Há pouco mais de um ano a população mundial enfrenta uma guerra impensável. Sem estrondos, sem sangue corrente, um vírus perverso, de forma silenciosa, dizima parte do planeta tomando o universal e invisível ar de todos nós.
- Enganou-se quem concluiu que seria essa a única incoerência dessa pandemia.
De letalidade assombrosa, a maldita Covid-19 mascara rostos ao mesmo tempo que desnuda sem pudor as discrepâncias que comprometem a soberba racionalidade humana.
O massacre dessa inexplicável roleta russa do novo coronavírus, condena corpos e contamina lares com dor, vazio e angústia, mas a piedade não se dissemina.
A compaixão que ensina a enxergar o outro, a olhar para o lado e para fora , não se manifesta. A solidão sepulta a solidariedade. Os olhares estão frios e só se viram para dentro.
A dolorosa perda da liberdade acalentada pelo alívio do cuidado, tem o peso e a revolta de uma punição injusta.
As alternativas de manutenção de normalidade são compradas por afagos do consumismo delivery. Mantém-se a mesa farta às custas do trabalho de quem não tem a opção de se recolher sem lhes doer o estômago.
Há aqueles que sequer tem escolha. Seu ofício, condenado como lugar de disseminação virótica não possui versão home office. A corda arrebenta nos pontos fracos e dar-lhes a linha de sutura parece mais caro que os altos juros imunes a tragédias e misérias.
A preservação da saúde que justifica as necessárias delimitações de espaço e restrições públicas convive com trens e ônibus lotados de gente cuja sanidade inexplicavelmente é menos relevante.
Enquanto a esperança é redescoberta sob a forma da injeção portadora de imunidade e resistência, a falta de fé ganha anticorpos ferrenhos. Os que insistem convencer que tudo é mentira, são os mesmos que aconselham a não acreditar em nada.
A falta de lucidez transborda evidências que é na coerência humana que se identifica a mais incontrolável e mórbida das mutações.