Estávamos em volta de uma boa mesa, falando sobre sabores, comidas e temperos. Cada qual tinha a sua opinião sobre o melhor prato e o tempero mais adequado. Foi então que me lembrei do meu amigo Lourival.
Quando ele era criança muitos haviam dito que Lourival nascera para a música. Eu, porém, achava que a música nascera para Lourival. Nunca houve amante mais fiel nem mais dedicado. Seu avô era o primeiro violinista da orquestra filarmônica de uma importante cidade do interior, no tempo em que a televisão ainda não havia chegado àquele mundo e as pessoas ainda conversavam em casa umas com as outras e frequentemente se visitavam. Saraus domésticos eram costumeiros, quando apareciam tenores, sopranos, contraltos e barítonos, mostrando que os amadores também podiam cantar de forma bonita e proveitosa. Os baixos eram bem raros.
Desde muito cedo Lourival mostrara gostar de música. Embalava-se ao som dos discos que o seu avô ouvia constantemente na vitrola da sala de jantar. Apreciava o doce som do violino, tocado pelo arco inquieto, ou beliscadas as suas cordas pelo instrumentista, no vai-e-vem ora calmo, ora frenético das cordas quando acariciadas com amor e produzindo em resposta uma infinita sequência cadenciada de notas, cada qual no seu lugar adequado, formando uma mensagem harmoniosa, decifrada no seu entendimento por um ouvido sensível.
Lourival detestava música popular. Para ele existiam somente os clássicos: a incomensurável majestade de Händel, a supremacia absoluta de Mozart, a profundidade altissonante de Beethoven, o lirismo inconsequente de Shubert, a agonia maravilhosa de Tchaikowisky, a versatilidade abrangente de Haydin, a grandiloquência infinita de Wagner, a profundidade acrobática de Brahms.
As óperas o deixavam embasbacado. Chorava copiosamente com a morte das heroínas e roía-se de ódio com o triunfo dos vilões, fosse fugaz ou duradouro. Delas saia enfraquecido, como se tivesse gastado todas as suas energias, construindo sozinho uma imensa pirâmide e depois a demolindo, pedra por pedra.
Ainda uma pequena e quieta criança, Lourival era levado pelo seu avô aos ensaios e às apresentações da orquestra. Ele permanecia atento, sentado em um tamborete colocado sobre uma poltrona de uma das primeiras filas do teatro, ouvindo o desenrolar da música e regendo com sentimento os executantes, que se tornaram seus grandes amigos. Ele cresceu naquele ambiente, que jamais abandonava por outro interesse. Mais tarde o tamborete foi posto de lado e aquela cadeira tornou-se o seu lugar cativo e predileto. Isso porque, ao completar oito anos, Lourival recebeu da “Associação dos Amigos da Orquestra Filarmônica Municipal” uma carteira de sócio remido, com reserva permanente da poltrona que ocupara sempre, para todos os ensaios e concertos. Nunca houve presente mais festejado, guardado em lugar seguro como se fosse o tesouro milionário do Império Britânico.
Aquele grande amor à música deveria levar Lourival, naturalmente, a estudar algum instrumento, no qual pudesse expressar os seus sentimentos. Começou pelo violino e seu professor foi, claro, o avô coruja – assim pensava, de um neto destinado a sucedê-lo na orquestra da cidade. O amor não foi correspondido e as intenções ficaram frustradas. Lourival não conseguiu aprender a tocar o violino. Tinha ótimo ouvido, mas péssima coordenação. Aprendera a solfejar com enorme rapidez e segurança e podia destrinchar pelo solfejo obras difíceis, mesmo para músicos experientes. Lia todas as notas com perfeição, nas duas claves, mas o seu cérebro não era capaz de dar ordens acertadas aos seus dedos. Os sons saiam como garranchos de um aprendiz do be-a-bá.
Talvez, diziam, a causa do insucesso fosse a pressão psicológica exercida pelo avô, apressado em ver o neto logo desenvolver-se e mostrar-se um exímio violinista, encantando parentes e amigos e marcando mais tarde o cenário nacional com as suas precoces proezas musicais. Se Mozart o fizera, por que Lourival não?
Lourival mudou de professor, mas isso nada mudou.
Lourival mudou de instrumento. Martelou o piano, esganiçou o clarinete, entortou o trompete, azedou a flauta, tropeçou no violoncelo, estourou as cordas da viola da gamba e até desdentou a gaita. Mas não conseguiu tirar deles nada que prestasse, nem sequer o “bife”.
O avô arrancava os cabelos, a família gastava inutilmente os cobres e os instrumentos eram trocados uns pelos outros, na espera de uma revelação inesperada, a interromper a enorme cadeia de frustrações, quebrando finalmente a rotina de fracassos.
Tudo inútil. Lourival amava a música, mas parecia que a música não correspondia. Ao menos na forma de um instrumento que pudesse tocar.
Mesmo diante de todos esses problemas, Lourival continuava fiel à sua amada. Não se interessava por nada mais que não fosse música. Continuava a assistir a todos os concertos da orquestra de sua cidade e tantos outros em que pudesse estar. Não desejava uma profissão que não fosse ligada ao seu ídolo inamovível. Dava aulas de teoria musical e começou aos poucos a executar os serviços de secretaria da orquestra local, onde conseguiu ser contratado, fazendo de tudo um pouco. Tudo era válido para continuar no meio em que fora criado e a que tanto se devotava.
Lourival tentou o canto. Até que não desafinava, pelo contrário. Mas logo descobriu que não tinha volume de voz. Jamais passaria de um João Gilberto de pilha fraca. Se fosse cantor popular, ainda poderia dar-se um jeito pelo recurso à moderna parafernália eletrônica. Mas como cantar uma ópera com uma voz que não chegava, sequer, ao lugar onde se escondia o “ponto”?
E maestro? Lourival poderia certamente ser um maestro. Afinal de contas ele entendia tudo de música, tendo se formado em teoria musical. A orquestra lhe abriu espaço. Na primeira vez em público, com a batuta em uma das mãos, a partitura diante de si, os instrumentos afinados nos bastidores e os músicos ao final em seus lugares, Lourival subiu para a plataforma naquele que seria, afinal, o seu grande dia. Mas deu zebra, isto é, um branco total na cabeça de Lourival. A altura da plataforma causou-se um grande medo: trinta centímetros que pareciam ser milhares de quilômetros. Os músicos ao seu lado, um pouco mais abaixo, vultos indistintos vestidos de negro e de branco. Ele se esqueceu de tudo o que sabia. Não via as notas na pauta, mas um monte de formiguinhas negras, andando de um lado para o outro, falando-lhe em uma língua ininteligível. Os seus braços ficaram rígidos e a batuta restou olhando par ao chão inerte. Teve de ser substituído rapidamente pelo maestro reserva.
Lourival desceu tristonho da plataforma. O mundo perdeu ali um grande e promissor maestro.
Tudo parecia estar acabado para Lourival, menos o trabalho de secretário.
Mas – sempre há um “mas”, bom ou ruim nas histórias. Um dia um músico faltou e o maestro, no ensaio, pedido que Lourival tocasse o triângulo. Foi ali que ele finalmente descobriu a sua verdadeira vocação musical. Nas poucas intervenções que precisou fazer, entrou na hora certa e deu conta do recado. O triângulo não desafinava e nem podia desafinar e tudo o que exigia era ser segurado de forma adequada com uma mão e ser tinido pela outro com o pequeno bastão apropriado. Foi um casamento perfeito: o triângulo era para Lourival e Lourival era para o triângulo. Naquele dia ele achou, finalmente, o seu lugar na orquestra.
Se o seu lema não era o de um mastro (“non ducor, duco”), ao menos poderia ser, tocando o triângulo compenetrado, “non duco, ducor”. E assim sendo ele era feliz.
O avô morreu um dia e a família mudou-se para a capital. Ficara para trás os anos dourados de uma pacata cidade e começou para Lourival a azáfama da grande metrópole. Munido de uma carta de recomendação, ele conseguiu uma colocação na orquestra sinfônica estadual e jamais houve ali um músico mais assíduo e mais fiel. Nunca se queixava de nada e dava tudo de si para a música.
A par do triângulo, Lourival veio a ser um importante ajudante do maestro. Cuidava das partituras, organizando as pastas dos colegas. Se a orquestra pensava em ensaiar uma nova peça, Lourival sempre dava conselhos apropriados e desencavava obras inéditas, conseguidas por meio dos contatos que mantinha mundo afora, por meio de uma vasta correspondência trocada com colegas de todos os lugares.
Com a orquestra Lourival viajou o mundo todo, mas importava-se em vê-lo apenas pela ótica da música. Em Milão somente lhe chamara a atenção o Scala. Em Paris, preferiu uma apresentação de órgão na Notre Dame do que uma visita ao Louvre. Em Nova York não lhe apeteceu a Broadway, trocando-a prazeroso por um concerto de uma orquestra de câmara, apresentada em uma escola da cidade.
Lourival vivia confortável, mas modestamente na casa dos seus pais, onde possuía dois cômodos para o seu uso pessoal, ambos repletos de discos de música erudita (ele destetava chamá-las de clássicas), de partituras, de cartazes de óperas e de bustos de compositores.
Ele jamais se casou. Namorou algumas moças, por pouco tempo cada uma, logo rompidas as ligações porque ele não sabia dividir sua única paixão com alguém que não personificasse inteiramente a música, que tanto amava. Doía-lhe muito ter de comprar um ramalhete de flores para cortejar a namorada e deixar de adquirir um disco novo da Filarmônica de Berlim. Era-lhe uma grande perda de tempo e de dinheiro acompanhar a namorada a um cinema para ver falsos conflitos dos tempos modernos, quando a verdadeira batalha da humanidade ocorria repetidamente, mas sem jamais perder a força de sua mensagem, nos palcos das grandes óperas.
Era amigo dos seus colegas, mas jamais íntimo deles, cada qual com as suas famílias e sua vida particular.
Assim, Lourival tornou-se um homem sozinho, mas nunca solitário. A música era a sua companheira inseparável e o bálsamo para todas as suas feridas. A orquestra e o triângulo lhe bastavam. Ele o tocava com todo o amor que o seu ser podia dedicar. Sentado circunspecto em sua cadeira, no fundo da orquestra, levantando-se poucos instantes da sua vez de tocar. Tangia o instrumento com amor e respeito. Cumpria a sua tarefa e voltava a sentar-se, aguardando a hora de outra manifestação de sua parte.
Lourival somente precisava tomar cuidado para não se envolver quase até o esquecimento de si mesmo no espírito da música, a ponta de perder a sua deixa. Isto aconteceram em uma única ocasião, quando se sentira transportador pela “Paixão Segundo São Mateus”, havendo se deixado levar pela imaginação aos fatos e locais narrados naquela peça magnífica. Depois de haver sido chamado à atenção pelo maestro, Lourival policiava-se nos ensaios e nas apresentações e deixava-se devanear em casa, ao ouvir no escuro as suas peças favoritas.
Lourival chegava todos os dias ao teatro antes de qualquer outra pessoa e era o último a ir embora. Nos dias de apresentação da orquestra, ele organizava as pastas dos colegas e as distribuía adequadamente. Jamais faltara a qualquer ensaio. Gripe alguma o tirou de sua cadeira durante todos os anos em que ali esteve trabalhando. Depois que os músicos haviam afinado os seus instrumentos e ocupava solenemente os seus lugares, o maestro subia na sua plataforma e dali olhava para a sua orquestra. Conhecia cada músico pelo seu nome. Sabia o que podia esperar de cada um deles. Quando o seu olhar passava pelo lugar de Lourival e o maestro o via ali compenetrado e calmo, ele sabia que tudo estava bem e que o grupo ia fazer mais uma de suas belas apresentações.
Naquele ano a orquestra havia se esmerado em seu repertório e alcançara um nível próximo da perfeição. O maestro conduzia-a com segurança na nova sala de espetáculos especialmente construída para abrigar aquele magnifico corpo de homens e de mulheres que viviam para dar gozo pleno aos seus ouvintes. E Lourival, no seu pequeno instrumento, dava tudo de si, contribuindo para que a música soasse pura e cristal, com o recado correto para o público fiel.
Naquele dia seria homenageado o grande Bach, com a orquestra e um coral.
Foi magnífico! Indescritível! No intervalo os músicos saíram para um descanso, pois a programação era muito extensa. Lourival continuou quieto no seu lugar, sem se mexer. Todas as cadeiras vazias, apenas Lourival sentado em meio a elas. Um colega foi chamá-lo. Voltou transtornado. Lourival estava morto. Havia falecido em algum momento da apresentação, tendo exalado o seu último alento ouvindo o tocando música. Ninguém havia percebido que Lourival havia elevado a sua alma para longe desta terra, pois o seu lugar na orquestra ficava ao fundo, num cantinho não muito iluminado, um pouco mais recuado do que o costume, pois se fizera necessário abrir um espaço no palco para uma quantidade maior de instrumentos.
Era preciso dar início à segunda parte do programa. Todos estavam consternados pela perda do colega e grande amigo. Mas não havia o que fazer. O espetáculo precisava continuar e Lourival sempre dissera isso mesmo quando de problemas que aconteceram no passado da orquestra. O maestro resolver dar sequência à apresentação, deixando Lourival e seu lugar até o término do programa.
Estávamos tocando em homenagem a Bach, dissera o maestro. Vamos agora fazê-lo também em apreço ao nosso amigo Lourival.
Os músicos ocuparam os seus lugares, silenciosamente. O maestro examinou-os vagarosamente e pousou o seu olhar em Lourival. Ela parecia tranquilo e transmitia tranquilidade. O maestro deu a ordem e a música começou a ecoar pela grandiosa sala de espetáculos. Nunca a orquestra se esmerara tanto e nunca gastara tanto o seu coração como naqueles momentos marcantes. Todos se entregaram com paixão à música e ela se expressou quase como deveria. Sim, porque faltou o som do triângulo, uma ausência mínima, que somente chegou a ser notada por pouquíssimos ouvintes, os mais conhecedores daquela composição. A música não soou como deveria na segunda parte. Não estava completa. Não estava adequada. Faltava alguma coisa, um quase nada.
- Faltara o tempero essencial, disse eu!
- Lourival era o tempero essencial.
À mesa ninguém entendeu.