A intimidade dos trabalhadores e o poder de comando dos patrões
Mário Gonçalves Júnior*
Sob esse prisma, a individualidade constitui um tesouro personalíssimo guardado na arca da intimidade, sendo a todos conferido o direito de preservá-lo e administrá-lo como aprouver. A própria “imagem”, também ao pálio do inciso X do art. 5o. da Constituição, pode ser construída no exercício do poder de divulgar ou não a intimidade, eis que “se caracteriza pelos traços próprios, construídos por seu titular ou com o seu consentimento”, segundo Luiz Alberto David Araújo (O conteúdo do direito à própria imagem: um exercício de aplicação de critérios de efetivação constitucional, “in” Revista do Advogado, Ano XXII, novembro de 2003, n. 73, pág. 122).
Tão ou mais importante do que a individualidade é, portanto, a privacidade.
A natureza chegou a tal ponto de complexidade que nos conferiu certos mecanismos invioláveis por excelência. Se, por um lado, a comunicação depende fundamentalmente da vontade, por outro, o pensamento (para citar o exemplo mais notório) constitui um universo que, além de personalíssimo, é naturalmente secreto.
Por íntimo se deve entender tudo o que é interior ou simplesmente pessoal (“somente seu”, como se costuma dizer popularmente), e por privado, o caráter de não-acessibilidade às particularidades contra a vontade do seu titular. Como se convencionou ser “sábia a natureza”, há que se esperar em tudo o que é natural uma finalidade útil. A da privacidade é, em última análise, tornar possível a escolha entre divulgar ou não o que é íntimo, e, assim, construir a própria imagem.
É possível afirmar, pois, que a privacidade é um direito natural.
Quando passamos da análise natural para a normativa, as coisas se complicam bastante, pois nas relações sociais que envolvem interesses conflitantes, as vontades são, por conseguinte, também antagônicas de tal modo que em certas situações uma terá que prevalecer sobre a outra, legitimamente falando.
Ao empregador são conferidos poderes (de mando, gestão, organizacional, disciplinar etc.), que funcionam como contrapartida ao risco econômico da atividade (art. 2o., CLT). Esses poderes, por assim dizer, são corolários do direito de propriedade (do negócio, da empresa). O outro lado dessa moeda é a sujeição dos trabalhadores aos comandos dos patrões, em troca de salários.
Eis um campo inesgotável de conflito: na preservação do patrimônio da atividade econômica, o que é lícito ser feito ou determinado pelos donos dos negócios? Até onde se pode chegar, num raio de relativa segurança jurídica, sem invadir a intimidade e a privacidade dos empregados? A Constituição Federal, como é cediço, garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, prevendo expressamente indenização por danos materiais e morais (art. 5o., X).
Quando os interesses em conflito tenham, de um lado, o direito à intimidade e privacidade, não há como sustentar que este possa sucumbir diante de direitos de outra natureza (como o direito à propriedade), afinal a dicção constitucional é taxativa: “inviolabilidade” é “o que não pode ser violado”.
A dificuldade reside em identificar, caso a caso, se, do exercício de um potencial direito (do patrão), pode ocorrer a invasão desses direitos de personalidade (dos trabalhadores). Há situações limítrofes, não muito claras, daí porque na jurisprudência não se discute se a privacidade e a intimidade podem ser vilipendiadas, mas se, isto sim, foram ou não colocadas em risco ou desrespeitadas.
A vontade é o norte entre a violação ou não da intimidade/privacidade do trabalhador. O consentimento deve existir, para que não se violentem as zonas pessoais, ou seja, é preciso analisar, caso a caso, se o impulso inicial na divulgação do íntimo partiu do próprio titular da intimidade ou não.
Há, como visto, barreiras naturais à invasão da privacidade, como é o caso do já citado exemplo do pensamento. O pensamento só se torna público através da comunicação, que é um ato de vontade por excelência. Esta, por sua vez, deve ser espontânea, e não forçada. Qualquer constrangimento ilegal (como por exemplo, a tortura física ou psicológica) para a revelação do pensamento implica, primeiramente, invasão da intimidade.
Outras barreiras são criadas e impostas por convenções sociais: são as barreiras culturais, que igualmente não podem ser ultrapassadas senão pelo livre consentimento. Convencionou-se, por exemplo, que a nudez completa de outrem é inacessível. Ninguém pode ser obrigado a despir certas partes do corpo.
Em grandes empresas, admite-se que os trabalhadores sejam compelidos a descalçarem os sapatos, para verificar se neles são transportadas, em furto, as peças produzidas. A nudez do pé não choca, não fere a moral, dado ser uma parte do corpo que não é tida como íntima. A sua divulgação, assim, não é considerada aviltante. Evidentemente que isto varia de sociedade para sociedade. Em culturas muçulmanas, descobrir o rosto feminino pode ser tão ou mais grave quanto a exposição forçada do quadril nas sociedades ocidentais.
Em qualquer hipótese, mesmo o exercício do direito legítimo de revistar partes não-íntimas depende do consentimento do trabalhador. Não há espaço para coações físicas ou morais na aquiescência do revistado.
Câmeras podem ser colocadas por toda empresa, salvo em ambientes que a sociedade também convencionou serem íntimos, como, por exemplo, os banheiros, ou, mais especificamente, os espaços nos quais as pessoas se despem para realizar necessidades fisiológicas. Se o trabalhador resolve se despir em outros locais da empresa, será de seu risco e conta. Mas nos sanitários ninguém se despe por desejo de exibição, mas por necessidade.
Em qualquer desses exemplos, verifica-se que o importante é que, tratem-se de barreiras naturais ou culturais, o impulso original, inicial da exteriorização da intimidade parta do seu titular.
Daí porque sempre nos inclinamos a entender que as correspondências eletrônicas enviadas e recebidas através de equipamentos de trabalho podem ser amplamente monitoradas e vasculhadas, principalmente quando o trabalhador sabe dessa possibilidade de antemão: se decide exprimir seus pensamentos ou sua vida íntima por esse meio eletrônico, valendo-se de instrumentos de trabalho, aceita o risco de perder o controle da sua divulgação. Melhor: abre mão da informação pessoal, já que parte de si o impulso original de exteriorizá-la.
O segredo, diz um velho ditado, deixa de ser um segredo quando o confidenciamos a uma única pessoa que seja.
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* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados
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