores e as iniciativas da Política de Governança Digital do Poder Executivo Federal, denominado Estratégia de Governança Digital (EGD), com o escopo de orientar e integrar as iniciativas de transformação digital dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, por meio de ações organizadas em três pilares fundamentais: acesso à informação, melhoria dos serviços públicos digitais e ampliação da participação social. Busca-se, portanto, aumentar a efetividade da geração de benefícios para a sociedade por meio da expansão do acesso às informações governamentais, da melhoria dos serviços públicos digitais e da ampliação da participação social.

A norma acima mencionada foi revogada pelo decreto 10.332, de 28 de abril de 2020, que instituiu a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. De acordo com o novo texto, os objetivos a serem alcançados, por meio da Estratégia de Governo Digital incluem: oferecer serviços públicos digitais simples e intuitivos, consolidados em plataforma única e com avaliação de satisfação disponível; conceder acesso amplo à informação e aos dados abertos governamentais, para possibilitar o exercício da cidadania e a inovação em tecnologias digitais; promover a integração e a interoperabilidade das bases de dados governamentais; promover políticas públicas baseadas em dados e evidências e em serviços preditivos e personalizados, com utilização de tecnologias emergentes; implementar a Lei Geral de Proteção de Dados, no âmbito do Governo federal, e garantir a segurança das plataformas de governo digital; disponibilizar a identificação digital ao cidadão; adotar tecnologia de processos e serviços governamentais em nuvem como parte da estrutura tecnológica dos serviços e setores da administração pública federal; otimizar as infraestruturas de tecnologia da informação e comunicação; e formar equipes de governo com competências digitais (BRASIL, 2020).

Um exemplo prático de uso da Governança de Dados pode ser verificado na implementação da plataforma de Análise de Dados para Administração Pública, denominada “GovData” (www.govdata.gov.br). Essa plataforma disponibiliza infraestrutura de armazenamento e hospedagem, permitindo o cruzamento de grandes volumes de dados, visando: 1) a utilização de ferramentas para análise e cruzamento de dados para geração de informações para a tomada de decisões; 2) o favorecimento da desburocratização por meio de acesso centralizado a informações de governo para simplificar a oferta de serviços públicos; 3) a ampliação da transparência permitindo a análise de contas públicas para combater fraudes; 4) a adoção de tecnologia de ponta no processamento de grande volume de dados com rápido tempo de resposta; 5) a viabilização da segurança e garantia de sigilo e individualização das bases de dados 6) a alavancagem da economicidade pelo uso compartilhado de infraestrutura e do consumo de dados para redução de custos.

Os principais ganhos comuns à maioria das organizações que adotam a Governança de Dados como parte de sua estrutura organizacional são: 1) mudança de cultura: dados e informações passam a ser reconhecidos como importantes ativos estratégicos na Administração Pública; 2) a gestão das operações de captura, armazenamento, proteção, planejamento, controle e garantia da qualidade dos ativos de dados é centralizada em uma única estrutura, permitindo a redução de custos e a otimização do uso dos recursos; 3) criação de uma cultura do uso de indicadores de processo, qualidade e desempenho de dados e informações: o objetivo é manter alinhados a Governança de Dados e a Gestão Pública; 4) conhecimento de dados e informações utilizados por meio da adoção de um vocabulário único sobre as definições dos dados: ampliação e melhoria da disseminação do conhecimento entre as pessoas – passagem do capital intelectual para o capital estrutural; 5) entendimento das principais necessidades de dados e informações da Administração Pública, a fim de definir o que realmente é importante em relação à utilização de dados e informações e estabelecer prioridades em relação às futuras implementações e mudanças; 6) redução da quantidade de informações redundantes; 7) estabelecimento de mecanismos formais de segurança para acesso e disponibilização de dados e informações; 8) total governança dos dados tratados pela Administração Pública.

Como se observa, a transformação digital é um caminho definitivo. De acordo com a EGD, a economia do futuro é digital e cresce a um ritmo 2,5 vezes superior aos demais setores, devendo representar US$ 23 trilhões em 2025 e, localmente, atingir 25% do PIB Brasileiro já em 2021.

A transformação digital vem ocorrendo em todo o mundo e alcançou a cada um de nós. Sobretudo após a pandemia do novo coronavírus (COVID-19), tornou-se emergencial a aceleração desse processo na Administração Pública, tendo em vista as medidas de isolamento recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e demais órgãos congêneres.

A Administração digital se justifica, ainda, por uma demanda social, haja vista a imperiosidade do atendimento de qualidade de forma a ampliar a confiança na atuação administrativa, e também por exigência democrática, uma vez que a estrutura digital permite um melhor acompanhamento da gestão pública, com fiscalização cidadã, proteção de dados pessoais e menor fragmentação da Administração Pública na interação com a sociedade (MESSA, 2019).

Especificamente na Administração Pública Federal, utilizou-se a nomenclatura “Governo Digital” em referência à transformação digital na esfera governamental. No que concerne aos serviços públicos, foram firmados planos digitais nas áreas de Previdência Social, Economia, Trabalho, Propriedade Intelectual, Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente, Infraestrutura, Energia, Vigilância Sanitária, Defesa e Justiça, o que demonstra a importância da governança de dados no mundo atual.

De acordo com o Decreto º 10.332/2020, a nova Estratégia de Governo Digital estima que, até o final do ano de 2022, sejam oferecidos digitalmente 100% dos mais de 3 mil serviços da União, todos disponíveis no portal gov.br. Contudo, a mencionada oferta de serviços públicos por meio digital deve vir acompanhada do respectivo desenvolvimento e implementação de medidas de segurança capazes de assegurar a adequada proteção dos dados pessoais que são necessariamente tratados pelos serviços ofertados. Inclusive, a OCDE recomendou expressamente, no ano de 2014, a implementação governamental de estratégias de segurança e gerenciamento de riscos para lidar com questões de privacidade digital, de forma a proporcionar a melhoria da eficiência e da confiabilidade nas relações da Administração com os cidadãos.

A oferta de serviços públicos digitais no Brasil, pela Administração Pública Federal (Direta e Indireta), pode ser visualizada no sítio https://www.gov.br/governodigital/pt-br/transformacao-digital/lista-servicos-digitais/servicos-digitais-2020 e contempla uma extensa gama de solicitações. Aplicativos disponíveis aos cidadãos e voltados ao acesso a sistemas e serviços gerenciados pelo Poder Público também podem ser encontrados nos repositórios para download em dispositivos móveis.

No entanto, em pesquisa realizada pelo InternetLab, verificou-se que vários aplicativos pedem permissões de acesso à dados de geolocalização que, quando vinculados a uma pessoa identificada ou identificável, são considerados dados pessoais. Outros, ainda, solicitam permissão de acesso a todas as contas do usuário, – de redes sociais ou não – cadastradas no dispositivo em que são instalados.

Diante disso, a pesquisa concluiu que o poder público não vem adotando boas práticas de segurança e proteção de dados pessoais no desenvolvimento desses sistemas, uma vez que adotam um tipo de permissão abrangente e não esclarecem para qual finalidade específica deve ser concedida determinada permissão, qual a política pública que está vinculada à coleta daquele dado, ou, ainda, a base legal que permite tal procedimento.

É necessário, por conseguinte, que a Administração Pública se revista de uma estrutura digital capaz de atender à demanda social e à exigência democrática cogentes, com o escopo permanente de promover uma vasta oferta de serviços públicos por meio eletrônico, um canal aberto de comunicação com os cidadãos, a transparência de seus atos, a possiblidade de fiscalização e participação popular, entre outros.

A transformação digital vem ocorrendo em todo o mundo e alcançou a cada um de nós. Todo esse processo de transformação digital deve vir acompanhado da adoção de boas práticas de segurança e proteção de dados pessoais, e que sejam envidados esforços para construir uma Administração Pública mais próxima da sociedade, numa democracia que não seja meramente representativa, mas que permita aos cidadãos uma maior interatividade com a atividade administrativa e seus processos deliberativos e decisórios.

_________

BRASIL, Decreto nº 8.638, de 15 de janeiro de 2016. Disponível aqui. . Acesso em: 20 mar. 2020.

_______. Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2020.

_______. Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2020.

_______. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2020.

_______. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de Governança Digital: Transformação Digital – cidadania e governo. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação. Brasília: MP, 2018.

MESSA, Ana Flávia. Transparência, Compliance e Práticas Anticorrupção na Administração Pública. São Paulo: Almedina, 2019.

ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

Davi Valdetaro Gomes Cavalieri
Procurador Federal, carreira da Advocacia-Geral da União (AGU). Ex-Procurador Municipal. Mestrando em Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito, pela FDRP/USP. Especialista em Direito Público.

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