Migalhas de Peso

O controle jurisdicional de legalidade da oferta de acordo de não persecução penal pelo Ministério Público

O controle de legalidade pela jurisdição sobre a atuação do Ministério Público nessa fase não retira do imputado o seu protagonismo na negociação. Ao contrário, reforça que na justiça penal negocial a atuação do Ministério Público não se dá como autoridade, mas, sim, como parte.

12/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

O acordo de não persecução penal (ou “ANPP”) foi um dos institutos inseridos na legislação processual penal brasileira com a reforma parcial promovida pela lei 13.964/19. O objetivo é o de evitar a instauração de processo nos casos em que o Ministério Público e o imputado chegarem a um acordo quanto à continuidade da persecução penal, deixando a acusação de oferecer denúncia — mesmo presentes as condições da ação e pressupostos processuais — e, em troca, o imputado cumpre as condições ajustadas entre as partes, proporcionais e compatíveis com a infração imputada, definidas a partir de rol não taxativo previsto em lei.

Da leitura do art. 28-A do CPP, em sua redação atual, percebe-se que o instituto tem natureza dúplice: ao mesmo tempo que constitui um benefício processual, inserido no contexto das medidas despenalizadoras, difundidas principalmente a partir dos benefícios da lei 9.099/95, também possui inequívoca natureza de acordo, estando o ANPP no seio da justiça penal negocial. Em outras palavras, o ANPP não pode ser limitado a uma espécie de “suspensão condicional do processo qualificada”, havendo no ANPP um componente negocial adicional.

Na suspensão condicional do processo, a lei estabeleceu a possibilidade de evitar o prosseguimento de um processo criminal a partir do cumprimento de condições obrigatórias, durante um período de prova por prazo pré-estabelecido. É menos acordo e mais termo de adesão, com reduzida margem de negociação entre as partes. Nesses termos, o Ministério Público não se coloca como parte, mas como autoridade que concede ao acusado um benefício — ainda que não tenha discricionariedade para tanto1, visto que não há margem para negociação, exceto para suplicar eventual redução de exigência de alguma das condições obrigatórias.

Essa não é a realidade do ANPP. Ainda que o art. 28-A estabeleça algumas condições, não o faz em numerus clausus. A própria cabeça do artigo estabelece que as condições ali previstas podem ser ajustadas isolada ou cumulativamente, havendo no inciso V a previsão de qualquer condição proporcional e compatível com a infração imputada. A proposta feita pelo Ministério Público não pode ser um simples “é pegar ou largar” empurrado ao imputado. O texto da norma prevê que as condições a serem cumpridas devem ser ajustadas, isso é, objeto de discussão e concordância numa relação horizontal entre partes — ou, no mínimo, menos verticalizada que a relação autoridade-réu.

Dessa maior abertura estabelecida legalmente ao ANPP, poder-se-ia chegar a duas percepções equivocadas.

Primeiro, diante da aplicação do ANPP a crimes mais graves do que aqueles que admitem suspensão condicional do processo (estes, pena mínima de até um ano; aqueles, pena mínima de até quatro anos), poder-se-ia concluir que o benefício acordado entre as partes no ANPP não poderia superar o benefício concedido ao imputado no sursis processual. Não há qualquer previsão legal nesse sentido. O ANPP foi criado mais de duas décadas depois da suspensão condicional do processo, após a oportunidade de diagnosticar a prática desses acordos no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Tendo a oportunidade de estabelecer condições obrigatórias, o legislador caminhou em sentido contrário, rumo às práticas negociais no processo penal. Desse modo, a única limitação que se impõe ao ANPP é a impossibilidade de sua celebração nos casos que admitem transação penal (art. 76, Lei n.º 9.099). Em cabendo tanto a celebração de ANPP quanto de suspensão condicional do processo, estando o imputado disposto a confessar a prática da infração — o que nem sempre será o caso —, é possível que as partes ajustem os termos de ANPP, somente se impondo aos limites estreitos da suspensão condicional caso o acordo não evolua. Apesar de suas aparentes similitudes, como se vê, trata-se de institutos distintos, não se podendo querer aplicar automaticamente ao ANPP toda a jurisprudência desenvolvida quanto à prática da suspensão condicional do processo.

Segundo, e mais importante: em que pese a sua natureza de acordo e as suas diferenças com a suspensão condicional do processo, não se pode concluir haver qualquer discricionariedade por parte do Ministério Público na propositura do acordo. Ainda que não se possa falar propriamente em um direito público subjetivo do imputado a uma proposta de ANPP, também não há como se reconhecer qualquer discricionariedade ampla ao órgão oficial da acusação no processo penal. Muito se fala — inclusive na Exposição de Motivos do “Pacote Anticrime”, que deu origem à lei 13.964/192 — na mitigação do sistema da obrigatoriedade da ação penal a partir dos modelos de justiça penal negocial. Essa suposta mitigação, contudo, não resulta em um sistema de livre oportunidade e conveniência. Como qualquer agente estatal, o órgão ministerial é regido pela garantia de legalidade (art. 37, Constituição), tendo a sua atuação vinculada às disposições legais3. Em outras palavras, do mesmo modo que o MP não pode promover o arquivamento nos casos em que estiverem reunidos os requisitos para propositura da ação penal, também não pode deixar de propor acordo de não persecução penal quando os requisitos legais para a formação de uma proposta estiverem presentes4. Não há liberalidade nessa atuação, tratando-se de um poder-dever do Ministério Público a oferta de alguma proposta de ANPP, proporcional e compatível com a infração imputada, uma vez preenchidos os requisitos legais.

Quanto à atuação jurisdicional, o CPP prevê a necessidade de homologação do ANPP por parte do magistrado, devendo-se verificar não apenas a voluntariedade do acordo (art. 28-A, § 4.º), como também a adequação das propostas e condições ajustadas, não podendo ser insuficientes nem tampouco abusivas (art. 28-A, § 5.º). Essa verificação pelo juiz é obrigatória e independe de qualquer provocação pelas partes, sendo obrigatória no rito do ANPP instituído por lei. Caso o juiz entenda por não homologar o acordo, deve devolver ao Ministério Público e à defesa para nova negociação (art. 28-A, § 5.º), cabendo a continuidade das investigações ou o oferecimento de ação penal apenas quando não for possível chegar a algum ajuste adequado entre as partes (art. 28-A, §§ 7.º e 8.º).

A jurisdição não tem a possibilidade de se imiscuir no acordo, sendo esse um negócio jurídico processual entre partes. Contudo, diante da necessidade de homologação, é possível que o juiz analise os termos acordados, a fim de verificar se cumprem o requisito da legalidade. É certo que o juízo, portanto, controla a legalidade na fase de celebração do ANPP. Defende-se que deve também controlar a legalidade na fase anterior, de formação da proposta.

Tratando-se a formulação de proposta do ANPP de poder-dever do Ministério Público, eventual não oferta de proposta deve ser motivada e apresentada ao imputado e também ao juízo. Neste caso, o CPP faculta ao imputado a possibilidade de remessa dos autos à instância revisional do Ministério Público, na forma do art. 28 do CPP (art. 28-A, § 14).

Há, nesse ponto, uma importante questão de direito intertemporal. O § 14 do art. 28-A remete ao art. 28 do CPP, que, em sua redação dada pela lei 13.964/19, prevê a possibilidade de revisão da atuação do membro do Ministério Público pela instância de revisão ministerial. Havendo sido suspensa a eficácia do art.28 pela decisão em Medida Cautelar nos autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 pelo STF, resta a dúvida se a remissão contida no § 14 do art. 28-A pode se referir ao texto com eficácia suspensa ou se deve remeter à redação anterior (atualmente vigente) do art. 28 do CPP. Na redação anterior, não se falava em pedido de revisão à instância revisional do MP, mas sim na possibilidade de o juízo remeter os autos ao Procurador Geral do Ministério Público nos casos em que discordar da opinio delicti. Está-se, portanto, diante de dois modelos distintos de atuação: uma, voluntária, promovida pela parte interessada na revisão dos atos do membro do Ministério Público; outra, de ofício, realizada pelo juízo no controle da legalidade da atuação ministerial.

Ainda que o art. 28 tenha sido reformado pela lei 13.964/19 — e apesar da suspensão de eficácia determinada pelo STF —, entende-se que o controle de legalidade da atuação ministerial é dever do juízo, independentemente de provocação por parte do interessado. É dever dos magistrados, nos termos do inciso I do art. 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n.º 35/1979) “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”. Desse modo, não há que se falar em excesso ou mesmo em violação do princípio dispositivo — princípio reitor de um sistema processual acusatório — na atuação de ofício do magistrado para assegurar o cumprimento da lei no processo. Este dever se traduz na necessidade de avaliar o cumprimento do poder-dever atribuído ao membro do Ministério Público de iniciar as tratativas de acordo de persecução penal com o imputado nos casos em que estiverem presentes os requisitos legais.

Nesses casos, caberá ao juízo, uma vez percebendo-se o cabimento de ANPP e a ausência de sua propositura pelo Ministério Público, intimar a acusação para que ofereça proposta ou decline os motivos pelos quais entende incabível a sua oferta. Nessas circunstâncias — devendo-se buscar sempre ouvir o imputado, em homenagem à garantia de contraditório —, em não havendo justificativa pelo Ministério Público ou, em a considerando insuficiente, deverá o juízo remeter os autos à instância de revisão ministerial — ou ao Procurador Geral, caso a eficácia da nova redação do art. 28 siga suspensa —, a fim de que seja verificada a possibilidade ou não de celebração de acordo.

Com o intuito de assegurar às partes o seu devido papel no processo, o que cabe ao juízo é tão somente a verificação de legalidade da atuação ministerial. Tratando-se o acordo de não persecução penal de um negócio jurídico processual entre partes, não poderá, sob hipótese alguma, o magistrado fazer as vezes do órgão acusatório, estabelecendo ele próprio condições e/ou benefícios ao imputado, ou mesmo determinando a alteração de alguma cláusula ajustada entre as partes.

Com isso espera-se conferir maior racionalidade aos acordos de não persecução penal, reforçando o seu caráter negocial e conferindo maior participação do imputado na negociação das condições a serem ajustadas. O controle de legalidade pela jurisdição sobre a atuação do Ministério Público nessa fase não retira do imputado o seu protagonismo na negociação. Ao contrário, reforça que na justiça penal negocial a atuação do Ministério Público não se dá como autoridade, mas, sim, como parte.
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1 A jurisprudência consagrou o entendimento de que é poder-dever do Ministério Público oferecer proposta de sursis processual quando o acusado preencher os requisitos legais.

2 BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. EM 00014/2019 MJSP. 31 jan. 2019.

3 “O MP está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos — factuais e jurídicos, substantivos e processuais — tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes. Não há pois lugar para qualquer juízo de «oportunidade» sobre a promoção e prossecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o MP [...] A actividade do MP desenvolve-se, em suma, sob o signo da estrita vinculação à lei (daí o falar-se em princípio da legalidade) e não segundo considerações de oportunidade de qualquer ordem, v.g. política (raison d’État) ou financeira (custas).” FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974. reimp. 2004. p. 126-127.

4 Não se analisa nesta oportunidade como se devem dar os acordos de não persecução penal nos casos de ação penal de iniciativa privada, o que será objeto de reflexão futura.

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Guilherme Brenner Lucchesi
Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre pela Cornell Law School (EUA). Attorney-at-law inscrito no New York State Bar. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

Marlus H. Arns de Oliveira
Doutor em Direito. Advogado do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados.

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