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Contexto histórico e natureza jurídica do Direito Marítimo nacional

A análise do âmbito do Direito Marítimo nacional é de suma importância para o entendimento do funcionamento do comércio exterior, desde suas relações jurídicas na modalidade de contratos, até mesmo naquelas provenientes de eventuais avarias nas cargas ou nos navios.

2/3/2021

(Imagem: Imagem Migalhas)

No momento atual é notória a crise político-financeira que estamos vivenciando, sendo que o comércio exterior é um dos setores mais atingidos pelos efeitos dessa crise. As movimentações de mercadorias para o país caíram drasticamente, empresas relacionadas ao ramo, como terminais portuários, tiverem que dispensar quase metade de seus funcionários, o que gerou diversos protestos e até greves no setor portuário, e infelizmente a expectativa dos especialistas não é positiva para os próximos anos, sendo que se estima que a situação somente poderá estabilizar-se dentro de 10 (dez) anos.

Sendo assim, em tempos difíceis para o mercado brasileiro, faz-se mister o estudo de tópicos relevantes à circulação de mercadorias e produtos, e não existe algo que preocupe mais o empresário do que um sinistro, ou acidente, relacionado a sua atividade econômica. Essa questão é de suma importância para aqueles investidores que procuram investir no Brasil, ou seja, é necessário saber o que acontecerá caso ocorra algum acidente no percurso de suas mercadorias, quem será responsabilizado, e em qual situação determinado agente é responsabilizado.

Já se adianta que não se tratam de questões de fácil explicação, as variáveis dentro de um acidente marítimo são enormes, mas o que se pretende é elucidar os pontos mais importantes, questões mais frequentes que ocorrem eventualmente no decorrer do transporte marítimo.

Salienta-se ainda, que ao tratarmos de meios de transporte como navios, estamos falando, no caso de avarias sérias, de discussões judiciais que beiram a casa de centenas de milhões de dólares, isso sem contar o eventual dano causado a mercadorias, que dependendo do tipo de carga podem aumentar consideravelmente o valor do litígio, dessa forma deve-se tratar o assunto com bastante cautela e atenção, eis que um litigio mal solucionado pode acarretar prejuízos imensuráveis aos envolvidos, além dos reflexos negativos em diversas outras pessoas, como os destinatários da carga por exemplo.

Em verdade, a doutrina e legislação brasileira são escassas quanto a esse assunto, bem como os outros diversos temas relacionados ao Direito Marítimo, muitas vezes forçando a recorrer a publicações estrangeiras para a resolução de casos específicos ou complexos.

Todavia, apesar de serem poucas as publicações nacionais disponíveis no mercado, os pesquisadores dessa área possuem grande conhecimento no assunto, e com muito esmero publicam materiais de alta qualidade, que na maioria dos casos, cumprem magnificamente a função de lecionar determinados assuntos.

Mesmo que o conceito em si dos aspectos da Responsabilidade Civil seja assunto bastante discutido pela doutrina e jurisprudência nacional, a questão específica relacionada ao âmbito marítimo, não é tema recorrente no mundo jurídico, embora possua vários desdobramentos, em especial nas relações existentes entre as pessoas jurídicas e físicas que participam dos negócios relacionados comércio exterior.

Portanto, fazendo-se necessária a apresentação sintética de alguns tópicos basilares do Direito Marítimo como um todo, a fim de contextualizar o conteúdo, desde síntese histórica, até mesmo a explicação sobre os meios de transporte aquaviários, bem como os tipos e qualidades de agentes inseridos no contexto jurídico do transporte marítimo de mercadorias.

Em princípio cumpre apresentar uma breve síntese da história do Direito Marítimo, o qual provém de sistemas legais primordiais, datados da antiguidade da humanidade.

Evidente, que o assunto do comércio exterior seria um dos primeiros tópicos a serem discutidos pelos povos antigos, vez que em determinada fase da humanidade a troca entre nações era necessária para o desenvolvimento dos povos, surge assim, nos primeiros sistemas legais (egípcios, fenícios e gregos), tratados extensos sobre comércio no Mar Mediterrâneo.

Considera-se como o primeiro código sobre o assunto na Ilha de Rhodes, no século II, influenciada pelo direito romano, sendo conhecida a passagem narrada no Digesto, em que Eudemon de Nicomédia, havendo naufragado, queixava-se ao Imperador Antonino de que fora saqueado pelos habitantes das Ilhas Cícladas, nisto o Imperador respondeu que era o senhor do mundo, mas que o mar estava sujeito às Leis de Rhodes, de acordo com as quais deveriam ser julgados os negócios ligados ao comércio marítimo, exceto se fossem contrários às leis romanas.1

Nesse sentido, posteriormente, tribunais especiais foram criados em vários portos do Mediterrâneo para julgar disputas ocorridas entre os navegantes, nos séculos XII e XIV, foram criadas as “Tábuas de Amalfi”, e o “Libre Del Consolat de mar de Barcellona”. A autoridade destes códigos estendeu-se a outras regiões, distantes dos portos onde foram promulgados. De modo que, até o surgimento das nações modernas, o direito marítimo era representado pelo que se considerava a lei e os costumes do mar.2

Anos mais tarde, foi-se criado o “Consulado do Mar”, uma compilação dos usos outrora seguidos no Mediterrâneo Ocidental, denominava-se o Tribunal Marítimo de Barcelona, que, embora de origem catalã, teve sua paternidade reivindicada pelos italianos, datada do século XIV, sendo um código bem completo, embora redigido sem ordem, em face das suas sucessivas alterações.3

Diante disto, impulsionados pelo crescimento do comércio proveniente do Mediterrâneo, novos códigos marítimos foram desenvolvidos nos portos do norte da Europa. Dentre os mais importantes códigos medievais encontram-se: as Leis de Wisby (porto báltico), Leis de Hansa Towns (Liga Germânica) e os Rolos de Oléron (ilha francesa). Tais códigos são considerados como os pilares da moderna estrutura do direito marítimo.4

Importante ressaltar que na Inglaterra, cortes marítimas se encontravam em funcionamento desde o século XIV, inicialmente para julgar casos de pirataria e indisciplina, estendendo gradualmente sua jurisdição para litígios comerciais.

Mais tarde, com os descobrimentos dos espanhóis e portugueses, consequência do intenso desenvolvimento das técnicas de navegação, fez-se necessário a consolidação de todos os costumes adotados no comércio marítimo. Então em 1681, na França, inaugurou-se a Ordenação de Marinha, uma nova era para o direito marítimo, que durante mais de um século foi a base legal marítima de todos os países, pela sua eficaz sistematização.

A Revolução Francesa trouxe duas novas regras importantes: a supressão dos Tribunais do Almirantado que julgavam litígios marítimos, já que a revolução era hostil a tribunais de exceção, e os decretos que determinavam a nacionalidade dos navios e a transferência da propriedade. A Assembleia Constituinte decidiu elaborar os Códigos Civil e Comercial, cuja promulgação efetivou-se com Napoleão Bonaparte, respectivamente em 1804 e 1807.  Com a inclusão de importantes itens como hipoteca marítima, seguros marítimos e abalroação, foi promulgado no país gaulês o Código do Trabalho Marítimo, em 1926.

Novamente na Inglaterra, mas agora no século XVII, iniciou-se a criação de um sistema de seguro mais próximo do que existe hoje. A Lloyd’s, a mais antiga e uma das maiores companhias de seguros do mundo nasceu dentro do bar de Edward Lloyd na Tower Street em Londres, ponto de encontro de comerciantes e capitães de navios. Desde 1688 o bar de Lloyd já era bem conhecido entre os executivos londrinos. O sistema de seguro, que começou a se estruturar na época, mobilizava capitais de forma a garantir os que se aventuravam no comércio marítimo. Assim, negociantes podiam participar dos grandes lucros desta atividade, assumindo parte dos riscos. No bar, quem estivesse interessado no negócio, assinava o nome, um debaixo do outro, na apólice comum, ao lado da quantia que cada um concordava em cobrir. Por isso, eles eram conhecidos como os “underwriters”, termo até hoje utilizado no jargão do mercado segurador.5

Sobre o Brasil, durante muitos anos a legislação vigente foi baseada nas Ordenações do Reino de Portugal, tais como as Afonsinas, Manoelinas e Filipinas. Na maior parte do período colonial brasileiro, vigoraram as Ordenações Filipinas, impressas em 1603, no Reinado de Filipe II de Portugal.

Nesse sentido quanto a Portugal cumpre destacar, conforme nos ensina o Professor João de Barros: “A navegação portuguesa teve seus primeiros registros nos séculos XIV e XV, com as finalidades de buscar, recursos minerais, vegetais, dentre outras riqueza, do continente africano, em função da proximidade geográfica com aquele. Contudo, foi a partir dos séculos XV e XVI que a navegação passou a ser de fato tratada como um empreendimento, com investimentos inclusive da Coroa, tendo em vista a alta rentabilidade. O Comércio em localizações diversas e a exploração para dominação territorial eram atividades absolutamente lucrativas, que compensavam inclusive os riscos do negócio, dado o fracasso de muitas expedições em meio à falta de tecnologia – desenvolvida gradativamente – e do desconhecimento geográfico-temporal.”6

Quanto ao sistema de seguros, teve origem nas necessidades da navegação marítima, tanto que a primeira empresa de seguros, a Companhia Boa Fé, nasceu em 1808, com a chegada da Família Real portuguesa e a abertura dos portos. Frisa-se, que nessa época apenas os escravos tinham algo semelhante ao que hoje se entende como seguro de vida. Só se fazia seguro para mercadoria, navios ou escravos, os quais eram considerados como tal.

Com o advento da independência em 1822, o código anterior continuava a vigorar, enquanto leis nacionais não o substituíssem, tendo a sua aplicação atenuada pela outorga da Constituição Imperial de 1824, Códigos Criminal e de Processo, de 1830 e 1832, e Comercial de 1850, sob a égide quase absoluta do Código Comercial Francês. Vale ressaltar, que o Código Comercial, promulgado pela Lei n. 556, de 25 de junho de 1850, passou a regulamentar na sua parte segunda, o comércio marítimo, que foi mantida pelo Código Civil de 2002, no seu art. 2.045, embora o grande conteúdo da legislação marítima brasileira esteja esparso em diversas leis. O Código Comercial Brasileiro de 1850 (CCB) mantido pelo Código Civil de 2002 regulamenta parte substancial do direito marítimo nos artigos. 457 a 796, através de dez títulos, cumpre destacar que embora com linguagem demasiadamente antiga, as partes sobre comércio marítimo ainda vigoram no país, e em na maioria das vezes com eficiência, contudo a disparidade da linguagem de 1850 com a atual causa algumas divergências em alguns casos, que poderiam ser sanadas com uma lei mais atual sobre o assunto.7

Outrossim, atualmente ainda se utiliza de outros meios para solução de conflitos, além dos previstos expressamente em legislação, tais como tratados internacionais, em especial relacionados a organização mundial do comércio.

Superados os aspectos históricos, cumpre elencar os aspectos legais e natureza jurídica do Direito Marítimo como um todo.

Sua composição no âmbito nacional dá-se por uma compilação de regras e princípios derivados dos costumes, decisões judiciais, atos do legislativo e tratados internacionais que atuam nas relações jurídicas concretizadas no transporte de carga e passageiros, em alto mar ou em outras vias navegáveis. Os principais sujeitos das lides marítimas são: o comandante, a tripulação, o armador ou seus representantes, o dono da carga, o afretador, as empresas de seguro, o terminal portuário.

As principais discussões no âmbito do Direito Marítimo encontram-se no tema ora abordado, ou seja, no aspecto dos Acidentes Marítimos, tais quais as disputas originárias de colisões ou choques, causando avarias ao navio ou as mercadorias. Entretanto há outras discussões come resgates de embarcações e tripulação e poluição do mar ou outros assuntos ligados ao ramo dos negócios do transporte marítimo.

Vale ainda salientar que no direito da navegação prevalece a generalidade das normas de ordem pública, regulamentando o tráfego e visando a segurança da navegação, como por exemplo, as normas de sinalização náutica e os regulamentos internos e internacionais para o tráfego da navegação, nos portos, vias navegáveis e no alto mar. No direito marítimo, ora temos normas de natureza pública, ora de natureza privada, por exemplo, as que regem o comércio marítimo em geral.

Outrossim, no direito da navegação, de natureza pública prevalecerão as características do direito público interno e internacional, tais como a universalidade, o particularismo a origem costumeira, a irretroatividade e a imutabilidade. No caso do direito marítimo, por ser mais abrangente, ou seja, de ordem pública e privada, aplicar-se-ão as mesmas características do direito da navegação, acrescidas as que regem o direito privado, como por exemplo, a onerosidade, a simplicidade, a mutabilidade e a codificação, dentre outras inerentes a esse ramo do direito.

Em suma, podemos considerar Direito marítimo no latu sensu, como complexo de normas jurídicas relativas à navegação feita sobre o mar, ou, em strictu sensu, como conjunto de normas jurídicas que regulamentam todas as relações nascidas da utilização e da exploração do mar, tanto na superfície quanto na profundidade.

Diante disto, observa-se a necessidade de verificar, além dos dispositivos conhecidos no Código Civil que versam sobre Responsabilidade Civil, as regras específicas das normas que versam sobre Direito Marítimo, por estarem estritamente conexas ao âmbito dos acidentes marítimos, a fim de não se arriscar uma análise genérica sobre o assunto, e sim que adentre todas as especificidades do tema, portanto garantindo maior segurança jurídica nas resoluções desse tipo conflito.

___________ 

1 ANJOS, 1992, p. 59.

2 CASTRO JR., 2004, p. 104

3 (Catalão - tradução livre): clique aqui.

4 Clique aqui.

5 LLOYDS (Site - Tradução livre do inglês.)

6 KÜMPEL, 1988, p. 367 a 368.

7 CASTRO JR, 2004, p. 148.

___________ 

ANJOS, J. Haroldo dos; GOMES, Carlos Rubens Caminha. Curso de direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992; 

BARROS, João de. Ásia. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. Lisboa: imprensa nacional-casa da moeda, 1988;

CASTRO JR. Osvaldo Agripino de. Temas atuais de direito do comercio – VOL I – 2004 – Florianópolis – Editora OAB; 

CASTRO JR, Osvaldo Agripino de. Introdução ao Direito Marítimo. In: CASTRO JR., Temas de Direito do Comércio Internacional. São Paulo: Edições Aduaneiras, 2004; 

LLOYDS - https://www.lloyds.com/lloyds/about-us/history/historic-heroes-of-lloyds/edward-lloyd - (Tradução livre do inglês.); 

KÜMPEL, Vitor Frederico -  Artigo: Direito Marítimo: Breve histórico e seus órgãos de controle – Extraído de: BARROS, João de. Ásia. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente. Lisboa: imprensa nacional-casa da moeda, 1988, pp. 367 a 368

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Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez
Advogado. Graduado em Direito pela Mackenzie(SP). Pós graduado em Direito Empresarial pela FGV(SP) e em Processo Civil pela PUC(SP).

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