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Sucessão e venda de bens fora do plano de recuperação judicial à luz do art.66 da lei 11.101/05

A controvérsia existente sobre a venda de bens e direitos do ativo do ativo não circulante do devedor em recuperação – art. 66 da lei 11.101/05

1/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Um dos efeitos imediatos do deferimento do pedido de recuperação judicial, pelo devedor, é a indisponibilidade dos bens e direitos do seu ativo não circulante, salvo autorização judicial após a oitiva do Comitê de Credores, ou do administrador judicial, caso o comitê ainda não tenha sido instalado.

A lei 14.112/2020 alterou substancialmente o art. 66 da lei 11.101/2005 ao permitir que credores titulares de mais de 15% (quinze por cento) do valor total dos créditos sujeitos à recuperação judicial possam pedir a convocação de assembleia geral para que a venda desses bens seja decidida.

Na minha opinião, essa alteração pode frustrar o processo de recuperação judicial porque somente o devedor em crise financeira tem a "sensibilidade econômica" para buscar o equilíbrio de seu negócio e maximizar seu ativo. Como se diz popularmente, "cada um sabe onde lhe aperta o calo". A ingerência dos credores no processo de venda dos bens do devedor pode engessar a ação do empresário e causar retrocesso na otimização do ativo, podendo até mesmo inviabilizar o cumprimento da recuperação judicial, ainda que prestada a caução exigida por lei e mesmo que observados os princípios da celeridade e da menor onerosidade para o devedor.

Questão controvertida refere-se à forma de alienação dos bens integrantes do ativo não circulante do devedor na hipótese de autorização legal. A lei 11.101/2005 diz no seu art. 141, II que não existe sucessão na hipótese de venda de estabelecimento na falência, litteris:

"Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata o art. 142:

(...)

II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho. "

Da mesma forma, não há que se falar em sucessão se o plano prever a venda de filiais ou unidades produtivas isoladas (UPI) do devedor:

"Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei.

Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei. "

A nova lei nada diz sobre a forma de vender o ativo não circulante do devedor se os bens não constarem do plano de recuperação. Segundo penso, essa disciplina era fundamental porque, como já dito, na   falência e no plano de recuperação judicial não há sucessão. Se entendermos que a venda do ativo fora da recuperação deverá ser extrajudicial,  haverá sucessão prevista em vários diplomas legais, como por exemplo o Código Civil:

"Art. 1.146. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento. "

 A sucessão trabalhista é instituto muito caro ao Direito do Trabalho, verbis:

"Art. 10 - Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados.

Art. 448 - A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados. "

A sucessão de dívidas fiscais no trespasse é tratada no art.134 do CTN, litteris:

"Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato:

      I - integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade;

      II - subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão. "

O STJ já se manifestou sobre o tema:

"RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA ALIENAÇÃO DE BENS QUE INTEGRAM O ATIVO PERMANENTE DAS SOCIEDADES DEVEDORAS. OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 142 DA LEI 11.101/05. DESNECESSIDADE. NORMA QUE SE DESTINA À REALIZAÇÃO DO ATIVO DE SOCIEDADES FALIDAS. EXCEÇÃO LEGAL (ART. 60 DA LFRE) QUE PREVÊ SUA INCIDÊNCIA EM PROCESSOS DE SOERGUIMENTO UNICAMENTE QUANDO SE TRATAR DE ALIENAÇÃO DE FILIAIS OU UNIDADES PRODUTIVAS ISOLADAS. ART. 870 DO CPC/15. INAPLICABILIDADE. HIPÓTESES DE INCIDÊNCIA DISTINTAS DA SITUAÇÃO DOS AUTOS.

1.    Recuperação judicial distribuída em 12/11/2013. Recurso especial interposto em 28/7/2017. Autos conclusos à Relatora em 4/4/2019. 2. O propósito recursal é definir se, uma vez reconhecida a utilidade e a urgência na alienação de bens integrantes do ativo permanente de empresa em recuperação judicial, o juiz deve observar a sistemática prevista no art. 142 da Lei 11.101/05. 3. A Lei de Falência e Recuperação de Empresas prevê, em seu art. 66, a possibilidade de alienação de bens integrantes do ativo permanente do devedor. Para tanto, o juiz responsável pela condução do processo deve autorizar a venda, caso reconheça a existência de evidente utilidade na adoção de tal medida. Não há exigência legal de qualquer formalidade específica para avaliação dos ativos a serem alienados, incumbindo ao juiz verificar as circunstâncias específicas de cada caso e adotar as providências que entender cabíveis para alcançar o melhor resultado, tanto para a empresa quanto para os credores e demais interessado 4. Os dispositivos apontados como violados pela recorrente não guardam relação com a hipótese fática dos autos: o art. 142 da LFRE cuida de matéria afeta, exclusivamente, a processos de falência, regulando de que forma será efetuada a realização do ativo da sociedade falida; o art. 60 do mesmo diploma legal possui como hipótese de incidência a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor; e o art. 870 do CPC/15 trata, tão somente, de enunciar os sujeitos encarregados pela determinação do preço de bens penhorados em processos de execução por quantia certa. 5. A Lei 11.101/05 contém mecanismos de fiscalização e controle dos negócios praticados pelo devedor, a fim de que não sejam frustrados os interesses dos credores. Uma vez deferido o processamento da recuperação judicial, as atividades da sociedade passam a ser rigorosamente fiscalizadas pelo administrador judicial e, quando houver, pelo comitê de credores, sendo certo que todos eles, juntamente com o devedor, respondem pela prática de atos incompatíveis com o bom andamento da ação recuperacional. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (REsp 1.819.057 – RJ, Rel. Min. Nancy Andrighy)."

Na minha opinião, não haverá sucessão quando a venda dos ativos se fizer fora do plano de recuperação judicial. Entender de modo diverso é ir contra o espírito do instituto da recuperação judicial, que tem como objetivo principal a recuperação das empresas economicamente viáveis.

Em resumo:

Apesar do entendimento jurisprudencial, entendo que a interpretação sistemática da lei 11.101/2005 leva o intérprete a concluir que não há sucessão na venda de ativos fora do plano de recuperação. Entendimento contrário fere a lógica interna do processo recuperatório e nega os princípios fundamentais da preservação e da função social da empresa.

 

Mônica Gusmão
Especialista em Direito Empresarial, Professora de Graduação e Pós-Graduação, Advogada, Membro da Comissão de Recuperação de Ativos e da Comissão de Direito Societário, ambas da OAB/RJ.

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