O Direito tem sido refém de opiniões morais, e isso tem maculado sua autonomia e a própria democracia, a qual só se faz pelo Direito e com o Direito, de modo que um discurso moral ou político não pode ser mais relevante do que um texto legal ou constitucional. Decisão judicial não deve ser uma escolha.
Como muito bem salientou Streck1, “O melhor modo de estancar a sangria provocada pela moral em uma democracia é a construção de uma teoria da decisão.” Por isso mesmo é necessário refletir sobre qual a importância do texto para a interpretação jurídica, mormente em tempos do que se convencionou chamar de pós-modernidade, onde apenas a racionalidade não é suficiente para a compreensão das transformações da sociedade.
A falta de critérios interpretativos e a espetacularização do direito em busca da “justiça a qualquer custo” tem levado a práticas incompatíveis com o exercício da jurisdição, conforme assevera Teixeira2:
“Para além das dificuldades concernentes à consagração de processos moralmente vinculantes conduzidos pelo poder judiciário, a forma como se deu a recepção da chamada “matriz pós-positivista” no constitucionalismo brasileiro favoreceu voluntarismos e casuísmos de toda ordem”.
Não é aceitável que tudo seja questão de opinião. Há de haver respostas certas, e para que isso seja alcançado precisamos de critérios. A tensão entre direito, moral e política faz crer que a construção de uma Teoria da Decisão não deve permitir que normas legítimas sejam substituídas pela vontade do julgador, pois numa democracia a vontade é a estatal, sem que isso signifique que o juiz seja a ‘boca da lei’.
Um sistema fundamentado no ‘sujeito’ demonstra que o solipsismo é a realidade jurídica do país, a qual acreditou que o juiz dos princípios iria resolver os problemas da interpretação, quando na verdade conferiu uma livre atribuição de sentidos, possibilitando que a norma produzida democraticamente seja desconstruída por razões de cunho moral ou político, isto é, pelo julgador dono dos sentidos da lei.
O positivismo jurídico parece presente quando em casos de lacunas o magistrado fica ‘autorizado’ a decidir de forma discricionária, indo além do Direito na busca do padrão de orientação apoiada algumas vezes em razões até mesmo de natureza religiosa.
Em um Estado de Direito legítimo é essencial enxergar que não podemos ser reféns das circunstâncias. As Cortes tem um papel fundamental na democracia, e é a facticidade da tradição do direito que impõe a interpretação se dê por princípio, privilegiando sua autonomia em relação à moral e à política. Isso quer dizer que é preciso haver a busca de coerência e integridade para o direito.
Uma democracia estável e equilibrada depende necessariamente de uma relação saudável entre Direito e política para que não ponha em risco o pacto constitucional. A política e a moral precisam ser controlados, e isso se faz tão somente pelo Direito por meio da Constituição. Enfrentar esse problema é um dever da comunidade jurídica.
Foi a partir da segunda grande guerra, com o fim da hegemonia positivista do direito que ocorreu a reaproximação entre a moral e o direito, isto é, foi conferida maior autonomia ao intérprete jurídico. Essa fase, costumeiramente chamada pela doutrina de pós-positivismo, onde a sua base se sustenta em aplicar o direito além a lei, trouxe uma série de problemas não resolvidos até os dias atuais.
Na verdade, respostas jurídicas variadas sobre o mesmo problema parecem ir de encontro ao direito como integridade de Ronald Dworkin3, o qual ressalta bem que se os sistemas jurídicos são compostos de regras e princípios, estes possuem valor moral, desta forma, o direito não pode ser separado da política e da moral. Esse ó ponto crucial que tem sido pouco observado nas decisões.
Muitas vezes a insuficiência de parâmetros teóricos leva o intérprete a explicitar pressupostos políticos e morais ocultos em sua posição. Por isso mesmo, respeitar os limites interpretativos do texto jurídico é a forma mais republicana de fazer valer o direito, eis que não é necessário utilizar argumentos morais para cumprir o que fora democraticamente aprovado. Só assim será possível dar conta do problema da discricionariedade judicial, pois decisões não podem ser oferecidas em nome do melhor argumento; isso enfraquece a legitimidade do direito.
Direito, moral e política na pós-modernidade
A reconstrução da fenomenologia jurídica a partir da Crítica Hermenêutica do Direito possibilita à comunidade jurídica pensar em uma decisão jurídica correta. Em qualquer circunstância o que deve ficar claro é a necessidade de prevalência dos direitos fundamentais e da própria democracia sobre concepções privadas.
Cotidianamente vê-se a substituição da racionalidade científica pela vontade do julgador, onde o protagonismo do juiz se sobrepõe às normas jurídicas. Streck4, em seu Dicionário de hermenêutica, salienta:
“A vontade e o conhecimento do intérprete não constituem salvo-conduto para a atribuição arbitrária de sentidos e tampouco para atribuições de sentidos arbitrária, que é consequência inexorável da discricionariedade.”
O direito é um fenômeno muito mais complexo do que se imagina, não podendo ficar imune às transformações que ocorreram no campo da filosofia. Por isso mesmo “os sentidos não podem ser atribuídos em abstrato, pela simples razão de que não se pode cindir fato e direito, intepretação e aplicação. Eis o papel da diferença ontológica, que propicia o ingresso do mundo prático no direito.”5
Assim, a interpretação é desmistificada como mero ato de colocar sentidos aos fatos. Interpretar é compreender, e isso é aplicar, pois compreendemos para interpretar.
Os professores Santos, Teixeira e Araújo6, no artigo científico Diálogos entre Tribunais e proteção de direitos humanos: dificuldades e perspectivas, na Revista de Direito Administrativo & Constitucional, chamam a atenção para a preocupação com as novas técnicas de decisão. Vejamos:
A teoria constitucional orientada pela preocupação com a efetividade das normas aparece como uma complexa teia de conceitos. Ideias como eficácia horizontal de direitos, concordância prática e proporcionalidade marcam uma teoria dos direitos fundamentais dominante. Surgem novas técnicas interpretativas e, a partir delas, novas técnicas de decisão para conflitos sobre constitucionalidade.
No início do século XX houve alteração das bases constitucionais com a passagem do Estado liberal para o (suposto) Estado Social, e isto trouxe um direito positivo que ampliava a atuação estatal em nome dos direitos fundamentais. Assim, a partir do pós-guerra houve dificuldade de alteração legislativa dos textos para a devida adaptação à realidade, momento a partir do qual ganhou corpo a alteração de sentido do texto por meio do discurso hermenêutico. Foi então que o discurso jurídico passou a ser permeado por discursos metajurídicos (político; moral; sociológico; econômico; sociológico), deixando de lado o caráter deontológico que formou a base jurídica do direito até o século XIX.
O rompimento do sistema medieval para o direito do iluminismo calcado no sujeito teve dificuldades de lidar com as estruturas das relações sociais, e com isso a não aceitação política ou moral das decisões jurídicas ganharam corpo, passando, desta forma, a haver a politização e a moralização dos discursos jurídicos. Então a crise do direito praticado no Estado liberal fez com que prevalecesse a teleologia, fato que facilitou a entrada da política e da moral na seara jurídica, havendo com isso a ruptura do normativismo de caráter deontológico para parâmetros finalísticos.
Nesse sentido, as teorias sociológicas asseguravam que a atividade dos juristas não deveria se circunscrever ao direito positivo. Defendiam que havia a necessidade de adaptar o direito a um modelo racional. Com isso, os pressupostos teóricos das concepções sociológicas que visavam a ruptura da literalidade das normas não deixavam de ser um discurso ideológico.
Na verdade, se a moral passar a ser utilizada de maneira corretiva ao direito haverá a repristinação do positivismo jurídico, algo combatido veementemente em função das insuficiências desse paradigma que tinha na discricionariedade judicial seu baluarte. Em excelente lição sobre o tema, Streck7 assinala:
“Nenhuma decisão se justifica pelos seus resultados. Decisão e o fundamento da decisão são uma coisa única. E, em se tratando de matéria jurídica, as decisões tomadas por uma magistrada são (devem ser) adstritas ao e fundamentadas no Direito. Não na moral, não na política, não na economia, enfim, não em seus predadores externos. O Direito exige um elevado grau de autonomia, e ignorar a lei, cedendo aos predadores externos, é um luxo ao qual os juristas não se podem dar. Ignorar os limites hermenêuticos também.”
É dizer, assim, que os fundamentos de uma decisão precisam ser jurídicos, e nunca extrajurídicos, justamente em razão da responsabilidade política que possuem os juízes. É a defesa do controle da política pelo Direito por meio da Constituição. Sem dúvida, a substituição do Direito por opiniões ideológicas enfraquece as democracias, e a substituição dessas por juízos morais só vai ser estancada com a construção de uma teoria da decisão que não atue fora do texto. Como enfaticamente registra o professor Streck, parece estarmos em um ‘estado de exceção interpretativo’, onde razões pessoais valem mais do que a Constituição.
Em uma sociedade plural e fragmentada, Dworkin8 elucida que uma decisão política não é uma decisão sobre o que está, em qualquer sentido, no texto legal, mas, antes, uma decisão sobre o que deveria estar lá. Por isso, os desacordos devem ser resolvidos por princípios na concepção do jurista, pois direito e moralidade política não estão separados. Se direito é um fenômeno interpretativo, como assegura o referido autor, e com isso concordamos, é pela responsabilidade política que se dá substrato ao argumento institucional que está ligado a essa concepção dworkiniana.
Voluntarismos são, na verdade, retóricas que não possuem racionalidade, e assim são porque tem no subjetivismo do discurso moral a saída para praticar um ato de vontade com base em argumentos pragmáticos, que nunca serão fundamentos jurídicos. Somente na facticidade e na tradição encontraremos as bases para que o direito, autônomo, seja praticado com respaldo em uma interpretação que perceba que emotivismos não garantem uma resposta adequada.
A imperfeição do sistema é algo humano, no entanto a partir de uma teoria com coerência e integridade às decisões em busca de soluções práticas é que se pode pensar na concretização dos projetos constitucionais ainda não cumpridos. Desta forma teremos uma postura científica apta a enxergar que a resposta correta se dá fora do positivismo.
Nesse sentido, a integridade no direito se apresenta como um contraposto ao voluntarismo e discricionariedade, porque exige que os juízes elaborem seus argumentos de forma conectada ao conjunto do direito e à comunidade de princípios. Na democracia o critério precisa ser o direito, pois caso contrário haverá sempre as circunstâncias. É aí que o direito vai limitar o papel do parlamento e do próprio juiz. Os desacordos são e devem ser resolvidos pelo direito. Isso é uma prática de cidadania e de democracia.
No Brasil ainda continua a recepção de Alexy de forma equivocada, onde juízes fazem ponderação entre regras jurídicas, o que aumenta a arbitrariedade. Isso não significa que a teoria do professor alemão seja a mais adequada à aplicação no Direito pátrio. Porém é necessário que no processo democrático de construção de decisões judiciais haja preocupação com a racionalidade, pois o Direito é uma linguagem pública, onde as razões aprovadas no legislativo precisam ser usadas nos processos judiciais com a participação de todos para que a aplicação do Direito não seja marcada pelo subjetivismo.
Há bastante tempo a hermenêutica passou a ter um conteúdo ontológico, constituindo a própria prática cotidiana do sujeito que busca conhecer algo no/sobre o mundo, não se reduzindo a um instrumento capaz de afastar a obscuridade de um texto.9 Todo sujeito se vê necessariamente em um contexto linguístico denominado tradição, cuja autoridade se dá não de modo coercitivo, mas pelo reconhecimento.
Ao decidirem, juízes tratam as técnicas de interpretação das leis como princípios, e não como legados de uma tradição10. Por isso se apoiam em alguma teoria política, e quando acham que não mais é suficiente, elaboram teorias que lhes pareçam melhores. Defender qualquer ‘método’ que produza aquilo que acredita ser o melhor para a comunidade futura é um pragmatismo insano, que desrespeita o que autoridades públicas fizeram, distanciando-se da coerência de princípio.
Considerações finais
Razões pessoais, políticas e de cunho moral não podem valer mais que o direito, onde o ato de julgar fica à mercê da consciência do intérprete, que aparenta ser o dono dos sentidos e da verdade. Isso é punir a autonomia do direito por racionalidade interpretativa utilizando-se de recursos de justificação.
Os fatores extra-jurídicos não podem servir à correção ao direito. Na Crítica Hermenêutica do Direito fundada pelo professor Lênio Streck parece haver a superação do positivismo em busca da resposta correta, onde a integridade e a coerência representam a decisão judicial verdadeiramente democrática, a qual se encontra tão somente na faticidade e historicidade.
A jurisdição só encontrará a quebra paradigmática ao abandonar a filosofia da consciência e o modelo individualista do Direito. Significa, assim que há de ser percebido que a moral está verdadeiramente institucionalidade no direito, pois este fenômeno não se separa da moralidade, e por isso mesmo as decisões devem ocorrer por princípios e nunca por argumentos pragmáticos de política.
O modelo tradicional da dogmática jurídica mostra-se insuficiente para lidar com os problemas do direito, e por isso a hermenêutica deve ser vista como uma teoria da interpretação, cujo sentido do conhecimento não mais pode ser revelado pela consciência, mas pela linguagem como condição de possibilidade contra o arbítrio e o voluntarismo, que representam obstáculos às promessas constitucionais.
Os tempos de relativismos precisam ficar fora das decisões porque as leis não podem ser desprezadas em nome da interpretação que se quer dar. Afinal, tudo o que pode ser compreendido é unicamente linguagem11.
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1- Streck, Lênio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial – 1 ed. – Florianópolis/SC: Tirant Lo blanch, 2019, p. 91.
2- Teixeira, João Paulo Allain. Direito e Sociedade – Volume 1: Marcelo Neves como intérprete da modernidade periférica / João Paulo Allain Teixeira, Leonardo Liziero (Org.). Andradina: Merak, 2020. Uma proposta de Reconstrução da Dogmática Jurídica a partir de Marcelo Neves.
3- Dworkin, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução Luís Carlos Borges, 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2019.
4- STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 54.
5- _________________. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4ª ed. Ver. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
6- SANTOS, Gustavo Ferreira; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Diálogo entre tribunais e proteção de direitos humanos: dificuldades e perspectivas. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 66, p. 267-282, out./dez. 2016. DOI: 10.21056/ aec.v16i66.369.
7- Streck, Lênio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1ed. – Florianópolis/SC: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 29.
8- Dworkin, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução Luís Carlos Borges, 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 10.
9- Trindade, André Karam. Filosofia no direito: com Gadamer, contra Habermas, à procura de um paradigma de racionalidade a partir do qual seja possível pensar pós-metafisicamente a teoria do direito contemporâneo. 2006. Dissertação de Mestrado em Direito Público – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, p. 225.
10- Dworkin, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 169.
11- GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª edição. Tradução de Flávio Paulo Meurer – Petrópolis, RJ, Vozes, 2005.
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Dworkin, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
________________. Uma questão de princípio. Tradução Luís Carlos Borges, 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2019.
Gadamer, Hans-Georg. Verdade e método – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª edição. Tradução de Flávio Paulo Meurer – Petrópolis, RJ, Vozes, 2005.
Santos, Gustavo Ferreira; Teixeira, João Paulo Allain. Diálogo entre tribunais e proteção de direitos humanos: dificuldades e perspectivas. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 66, p. 267-282, out./dez. 2016. DOI: 10.21056/ aec.v16i66.369
Streck, Lênio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial – 1 ed. – Florianópolis/SC: Tirant Lo blanch, 2019, p. 91.
__________________, Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 54.
__________________. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4ª ed. Ver. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
Teixeira, João Paulo Allain. Direito e Sociedade – Volume 1: Marcelo Neves como intérprete da modernidade periférica / João Paulo Allain Teixeira, Leonardo Liziero (Org.). Andradina: Merak, 2020. Uma proposta de Reconstrução da Dogmática Jurídica a partir de Marcelo Neves.
________________________. Direito e Sociedade – Volume 1: Marcelo Neves como intérprete da modernidade periférica / João Paulo Allain Teixeira, Leonardo Liziero (Org.). Andradina: Merak, 2020. Uma proposta de Reconstrução da Dogmática Jurídica a partir de Marcelo Neves.
Trindade, André Karam. Filosofia no direito: com Gadamer, contra Habermas, à procura de um paradigma de racionalidade a partir do qual seja possível pensar pós-metafisicamente a teoria do direito contemporâneo. 2006. Dissertação de Mestrado em Direito Público – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, p. 225.