Em tempos em que a vida e a saúde – seja ela física e/ou psíquica – ganharam tamanha importância, referidos bens ínsitos ao ser humano devem ser reconhecidos e ainda mais valorizados e protegidos, não apenas pelo indivíduo em si, mas igualmente pelos demais Poderes da República.
Hoje, há o confronto entre quais direitos fundamentais devem prevalecer: vida ou educação? Decisões recentes sobre se as escolas públicas e particulares devem reabrir ganharam o palco do mundo jurídico. E nossas crianças? Como fica a saúde mental desses seres ainda em estágio peculiar de desenvolvimento, sua interação social e seu aprendizado? Afinal, as escolas devem retomar as aulas presenciais ou manter as aulas à distância? Qual será o impacto na rede pública de ensino?
Se há uma verdade absoluta é que tudo é relativo – em especial nas ciências jurídicas – havendo correntes doutrinárias para as mais variadas teses e casos. Tudo é "debatível". Decisões antagônicas para o mesmo caso comprovam a relatividade do Direito, e por quê não dizer da vida também?
No presente estudo, tentaremos elucidar, da melhor maneira possível, o que entendemos sobre esta colisão tão peculiar de direitos fundamentais de tamanha importância – em especial nas atuais circunstâncias – e qual seria nossa posição sobre a volta às aulas presenciais.
1- BREVES CONSIDERAÇÕES ENTRE DIREITO À SAÚDE PLENA E À EDUCAÇÃO
O direito à saúde plena, corolário do direito à vida, é reconhecido e estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, 10 de dezembro de 1948, na exegese conjunta dos artigos 3º e 25. Nossa Constituição Federal, por sua vez, assegura a saúde como um direito fundamental, nos artigos 6º e 196, instituindo-o não apenas como um direito do cidadão, mas também num dever do Estado. A saúde, por ser um direito umbelicalmente ligado à vida, deve ser entendido num direito de defesa do cidadão, na medida em que muito difícil definirmos aonde começa um e termina o outro, impondo uma obrigação estatal de assegurar a sua preservação e fruição. Afinal, a vida sem a saúde básica à sua fruição não pode ser considerada numa existência digna da pessoa.
A lei 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece, em seu art. 2º, § 1º, que "o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação", instituindo, portanto, um mecanismo protecionista, qual seja, o princípio de prevenção na formulação e implementação das políticas públicas em saúde pública.
No mais, vejam, segundo dispõe a mesma lei federal, a saúde constitui-se como um verdadeiro fator condicionante ao pleno exercício diversos direitos fundamentais, dentre eles, o do trabalho e da educação. Idêntica conclusão é extraída da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual estipula que "a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade" e que "gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano". Ou seja, sem a saúde, atributo mais básico do ser humano, direito indisponível da pessoa, não se pode usufruir dos demais bens e direitos que a vida tem a nos oferecer, aproximando-o muito mais, a nosso ver e s.m.j., de um direito de defesa, portanto. A executoriedade deste direito, pelo Estado, é que deve ser tomada em seu viés de direito prestacional.
Por sua vez, o direito à educação, previsto no art. 205 da Constituição cidadã, serve como base não só ao desenvolvimento da pessoa, mas também para fins de inseri-la no contexto sócio-político de seu país, visando a que esta exerça com a mais absoluta plenitude e liberdade, sua cidadania, além de, obviamente, qualificá-la ao mercado de trabalho, constituindo-se num verdadeiro direito à prestação material propriamente dito.
Muito importante tal diferenciação, na medida em que, no tocante ao direito à saúde, o Estado possui um dever de agir, obrigatório, de forma mais qualificada e eficiente possível. Relegá-lo à condição de direito à prestação material, condicionando-o a fatores econômicos e à vontade do administrador público implica na mitigação de sua importância, significando dizer que a vida só importa na exata medida das possibilidades financeiras estatal. Ao passo que o segundo se submete à chamada reserva do possível, ou seja, às possibilidades econômicas, técnicas e de pessoal constituídas à época de sua implementação.
Numa visão que leva em conta o atual cenário mundial de pandemia, a covid-19 acabou escancarando as inúmeras e indiscutíveis falhas no sistema econômico adotado pelo Brasil, quando a grande maioria dos alunos matriculados em instituições públicas não conseguiram ter um acesso mínimo à educação, na modalidade à distância, evidenciando que milhares de brasileiros ainda vivem, em pleno século XXI e no mundo globalizado de hoje, sem o alcance da internet – um bem de consumo básico da comunicação –, ferindo de morte os princípios da igualdade de condições de acesso ao ensino e garantia do padrão de qualidade, preconizados nos incs. I e VII respectivamente do art. 206 da Lei Magna1.
Mesmo os profissionais da educação – que têm sua valorização erigida à condição de princípio, previsto textualmente no art. 206, V da Constituição Federal c.c. art. 3º, VII da lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDBE) – estão sendo constante e diariamente sobrecarregados não apenas com o desenvolvimento das atividades docentes típicas, mas também – ainda que em home office – com trabalho excessivo e desgastante, sem levar em conta suas condições pessoais, em especial sua saúde mental.
Há indiscutivelmente uma diferença absurda entre dar aulas presenciais e aulas on line. Muitos – em especial os que lecionam no ensino privado – estão visivelmente esgotados, com atribuições curriculares em excesso, além de, para aqueles que retomaram as atividades presenciais, serem forçados a darem aula sem condições mínimas de prevenção à covid-19, como aferição de temperatura de alunos, máscaras, protetores faciais, luvas, água e sabão, salas arejadas, etc.
Não apenas a preocupação em contrair a doença, mas também a questão da acessibilidade e manuseio das plataformas digitais de interação com os alunos acabam por gerar angústia demasiada. Males como medo, ansiedade e exaustão física e mental são os maiores males atuais que rodeiam os verdadeiros heróis da nação. Neste sentido, diversos sites advertem sobre a atenção à saúde mental e acolhimento destes profissionais em tempos de pandemia2.
A cultura brasileira enxerga nas escolas um verdadeiro local legalizado de depósito de crianças. Quanto mais tempo na escola, melhor. Menos tempo com as crianças é inversamente equivalente a mais tempo de trabalho e, quanto mais tempo de trabalho, mais dinheiro, melhores condições de vida, etc. Daí o círculo vicioso em que vivemos. Temos de entregar resultados, bater metas periódicas, conseguir mais dinheiro, pagar contas e, com isso, mudamos o substantivo "prioridade", retirando-o do lado da palavra "filho" e o realocando ao lado da palavra "trabalho", enxergando na escola um subterfúgio legalmente válido para tanto e, muitas vezes, como única rede de apoio familiar.
A LDBE vincula o ensino ao mundo do trabalho, à prática profissional, ao aprendizado de um ofício ou profissão, consoante a exegese dos arts. 1º, § 2º, 2º, caput e 3º, XI. Entretanto, o que vemos é um ensino – em especial, o público – extremamente defasado, que não leva em conta a percepção de mundo de cada aluno, suas aptidões físicas e intelectuais, suas individualidades e o potencial de cada aluno em si. A grade curricular acaba sendo repassada de forma única a todos, indistintamente, desrespeitando não apenas a individualidade de cada criança, como seu mais pleno desenvolvimento.
Na seara constitucional, percebemos que deva haver uma prevalência do direito à saúde em relação ao direito à educação. A prevalência, entretanto, não se faz de maneira absoluta e definitiva, mas apenas de forma relativa, provisória e circunstancial, na medida em que a educação também é importante e deve ser implementada da melhor maneira possível, porém, visando o bem-estar físico e emocional, não apenas de nossas crianças, como também e igualmente, dos profissionais da educação.
Mas deixando de lado o debate sobre a qualidade do ensino brasileiro, passemos à analisar o conflito desses direitos e o que entende o Supremo Tribunal Federal em casos similares.
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