Migalhas de Peso

Instrumento que evita contradições na iminência de ser julgado

Arbitrariedades em decisões poderiam ser evitadas caso o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas fosse respeitado pelo TJ/SP.

4/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Está em trâmite perante a Turma Especial Criminal do TJ/SP, desde 2018, um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) - instrumento que tem como objetivo evitar que decisões jurídicas contraditórias sejam proferidas dentro de um mesmo tribunal, mas todo o tempo e dinheiro investido em ao menos três sessões presenciais e duas sessões virtuais (além dos trabalhos executados fora das sessões) pode ser desperdiçado, caso não haja uma definição firme do tema.

A (tentativa de) aplicação do instrumento busca uniformizar a interpretação sobre a natureza jurídica da sentença que concede a progressão de regime prisional. Antes de nos aprofundarmos no desenrolar do IRDR, algumas breves explicações sobre o sistema progressivo de pena serão feitas.

Se determinada sentença de privação de liberdade impõe à pessoa condenada o regime inicial fechado de cumprimento de pena, ela deverá preencher dois requisitos para progredir de regime:

1. Um de caráter subjetivo – bom comportamento: verificado pela ausência de faltas disciplinares ou, caso elas existam, pela sua reabilitação;

2. Um de caráter objetivo – cumprimento de determinado lapso temporal1: antes da lei 13.964/2019 eram frações que variavam de 1/8 a 3/5; agora, além da fração de 1/8, são porcentagens que variam de 16 a 70%.

Verificado o preenchimento destes requisitos, o Poder Judiciário deverá conceder a progressão para o regime intermediário e, novamente, a pessoa deve manter seu bom comportamento e cumprir aquela mesma fração – do restante da pena – para poder pleitear nova progressão.

Ilustrando com uma situação hipotética: Ana é condenada a uma pena de seis anos de reclusão em regime inicial fechado, por roubo simples, cometido antes de 23/01/2020. Durante todo o cumprimento de sua pena, ela mantém comportamento exemplar (nenhum cometimento de falta disciplinar), de forma que tem o requisito subjetivo preenchido desde o primeiro dia em que começou a cumprir sua pena.

Neste cenário, o requisito objetivo que deverá ser preenchido é o cumprimento da fração de 1/6 da sua pena. Assim, ela fará jus à primeira progressão quando cumprir os primeiros doze meses de sua reprimenda (1/6 de seis anos) e, posteriormente, terá direito à nova progressão após cumprir mais dez meses (1/6 de cinco anos, que é o saldo da pena após o primeiro marco temporal ter sido atingido).

Apesar do atual avanço tecnológico, os sistemas das varas de execuções ainda não são automatizados e, às vezes, mesmo com o preenchimento dos requisitos legais, pode haver demora para que a análise da progressão seja feita, resultando na permanência da pessoa por mais tempo no regime mais severo, mesmo que ela não tenha dado causa à demora.

Embora as Cortes Superiores entendam, há muito, que a sentença que concede a progressão de regime tem natureza declaratória, isto é, apenas certifica que determinada situação jurídica já existia desde algum momento anterior, o TJ/SP não tinha esse entendimento pacificado, ao menos até recentemente, com parte da Magistratura (de primeiro e segundo graus) entendendo pela sua natureza constitutiva: apenas na data da sentença que concedesse a progressão de regime que nasceria esta situação jurídica.

Para ilustrar as consequências da adoção das duas naturezas distintas, sigamos com o exemplo de Ana, imaginando que ela tenha iniciado o cumprimento de sua pena em 1º de janeiro de 2018, com o primeiro pedido de progressão tendo sido feito em 31 de dezembro de 2018 e sentenciado em 30 de junho de 2019.

Aplicando o entendimento do caráter declaratório, o prejuízo suportado por Ana será sua permanência em regime mais gravoso do que deveria estar por – pelo menos2 – seis meses. No entanto, a contagem de tempo para sua nova progressão considerará a data-base de quando ela preencheu os requisitos, isto é, 31 de dezembro de 2018.

Desta forma, quatro meses depois de proferida a sentença, em 31 de outubro de 2019, poderá pleitear progressão para o regime aberto (seis meses do atraso do judiciário somados aos novos quatro meses, totalizando os dez meses que são o 1/6 de cinco anos, saldo de pena a contar da data-base).

Por outro lado, caso se aplique interpretação já superada de que a natureza da sentença tem caráter constitutivo, a nova contagem se iniciará na data em que for proferida a sentença. No exemplo, será considerado o saldo de pena a cumprir de quatro anos e seis meses. Assim, além do atraso de seis meses, será somado um período extra de nove meses (1/6 do novo saldo), totalizando quinze meses para que o novo lapso seja atingido – com cinco meses de atraso em relação ao cálculo anterior.

Ao invés de poder pedir a progressão para o regime aberto em 31 de outubro de 2019, Ana terá que esperar até 31 de março de 2020 para fazer o pedido.

Assim, uma situação jurídica idêntica poderia ser interpretada de duas formas muito diferentes, gerando insegurança jurídica e a sensação de que a prestação jurisdicional dependeria de ter sorte em uma “loteria”: a depender de quem analisasse o pedido (fosse em primeiro ou em segundo grau), o resultado seria diverso.

Por conta desta falta de consenso que o IRDR foi proposto.

O mérito do IRDR foi julgado em agosto de 2019, após um início de tramitação processual sem controvérsias, com parecer favorável do Ministério Público e, ainda, contando com a Defensoria Pública Estadual como amicus curiae para reforçar a necessidade de aplicação do entendimento das Cortes Superiores no TJ/SP. Ficou sumulado que “[p]or maioria de votos, fixaram como tese jurídica do presente Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas a natureza declaratória” (fl. 300), sem que fosse publicado acórdão, naquela ocasião, com nova sessão para a deliberação de ementa agendada para 7/11/19.

Nesta ocasião, foram feitos questionamentos acerca de nulidades por parte do MP – representado por membro diferente dos que peticionaram anteriormente e, agora, discordando do pedido feito. Estes questionamentos não foram acolhidos.

Conforme súmula do novo julgamento, “deliberou-se que a sessão permanecesse restrita à aprovação da proposta de ementa (...), aprovada por espelhar a tese jurídica efetivamente julgada na sessão anterior” (fls. 323/324), isto é, de acordo com o que havia sido decidido três meses antes.

O acórdão lavrado pelo então Relator Péricles Piza, aposentado no fim de 2020, apresentou a seguinte tese jurídica em sua ementa:

“A decisão que defere a progressão de regime tem natureza meramente declaratória. O lapso temporal para aquisição de benefícios deve ser a data em que foi efetivamente alcançado o requisito objetivo para a concessão da benesse. Deferido o direito de progressão, o lapso inicial para contagem deve retroagir ao tempo que o reeducando alcançou o direito à progressão. Orientação do STF e STJ.” (fl. 326)

Também foram sanadas dúvidas que surgiram na sessão de agosto de 2019:

“(...) mesmo que precedida de devida judicialização não pode o sujeito arcar pessoalmente com a inércia e delonga estatal na avaliação de seu pedido, com vistas, ainda, ao princípio constitucional da duração razoável do processo. (...)

Em sendo assim, a data-base para a progressão de regime deve ser a do preenchimento efetivo dos requisitos legais, tendo a decisão de seu deferimento natureza declaratória, não devendo servir de supedâneo para fixação de marco diverso a morosidade estatal, tampouco, eventuais pedidos de exames criminológicos feitos pelo magistrado de execução, com base na supracitada jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Cumpre pontuar, ainda, ser a uniformização da jurisprudência nacional o objetivo primordial do novo CPC, visando garantir a segurança jurídica e a isonomia, corolários do Estado Democrático de Direito.” (fls. 333/335).

Após a publicação do acórdão, foram opostos embargos de declaração pelo MP e foi designada sessão para “apenas e tão-somente o julgamento dos embargos” (fl. 62 do apenso dos Embargos de Declaração).

Apesar desta nova sessão ter acontecido apenas e tão somente para julgar os embargos opostos pelo MP, que foram rejeitados, foi também deliberado que “a redação da tese ficou por conta do voto do e. Des. Antonio Sérgio Coelho de Oliveira” (fl. 130 ED), estabelecendo “a seguinte redação para o enunciado do tema” (fl. 179 ED):

“A decisão que defere a progressão de regime tem natureza declaratória, e não constitutiva. O termo inicial para a progressão de regime deverá ser a data em que preenchidos os requisitos objetivo e subjetivo descritos no art. 112 da lei de Execução Penal, e não a data em que efetivamente foi deferida a progressão. Importante ressaltar que referida data deverá ser definida de forma casuística, fixando-se como termo inicial o momento em que preenchido o último requisito pendente, seja ele o objetivo ou o subjetivo. Vale dizer, se por último for preenchido o requisito subjetivo, independentemente da anterior implementação do requisito objetivo, será aquele o marco para fixação da data-base para efeito de nova progressão de regime.”

Embora parecido com o teor da decisão de novembro de 2019, o enunciado foi elaborado de forma mais extensa e, ao invés de garantir a segurança jurídica que se buscava com o IRDR, trouxe mais contradições e incertezas para os jurisdicionados.

Como a nova redação adicionou a expressão “último requisito pendente” sem deixar explícito que não pode servir de marco inicial eventual pedido de exame criminológico, como havia sido colocado no acórdão lavrado em 2019, a data em que o laudo desse exame é feito se transformou em data-base para a segunda progressão, na interpretação de muitos julgadores.

Mesmo em casos em que a pessoa jurisdicionada estava com o comportamento devidamente atestado como sendo “bom”, antes mesmo de ser atingido requisito objetivo, esse entendimento faz com que a data-base seja deslocada, de forma arbitrária e contrária ao acórdão do IRDR, atrasando o sistema progressivo da pena e o retorno da pessoa à sociedade, em ao menos onze das dezesseis Câmaras Criminais do TJ/SP. Apenas pequena parte do Tribunal ainda respeita a decisão proferida no IRDR em novembro de 2019.

A tabela abaixo ilustra os diferentes entendimentos observados.

Data do exame criminológico:

Câmara

Relator(a)

Processo

Data do Julgamento

02ª

Alex Zilenovski

0006500-09.2020.8.26.0996

08/02/2021

03ª

Cesar Mecchi Morales

0008873-13.2020.8.26.0996

25/02/2021

04ª

Ivana David

0010480-61.2020.8.26.0996

25/02/2021

05ª

Tristão Ribeiro

0010817-50.2020.8.26.0996

22/02/2021

06ª

Eduardo Abdalla

0007970-75.2020.8.26.0996

19/02/2021

07ª

Reinaldo Cintra

0010303-97.2020.8.26.0996

16/12/2020

08ª

Juscelino Batista

0010319-51.2020.8.26.0996

24/02/2021

09ª

Sérgio Coelho

0007965-35.2020.8.26.0032

28/02/2021

10ª

Nelson Fonseca Júnior

0010529-05.2020.8.26.0996

26/02/2021

13ª

França Carvalho

0008061-68.2020.8.26.0996

09/12/2020

14ª

Marco de Lorenzi

0007993-85.2020.8.26.0037

23/02/2021

 

 

 

 

Data em que cumpriu o requisito objetivo:

01ª

Ivo de Almeida

0006482-85.2020.8.26.0026

16/02/2021

12ª

Vico Mañas

0007551-55.2020.8.26.0996

08/02/2021

15ª

Gilberto F. da Cruz

0010854-77.2020.8.26.0996

10/02/2021

16ª

Newton Neves

9000075-54.2020.8.26.0269

25/02/2021

Percebe-se, então, que a mesma “loteria” de antes do IRDR ainda está vigente, não tendo ele servido para harmonizar as decisões judiciais, sendo necessária a mesma sorte de antes, no momento da distribuição, para que a pessoa presa possa cumprir sua pena sem arbitrariedades estatais.

O IRDR ainda não transitou em julgado e existe a possibilidade de o TJSP sanar esta confusão para que as novas contradições parem de existir, de uma vez por todas, ao se respeitar o que foi determinado pela maioria da Turma Especial Criminal, antes da oposição de embargos declaratórios que foram rejeitados e que, portanto, não teriam força para mudar a essência do que havia sido anteriormente decidido.

________

1- Essas porcentagens e frações estão no artigo 112 da Lei de Execução Penal, que teve redação alterada com a chamada “Lei Anticrime”. Esses lapsos temporais são matérias de Direito Penal, de forma que se aplica o princípio da irretroatividade da lei nova, exceto se esta for mais benéfica. A Lei 13.964/19 também revogou o art. 2º, §2º, da Lei 8072/90, que trazia frações específicas para casos de crimes hediondos ou equiparados.

2- Pois sabe-se que a progressão de regime não é automaticamente efetivada.

Josianne Pagliuca dos Santos
Advogada criminalista, Especialista em Direito Penal e Criminologia, Mestranda em Processo Penal e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa "Políticas Públicas de Segurança e Direitos Humanos" (PUCSP)

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