Voltamos novamente ao episódio do deputado Daniel Silveira. É o gift that keeps on giving. Usa essa expressão para evitar analogias com certas pilhas que em quanto mais se mexe, mais odor exalam. Dessa vez o foco é um pouco mais amplo.
Muitas pessoas se manifestaram sobre o direito de liberdade de expressão do deputado, que estava sendo tolhido. Em particular, frequentemente citado, foi o jurista Ives Gandra, que afirmou que a liberdade de expressão é inviolável. Posteriormente, qualificou que a liberdade de expressão do parlamentar foi plena. Acredito que ele somente defenda a liberdade de expressão plena para parlamentares, vez que em artigo publicado no Jornal "O Estado de São Paulo", em 21/01/2020, o jurista atacou o grupo Porta dos Fundos quando eles, no exercício da liberdade de expressão, fizeram um especial de Natal. Ives Gangra foi bastante categórico: liberdade de expressão (...) não implica o direito de agressão. Ao contrário, agora defende o direito de agressão do parlamentar. Talvez por alinhamento ideológico, talvez por concordância, talvez – sejamos justos – pelo fato de que é parlamentar e nada além disso, hipótese que não pode ser descartada.
Inicialmente, devemos repetir o que sempre é dito: a Constituição é um todo. Nenhum dispositivo pode ser tido isoladamente. A suprema corte pátria faz, em controle de constitucionalidade, a interpretação conforme a constituição. E a constituição não contém inconstitucionalidades, como já há muito decidido. Assim sendo, se em mais nada se pode concordar, concordemos que tanto o artigo 5°, IV, como do artigo 53, §2°.
Fica claro, desde início, que a liberdade de expressão não significa impunidade. O anonimato é vedado. A constituição prevê o direito de resposta, bem como indenizações por dano material, moral e à imagem. O Código Penal prevê crimes de Injúria e Difamação. Temos crimes de injúria racial e de racimos. Recentemente o STF equiparou o crime de homofobia ao de racismo. A expressão, mesmo livre, trará consequências e pode trazer punições. Novamente repetindo as lições do Conselheiro Acácio: as consequências vêm depois.
A compatibilização da liberdade de expressão com a responsabilização pelo discurso manifestado encontra perfeita expressão na vedação à censura (art. 5°, IX CR/88). Mas mesmo esta vedação não é absoluta, como se espera pela compreensão de que não existem direitos absolutos (com a possível exceção da vedação à tortura). Das lições de Daniel Sarmento (2013):
A liberdade de expressão não constitui um direito absoluto. De acordo com o famoso exemplo invocado pelo juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes, esta liberdade não vai ao ponto de proteger a pessoa que grita "fogo!" no interior de um cinema lotado. São inúmeras as hipóteses em que o seu exercício entra em conflito com outros direitos fundamentais ou bens jurídicos coletivos constitucionalmente tutelados. [...] Tal como ocorre em países como Estados Unidos, Alemanha e Espanha, também é possível falar-se no Brasil em uma "posição preferencial" a priori desta liberdade pública no confronto com outros interesses juridicamente protegidos
Sarmento aponta ainda os 4 conflitos mais frequentes: direito à honra, privacidade, proteção da infância e adolescência, e igualdade e dignidade humana. Sobre este último, todos nos lembramos do caso Elwanger (HC 82.424/RS) e a publicação de livros antissemíticos. Outros exemplos apresentados são manifestações com expressões de "racismo, sexismo, homofobia e intolerância religiosa, entre outras formas de discriminação." A questão de diferença de intolerância e crítica é extensa demais para este pequeno texto, e será melhor apresentada em outros lugares em ocasião mais propícia. Como tantos autores melhores do que eu já escreveram: o limite da liberdade de expressão se encontra no ódio.
Voltemos agora para um plus constitucional presente no artigo 53, hoje nos atendo ao caput (imunidade material): "Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos." Já estabelecemos que tal dispositivo não existe sozinho, isolado do resto da Constituição. Da mesma forma, ele não existe no vácuo. Possui razões históricas para existir e, na tradição hermenêutica, esta historicidade do instituto é imprescindível para compreendê-lo, antes de interpretá-lo.
Dispositivos como este estão presentes nas constituições brasileiras desde 1824. Recorremos às lições de Streck, Oliveira e Nunes (2013): "[a]s imunidades parlamentares surgiram na Inglaterra, com o fito de garantir independência ao Parlamento, por meio de concessão de liberdade aos parlamentares, que não seriam responsabilizados por suas opiniões ficando a salvo do arbítrio do monarca." No Brasil, apontam para três posicionamentos: ultracorporativistas, extremistas e moderados. Os primeiros afirmam que a imunidade se aplica sempre e mesmo após o término do exercício do mandato. Extremistas entendem que tais imunidades são abusivas e devem ser extintas. Os moderados defendem que a imunidade deve existir, mas ter limites. Tal posicionamento tem se consolidado no Brasil:
Esse último parece ser o entendimento que vem se firmando na doutrina e jurisprudência brasileiras, o que se pode constatar pelo posicionamento do Supremo Tribunal Federal (Agl 473.092) que já decidiu, por exemplo, que a imunidade material exclui a responsabilidade civil do congressista em vista de eventuais danos causados por suas manifestações, orais ou escritas, exaradas em prática in officio ou propter officium. Nesse mesmo sentido, o Pretório Excelso brasileiro também já afastou a incidência da imunidade parlamentar por ofensas perpetradas fora do exercício das funções parlamentares ou em sua razão. (STRECK; OLIVEIRA; NUNES, 2013)
Sobre o limite, ainda:
Quanto à expressão quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, reforça o entendimento de que a imunidade material abrange as esferas penal, cível e administrativa/política. Mas isso não quer dizer que possa invocar a prerrogativa o parlamentar que tenha feito pronunciamento – dentro ou fora do parlamento – em desconexão com o exercício do mandato legislativo. Ou seja, a imunidade somente deflui de atos praticados em decorrência da função parlamentar. Imunidade não é blindagem. Seria uma contradição que, em nome da democracia e da garantia da liberdade do exercício do mandato, viéssemos a entender que o parlamentar é uma pessoa acima da lei, podendo "dizer qualquer coisa" e invocar a proteção da expressão semântica "quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". Também não bastará a simples invocação de estar proferindo determinadas opiniões "no exercício do mandato". Essa conexão deve estar demonstrada à saciedade, nos mínimos detalhes, para evitar abusos e impunidades. (STRECK; OLIVEIRA; NUNES, 2013)
Tal conclusão dos autores é justificada pela própria proposta do instituto: proteção da independência da atividade legislativa.
Percebe-se, assim, que a imunidade material somente imantará o congressista, isentando-o de responsabilidade penal, cível ou administrativa/disciplinar, por suas palavras, votos ou opiniões, versadas oralmente ou por escrito, quando tenham sido proferidos in officio (no exercício do mandato) ou propter officium (em razão do mandato). Não se comprovando o nexo causal entre as manifestações proferidas e o cumprimento do mandato legislativo, não será o parlamentar protegido pela imunidade podendo, então, ser responsabilizado. (STRECK; OLIVEIRA; NUNES, 2013)
Explica Fernandes (2020, p. 1266) que "para que haja a imunidade material as opiniões ou palavras devem guardar relação com o mandato. Devem ser proferidas em função do mandato. Nesse sentido, deve haver nexo de causalidade entre o exercício do mandato e o proferimento das opiniões ou palavras".
A imunidade estar intrinsecamente ligada ao ofício trás outra conclusão inevitável: nenhuma manifestação do congressista que seja impossível no exercício do ofício está coberta. Temos, de plano, que qualquer proposta, discurso ou fala que tente violar cláusula pétrea, por ser absolutamente vedado pela própria constituição, não pode ser considerado protegida – pelo fato de não ser parte do exercício legislativo que se tenta proteger. O art. 60, §4° da Constituição Federal deve ser um limite, excluindo não a imunidade parlamentar, mas a caracterização de manifestação propter officium – o argumento deve ser feito sobre tais manifestações in officio, sob pena de censura ampla. Nesse sentido já entendeu o STF no RE 463.671 AgR, que "sendo a ofensa irrogada em plenário, independente de conexão com o mandato para o fim de elidir a responsabilidade civil por perdas e danos".
[A] aferição do nexo de causalidade, nesse posicionamento do STF, seria necessária apenas para os pronunciamentos realizados fora do parlamento, pois os proferidos dentro do Congresso, estariam abarcados pela imunidade material independente de nexo de causalidade entre o proferimento e o mandato. No mesmo sentido decidiu a 1ª turma do STF no Inq. 3672/RJ em 14.10.2014 de relatoria da ministra Rosa Weber. (FERNANDES, 2020, p.1267)
A unidade da constituição é novamente demonstrada aqui. Vejamos que, se reconhecemos que a imunidade parlamentar existe para proteger a atividade legislativa, tal imunidade está justificada e não pode ser extinta, sob pena de violação do próprio art. 60, §4°. Mas ele pode encontrar limites. Ou, melhor dizendo, um limite: a própria Constituição. Se o mandato tem origem na Constituição e se no mandato não pode o congressista nem mesmo propor projeto de emenda que viole as prescrições do art. 60, §4° – popularmente chamadas da cláusulas pétreas – então é uma impossibilidade que a manifestação seja em função do mandato.
Mesmo em Dworkin tal limite pode ser deduzido:
[...] A liberdade de expressão é uma condição do governo legítimo. Leis e políticas não são legítimas a menos que tenham sido aprovadas por meio de um processo democrático, e um processo não é democrático se o governo houver impedido qualquer pessoa de expressar suas convicções sobre o que essas leis e políticas deveriam ser.
(DWORKIN, 2021)
A liberdade de expressão é requisito para a criação de leis e políticas que, por sua vez, encontram limites na Constituição. Se a criação de leis e políticas encontra limites constitucionais, tais limites podem (e devem) ser invocados para se limitar a imunidade parlamentar.
Em conclusão, tanto a liberdade de expressão como a imunidade parlamentar possuem limites. Não poderia deixar de ser assim. Direitos têm limites, conclusão inevitável diante da unidade da constituição. Porém, não são direitos que podem ser afastados levianamente e, no caso da imunidade parlamentar, liminarmente, exceto em um hipotético caso extremo (geralmente previsto na própria constituição). Mas tais hipóteses extremas já estão previstas na própria constituição, particularmente pela leitura dos incisos XLII, XLIII e, especialmente, XLIV. São os crimes inalcançáveis que, em conjunto com o art. 53, §2° permitem, em situação de flagrância, a medida cautelar da prisão. A posição dos moderados nos parece ser a única resposta adequada à constituição, pois respeita não apenas o próprio texto constitucional, em seu todo, como a historicidade dos institutos, protegendo tanto o indivíduo como a Constituição. Superada a situação extrema, com a aplicação ou não da excepcionalíssima medida cautelar, passa-se à análise do caso em concreto para averiguar se a expressão se encontra nos limites da imunidade parlamentar, anteriormente descritos mas que merece repetição: a defesa da própria Constituição.
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FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020
DWORKIN, Ronald. The Right to Ridicule. Tradução livre. Acesso em: 22 fev. 2021.
SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 5°, IX . In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; ________ (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; NUNES, Dierle. Comentário ao artigo 53. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; ________ (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.