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Embargos de declaração no HC 193.726: Uma análise à luz do prazo prescricional

Sem embargos do acerto ou não da decisão, pautando-se na hipótese da sua manutenção, as questões que incitam maiores discussões concernem a ocorrência ou não da prescrição da pretensão punitiva.

15/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

I. Introdução

Na data de 8/3/21, foi proferida decisão monocrática de relatoria do ministro Edson Fachin em face dos embargos de declaração opostos no habeas corpus 193.726, impetrado pela defesa do ex. presidente Luiz Inácio Lula da Silva, segundo a qual:

concedo a ordem de habeas corpus para declarar a incompetência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba para o processo e julgamento das ações penais n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (Triplex do Guarujá), 5021365- 32.2017.4.04.7000/PR (Sítio de Atibaia), 5063130-17.2018.4.04.7000/PR (sede do Instituto Lula) e 5044305-83.2020.4.04.7000/PR (doações ao Instituto Lula), determinando a remessa dos respectivos autos à Seção Judiciária do Distrito Federal. Declaro, como corolário e por força do disposto no art. 567 do Código de Processo Penal, a nulidade apenas dos atos decisórios praticados nas respectivas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias, devendo o juízo competente decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios.

Sem embargos do acerto ou não da decisão, pautando-se na hipótese da sua manutenção, as questões que incitam maiores discussões concernem a ocorrência ou não da prescrição da pretensão punitiva, ante a nulidade dos atos decisórios que interromperam o prazo prescricional, "inclusive o recebimento da denúncia", bem como a possibilidade de convalidação de tais atos pelo novo juízo competente.  

Primeiramente, cumpre destacar que a prescrição no Direito Penal se caracteriza pela perda do direito de punir do Estado, em virtude do lapso temporal transcorrido, com vistas a fornecer ao acusado uma maior segurança jurídica, de que será processado e julgado, – Prescrição da Pretensão Punitiva ("PPP") – bem como que execute a pena – Prescrição da Pretensão Executória ("PPE") – em tempo razoável.  

A PPP é aplicada com base na pena máxima em abstrato fixada, já que antecede ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, acarretando, assim, a extinção de todos os efeitos penais e extrapenais. Por sua vez, a PPE pauta-se na pena aplicada de forma concreta, cujo termo inicial é o trânsito em julgado da condenação, excluindo tão somente os efeitos penais primários.

Em ambas as espécies de prescrição, a consequência para a ineficiência do Estado que deixa transcorrer in albis o prazo1 é a extinção da punibilidade do acusado, a teor do quanto exposto no artigo 107, IV, do Código Penal.

O Código Penal encarregou-se de regulamentar os procedimentos aplicáveis a prescrição, tais como termo inicial (art.109, CP) da sua ocorrência, as hipóteses de interrupção (art.117, CP) e suspensão (art.116, CP) do lapso prescricional, bem como eventuais peculiaridades (art.113, 115, CP) aplicadas à luz do caso concreto.

Nota-se, portanto, que a prescrição é um mecanismo de segurança jurídica do acusado, para que este seja processado em tempo razoável, bem como visa afastar a ineficiência do Estado que posterga o cumprimento da tutela penal.

Feita essas considerações iniciais e adentrando aos processos que originaram a decisão proferida nos Embargos de Declaração no Habeas Corpus n. 193.726, cumpre destacar que:

(i) As três ações mencionadas (Ação do sítio de Atibaia; tríplex do Guarujá; Doações do Instituto Lula) investigam supostos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro ocorridos entre os anos de 2004 e 2014;

(ii) o quantum aplicado com base nas penas máximas - crimes de corrupção passiva2 e lavagem de capitais3 - seria de 16 anos, nos termos do artigo 109, II, do Código Penal;

(iii) como o ex-Presidente tem mais de 70 (setenta) anos, a prescrição deverá ser reduzida da metade, a teor do artigo 115 do Código Penal;

(iv) A Prescrição da Pretensão Punitiva totalizaria 8 (oito) anos, assim os crimes prescreveriam entre os anos de 2012 e 2022.

Assim, ainda que se considere o novo recebimento da denúncia pelo juiz competente em breve, a grande maioria dos crimes estariam prescritos. Ocorre, pois, que a questão é mais tormentosa e deve ser analisada à luz das causas interruptivas da prescrição, como a decisão que recebe a denúncia, bem como a possibilidade de sua convalidação.

II.  Questões suscitadas:

O prazo prescricional foi interrompido?

Sem embargos da expressa manifestação na r.decisão em que o ministro declarou "a nulidade apenas dos atos decisórios praticados nas respectivas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias", é digno de incoerência jurídica pensarmos que em um processo declarado nulo, as decisões proferidas possam produzir algum efeito.

Assim, sendo o ato de recebimento da denúncia o primeiro a acarretar uma possível interrupção do prazo prescricional, a nulidade do processo acarreta, de forma consequente e lógica, a impossibilidade de a presente decisão gerar qualquer feito.

Nesse sentido, foram colacionados alguns julgados do STJ que tratam do tema, reafirmando a impossibilidade de interrupção do prazo prescricional em face de decisão/ acordão interruptivo anulado:  

PENAL E ROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRESCRIÇÃO. PECULATO E ESTELIONATO. ACÓRDÃO CONDENATÓRIO POSTERIORMENTE ANULADO. INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. Uma  vez  declarada  a  nulidade  do  acórdão  condenatório,  não há falar-se   em  produção  de  efeitos  dessa  decisão  para  fins  de interrupção da prescrição. 2.  Recebida  a  denúncia  em  4/5/2000,  com  prolação  de  acórdão condenatório  apenas  no  dia  10/11/2015,  constata-se o decurso do lapso   temporal   superior   aos   12   anos   necessários  para  o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva quanto aos crimes de peculato e estelionato. 3. Habeas corpus concedido para reconhecer a prescrição da pretensão punitiva,  com  a  consequente extinção da punibilidade, com relação aos crimes de peculato e estelionato. 4

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2º, I E II, DO CÓDIGO PENAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA ANULADA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. REFORMATIO IN PEJUS. NOVA SENTENÇA PROFERIDA. PRESCRIÇÃO. I - A sentença penal condenatória anulada não interrompe a prescrição. (Precedentes do STJ e do STF.) II - Ressalvadas as situações excepcionais como a referente à soberania do Tribunal do Júri, quanto aos veredictos, em regra, a pena estabelecida, e não impugnada pela acusação, não pode ser majorada se a sentença vem a ser anulada. (Precedentes). III - Tendo sido o paciente condenado a seis anos e oito meses de reclusão, e sendo o intervalo de tempo entre o recebimento da denúncia e a r. sentença  superior a doze anos, deve ser declarada, com fundamento no art. 109, III, e 110, § 1º, ambos do Código Penal, a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. Ordem concedida. 5

Nota-se, portanto, a impossibilidade de a decisão declarada nula produzir quaisquer efeitos, tais como a interrupção do prazo prescricional.

Há a possibilidade de convalidação da decisão que recebeu a denúncia?

Cumpre destacar que no processo penal vige o princípio da convalidação, segundo o qual, a prática de um ato inicialmente defeituoso, poderá ser convalidado, acarretando, assim, a supressão do vício inicial que o maculou.

No caso em questão, a dúvida gira em torno da possibilidade ou não de o novo juiz competente convalidar os atos decisórios proferido pelo juiz incompetente e, em caso positivo, a referida decisão teria natureza declaratória ou constitutiva.

Pautando-se em julgados do STF, bem como do STJ, nota-se que há a possibilidade de ratificação pelo juízo competente inclusive quanto aos atos decisórios, nesse sentido:

HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. RATIFICAÇÃO. PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA. INQUÉRITO NO ÂMBITO DO STF. LEI 8.038/90. 1. "Tanto a denúncia quanto o seu recebimento emanados de autoridades incompetentes rationae materiae são ratificáveis no juízo competente". Precedentes.  (…) 6

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. ART. 90 DA LEI 8.666/93. PRESCRIÇÃO. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA POR JUÍZO RELATIVAMENTE INCOMPETENTE. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. OCORRÊNCIA. CONVALIDAÇÃO DO ATO PELO JUÍZO COMPETENTE. NATUREZA DECLARATÓRIA. INTERROGATÓRIO COMO PRIMEIRO ATO DO PROCESSO. POSSIBILIDADE. PROCEDIMENTO ESPECIAL. ART. 104 DA LEI 8.666/93 C.C. ART. 394, §2.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO DESPROVIDO. 1. Tratando-se de incompetência relativa, o exame da prescrição da pretensão punitiva deve considerar o recebimento da denúncia realizado pelo Juízo incompetente, e não a convalidação posterior do Juízo que detém competência territorial, uma vez que este último ato possui natureza declarativa, prestando-se unicamente a confirmar a validade do primeiro. Em outros termos: pelo princípio da convalidação, o recebimento da denúncia por parte de Juízo territorialmente incompetente tem o condão de interromper o prazo prescricional. 2. No caso, não transcorreu o prazo prescricional de 08 anos (art. 109, inciso IV, do Código Penal), pois os fatos ocorreram, em tese, em dezembro de 2001 e o recebimento da denúncia aconteceu em 22 de julho de 2009. 3. Segundo regra contida no art. 394, § 2º, do Código de Processo Penal, o procedimento comum será aplicado no julgamento de todos os crimes, salvo disposições em contrário do próprio Código de Processo Penal ou de lei especial. Logo, se para o julgamento dos delitos disciplinados na lei 8.666/93 há rito próprio, no qual o interrogatório inaugura a instrução probatória, é de se afastar o rito ordinário em tais casos, em razão da especialidade. 4. Recurso desprovido.7

Além da possibilidade da ratificação dos atos decisórios pelo juízo competente, o julgado colacionado do STJ é claro ao preconizar que tal decisão terá efeitos declaratórios, retroagindo, assim, a data em que a decisão foi originalmente proferida e, de forma consequente, acarretaria a interrupção do prazo prescricional.

III. Conclusão

Em virtude do exposto, pautando-se em julgados anteriores proferidos no âmbito dos tribunais superiores, concluímos que (i) a nulidade do processo ante a incompetência do juízo acarreta de forma consequente a nulidade da decisão que recebe a denúncia, não havendo, assim, que se falar em interrupção do prazo prescricional; porém, (ii) o novo juiz competente poderá convalidar a decisão, cujos efeitos serão declaratórios, retroagindo a data em que foi proferida pelo juízo originário, ocasionando, assim, a interrupção do prazo prescricional e consequente prosseguimento dos processos.  

Independente das conclusões acima expostas, fato é que a questão é tormentosa e de alta relevância jurídica e política, restando aguardar os próximos capítulos da história dos nossos tribunais para ver o lado que nossa jurisprudência irá trilhar.

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1- Em que pese a prescrição seja regra geral aplicável no âmbito do Direito Penal, fato é que a Constituição Federal elencou crimes que, em virtude da sua gravidade, bem como da importância do bem jurídico protegido, são imprescritíveis. Nesse sentido cabe citar a prática de racismo, bem como ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, a teor do artigo 5º, XLII , XLIV, CF. 

2- Corrupção passiva - Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

3- Lavagem de capitais - Art. 1 - Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.    

4- HC 353882 / SP; Relator(a) ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ (1158); Relator(a) p/ Acórdão; ministro NEFI CORDEIRO (1159); Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA, j. em 22/05/2018.

5- HC 30535 / PR; Relator(a) ministro FELIX FISCHER (1109) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA, j. em 16/12/2003.

6- STF, HC 83006 / SP - SÃO PAULO, Relatora: Min. ELLEN GRACIE, j em 18/06/2003.

7- RHC 40514 /MG; Relator(a) ministra LAURITA VAZ (1120); Órgão Julgador T5 – QUINTA; TURMA, j em 08/05/2014.

Laíse Souza Cestari
Analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo - Área Procuradoria Criminal. Mestre em Direito Civil pela FDUSP.

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