Migalhas de Peso

Recuperação judicial e startups

A caminho de um direito recuperacional mais expansivo com a reforma da Lei de Falências e Recuperações?

3/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

A reforma da Lei de Falências e Recuperações, feita por meio da lei 14.112/20 e que entrou em vigência em 23/01/2021, apresentou um robustecimento do direito falimentar e recuperacional brasileiro, reforçando dispositivos-chaves da antiga lei, formalizando atos vivenciados na prática e autorizados pela jurisprudência, ao mesmo passo que trouxe uma pletora de modificações instigantes no sistema jurídico brasileiro.

Nesse novo cenário, certas alterações referentes à recuperação judicial aplicáveis a startups, pequenas e médias empresas despontam como particularmente interessantes, tendo em vista a tradicional visão de que a recuperação judicial só serviria para as grandes empresas, que seria extremamente custosa ou que, ao final e ao cabo, de nada ajudaria a reestruturar os negócios e as empresas.

Dentro destas modificações, podemos ressaltar: a) a implementação dos institutos da Mediação e Conciliação, principalmente com a figura da “mediação antecedente”, gerando um ótimo espaço para negociação entre devedora e credores junto ao CEJUSC, sem que seja necessária a abertura de pedido de recuperação judicial; b) a possibilidade de suspensão de prazos processuais por até 60 dias no curso da mediação ou conciliação, caso a devedora detenha os requisitos necessários para ingressar com o pedido recuperacional, sendo que os dias de suspensão serão abatidos do stay period; c) no curso de uma recuperação judicial, em havendo venda de ativos da devedora, o IR e CSLL sobre o ganho de capital poderão ser parcelados; d) a possibilidade de produtores rurais pedirem o processamento especial da recuperação judicial, aplicado para microempresas e empresas de pequeno porte, desde que sua dívida sujeita à recuperação não exceda R$ 4.800.000,00.

Caso a devedora seja microempresa, empresa de pequeno porte ou produtora rural que se enquadre para o pedido de recuperação judicial especial, é importante saber que seu plano de pagamento deverá prever parcelamento das dívidas sujeitas ao processamento (excluídas, por exemplo, as dívidas tributárias e decorrentes de repasses de recursos oficiais) em até 36 vezes, iguais e sucessivas, acrescidas de juros da taxa SELIC e o 1º pagamento deverá ocorrer em até 180 dias do pedido recuperacional. Note-se, também, que a devedora, neste procedimento, deverá obter autorização do juízo sempre que sentir necessidade de contratar novos empregados ou aumentar suas despesas para um possível investimento.

Com isso, é possível apontar que, em decorrência da situação pandêmica, a principal intenção do legislador reformador foi facilitar o ambiente de negociações entre devedores e credores, sem sobrecarregar o judiciário com diversas demandas executórias e recuperacionais e ações falimentares.

Apesar destas mudanças, é razoável se esperar que a recuperação judicial continue sendo razoavelmente inalcançável para as microempresas e empresas de pequeno porte, assim como para as startups. Explicamos.

É natural que as startups precisem de apoio em situações de crise. Representativas da inovação, buscando fornecer novos produtos ou serviços ao mercado, de forma escalável – conforme famosa definição de Eric Ries em The Lean Startup -, as startups enfrentam diversas crises até que seja alcançado um patamar estável de mercado. Nestas crises, é possível que a startup não sobreviva para continuar as suas atividades.

Nesta situação de crise, a startup dificilmente encontrará abrigo no instituto da recuperação judicial, notadamente pelo fato de que estas dificilmente conseguem alcançar dois anos ou mais de existência e este é o requisito mínimo para ingressar com o pedido de recuperação.

Além disso, os custos com o procedimento ainda são elevados para microempresas e empresas de pequeno e médio porte, uma vez que há necessidade de: a) pagamento de honorários dos advogados que representarão a devedora; b) pagamento de equipe que irá elaborar o plano de recuperação e reestruturação da empresa, além dos laudos de avaliação de seus bens; c) pagamento do agente que realizará a perícia prévia, se a medida for aplicada pelo juízo; d) pagamento da remuneração da administradora judicial (até 5% do valor total do passivo sujeito à recuperação judicial; ou até 2%, se a devedora se enquadrar como microempresa ou empresa de pequeno porte); e) pagamento de publicação de editais, tais como o da relação de credores da devedora, relação de credores da administradora judicial, convocação dos credores para realização de Assembleia Geral de Credores (se houver); e f) locação de espaço e/ou plataforma online para realização de AGC.

Os casos de recuperação judicial que envolvem startup são uma grande exceção, a exemplo do recente pedido de recuperação judicial da Grow (detentora da marca Yellow e responsável pela colocação de patinetes alugáveis nas cidades).

É surpreendente que exista esse gap entre a sistemática jurídica recuperacional e os novos negócios, em particular as startups, em especial se considerarmos que uma quantidade incrível das startups, talvez beirando os 80%, não ultrapassa o famoso vale da morte – o período entre o início das operações e a geração de renda consistente.

Diante disso, é importante questionar se uma startup que usufrua das benesses da recuperação judicial e se recupere conseguiria sobreviver por mais cinco anos sem entrar em uma nova crise-econômico financeira, que, por consequência, a impediria de obter um novo pedido recuperacional.

Assim, estaríamos diante da situação em que os institutos jurídicos não são propriamente adequados às atividades econômicas que eles visam regular. Por outro lado, é discutível se o direito falimentar e recuperacional, de fato, intenciona ser tão expansivo a ponto de abranger o fenômeno das startups.

Ausentes os benefícios da recuperação judicial, a Startup ainda pode (e deve) recorrer aos mecanismos recorrentes de reestruturação de negócios, tais como a renegociação com credores dos termos da dívida, a venda de eventual maquinário (se existente e tomando precaução com o esvaziamento patrimonial), entre outros, de tal forma que a startup sempre pode optar por se reunir com seus credores para negociar, ou fazer uso dos institutos de conciliação e mediação, ou vislumbrar novos meios para seguir com suas atividades, ainda que isso signifique mudar de atividade econômica.

Marco Aurélio Fernandes Garcia
Doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Europeu pela Université du Luxembourg. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas. Advogado em São Paulo.

Cecília Corelli Morgado
Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas, Advogada em São Paulo e atuante na área de Falência e Recuperações Judiciais há 10 anos.

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